PEC dos Recursos: uma "solução" à moda tupiniquim
Aborda, de forma crítica e sob a perspectiva das causas da morosidade judicial, a Proposta de Emenda à Constituição que tramita junto ao Senado Federal sob o número 15/2011 e demais proposições que visam atender ao mesmo fim.
Juscelino
Kubitschek foi um visionário. Presidente da República eleito em
1955 com o auxílio do braço forte do grande empresariado que mantém
a classe política até os dias de hoje, teve seu governo marcado,
principalmente, pela construção de Brasília, formalmente
idealizada, bom que se diga, por José Bonifácio de Andrada e Silva,
muito antes de o mineiro da pequena Diamantina ter ascendido à
Presidência. Logo de início, não se nega que a construção da
Capital Federal no meio do país trouxe, à primeira vista,
benefícios à interiorização do Brasil. Permitiu, pois, o
deslocamento do eixo de desenvolvimento, antes totalmente adstrito às
regiões litorâneas, e, ainda, deu fomento à infra-estrutura
nacional, desde aquela época relegada a um segundo plano. O problema
é que, ao arrastar todas as esferas do poder central a um recôndito
distante do resto do país, algo aconteceu com os seus legatários:
deitados em berço esplêndido na imensidão do planalto central, se
sentem como que absortos e desvinculados da realidade daqueles que
são os receptores de tudo o que é produzido em Brasília.
Diferentemente
do que pode se pensar, esse desmazelo não acomete tão-somente a
classe política: arremete, também, a classe jurídica, muitas vezes
alinhada em comunhão de pensamentos com a primeira. Exemplo disso
foi a proposta de emenda à Constituição Federal apresentada pelo
senador Ricardo Ferraço (PMDB/ES), conhecida hibridamente por “PEC
dos Recursos” ou “PEC do Peluso”, já que abraçada por Sua
Excelência, o Presidente do Supremo Tribunal Federal Ministro
Antônio Cézar Peluso. A proposta estigmatiza a lentidão do
Judiciário em dois pontos: excesso de recursos (incluindo-se, aí, o
que chamam de exacerbação do direito de defesa) e abarrotamento dos
tribunais superiores. Para estes dois pontos, uma solução foi
apresentada: a transformação dos recursos ordinários e
extraordinários em ações rescisórias, o que estenderia o manto da
coisa julgada às decisões proferidas ainda em segundo grau, sendo
que outra saída é defendida abertamente pelo presidente do Pretório
Excelso: aumento da tarifação das custas judiciais a pretexto de
barrar a atuação litigiosa dos maiores contendores.
Os
argumentos utilizados na defesa da mascarada extinção dos recursos
(especial e extraordinário) são no sentido de que “a grande
maioria” (algo em torno de 90%, dizem) dos recursos que chegam ao
Supremo Tribunal Federal é negada no mérito, engendrada com
manifesto teor procrastinatório e que a incumbência do STF e dos
tribunais superiores é restrita à apreciação da matéria de
direito, não de fato. Parte-se, portanto, de premissas equivocadas.
Ora, o direito não é nem nunca foi uma ciência exata, por isso não
se pode equacionar matematicamente o êxito das demandas judiciais,
sobretudo porque o resultado delas é oriundo de um subjetivo juízo
de valor que varia de acordo com a composição, no caso, das Cortes.
Desta feita, se, hoje, a composição (que é bastante variável) do
Superior Tribunal de Justiça é mais alinhada com, por exemplo, a
doutrina garantista, é consectário deste raciocínio que, no âmbito
do Direito Penal, terão mais êxito os recursos impetrados pelas
defesas. Uma alteração, entretanto, no corpo do tribunal, capaz de
gerar um desalinho nestas forças, é suficiente para modificar as
malfadadas estatísticas.
Não
bastasse, o entendimento suscitado pelos defensores desta PEC não
leva em conta a dificuldade tida em se fazer chegar um recurso a
Brasília. O filtro que permeia as Cortes brasileiras é de tão
arrebatador que, se o apelo não cumprir diametralmente todos os
requisitos legais ou se não tiver fundamento claro, simplesmente não
é admitido. Sequer sobe à instância superior, o que é bastante
razoável. No mesmo sentido, se for interposto como manobra eivada de
protelo, a orientação unânime destas mesmas Cortes é no sentido
da aplicação de multa por litigância de má-fé, o que é feito
com rigor tamanho que poucos são os que se “aventuram” num
recurso de tantos entraves jurídicos.
Neste
interregno, não se pode olvidar que o imbróglio a que se submeteu a
parte envolve, na maioria das vezes, não apenas questões de fato,
mas complexas questões de direito. Muito embora, nesta toada, os
juízes e os tribunais de apelação (segundo grau) julguem, e
julguem bem, a matéria fática, a estrutura judicial brasileira,
seja por impedimentos de ordem material (falta de equipamentos e
pessoal) ou de ordem formal (excesso de demanda e demanda acumulada),
pode impedir uma análise mais pormenorizada das questões de
direito, cabendo, portanto, aos tribunais superiores reavaliá-las,
se assim desejar a parte que fizer uso do seu direito à ampla
defesa, no que se compreende, também, o duplo grau de jurisdição
e a provocação das instâncias superiores.
De
outra ponta, não se pode conceber que, a pretexto de tornar o nosso
Judiciário mais célere, seja necessário torná-lo mais caro, até
porque ele já figura entre os mais custosos do mundo. Neste norte,
considerando que os maiores litigantes são a Fazenda Pública (por
meio, por exemplo, do INSS e das demais autarquias) e as grandes
corporações financeiras, o efeito do aumento das custas dos
preparos recursais seria sentido e arcado tão-somente por aquele
cidadão ou por aquela pequena empresa que ainda vê no Judiciário o
único meio de dar uma resposta a uma injustiça sofrida, já que a
Fazenda Pública, relembre-se, goza de isenção de custas e as
grandes corporações bancárias, a toda evidência, dispõem de
muito dinheiro para continuar demandando em qualquer juízo.
O
que houve, com efeito, após o advento da Constituição Federal de
1988, foi uma judicialização da vida: as portas do Judiciário
foram, definitivamente, abertas à população, que não se esguelhou
em fazer uso dele como de direito. A estrutura judicial, contudo,
segue um padrão pré-1988, sendo a lentidão judiciária um produto
dessa leniência que, como de regra, arremata tudo que é destinado à
infra-estrutura pública. Em realidade, não estávamos preparados
para o grande boom
do Poder Judiciário que foi permitido a partir da vigência da nova
ordem constitucional, de modo que, por via reflexa, acabou-se por
minar, em termos, o direito da parte em fazer uso dele, já que a
demora e o preço são evidentes desestímulos ao livre acesso.
Daí
é que a PEC dos Recursos não ataca o problema na origem e possui em
seu DNA
a marca brasileira: ao invés de se solucionar, com coragem e pulso
firme, o problema da lentidão na tramitação dos recursos, acaba-se
com eles. É mais conveniente, ainda que os recursos que se pretende
transformar em ações rescisórias representem a minoria das
demandas propostas diariamente.
A
“solução” é idêntica àquela apresentada para resolver os
problemas linguísticos e gramaticais enfrentados pela maioria da
população: se a grande massa não entende as regras do português
e, especificamente, dos acentos, afrouxam-se essas regras e acaba-se
com os acentos. É prático. Ensinar, porém, a população a
conhecer e dominar com propriedade aquele que é o único elo capaz
de unir, por exemplo, um amazonense e um carioca, não. Dar uma
solução momentânea e paliativa importa mais, principalmente se
puder imprimir-se à parcela da população que fala e escreve
corretamente a pecha de elitista e preconceituosa.
Mas
as conseqüências desse retardo no ataque às verdadeiras razões da
ineficiência não pode deixar de produzir um efeito, tal qual
ocorrerá em pouco tempo com o português, porquanto uma nação que
não conhece sequer a própria língua não pode, presunçosamente,
ambicionar ser uma potência.
É que a ação rescisória tem rito procedimental muito mais
demorado que os recursos especiais e extraordinários, já que é
permeada por fases quase iguais às que passa um processo de
conhecimento de rito comum. É absurdo pensar, ademais, que tanto a
parte que vive fora da realidade de Brasília quanto aquela que
figura na lista dos maiores contendores vai deixar de fazer uso do
meio processual que lhe for dado para buscar uma melhor solução ao
seu impasse, isto se estiver convencida de que a resposta
jurisdicional dada não atende ao seu melhor fim. Não haverá,
portanto, um desafogamento nos tribunais superiores, já que a
transformação de um recurso num direito subjetivo da parte
aumentará a demanda, uma vez que, a título de exemplo, será
necessário reiniciar o estabelecimento de todos os marcos
jurisprudenciais e procedimentais erigidos até então, o que fará
com que, via de conseqüência, todas as matérias pacíficas sejam
rediscutidas.
Calha
destacar, também, que a demora no desenrolar de um processo não o
é, majoritariamente, em razão da ineficiência dos tribunais
superiores, já que, como dito alhures, raros são os feitos que
conseguem chegar lá. Os juízes de primeiro grau e os tribunais de
segunda instância atendem, hoje, um contingente muito maior de
jurisdicionados, de modo que a prestação torna-se tão mais lenta
quanto específica, porquanto não há, de regra, julgamentos em
massa, havendo a análise de cada caso em seu particular.
Assim,
qualquer medida que queira se reputar de solução deve partir da
premissa de que os tribunais superiores necessitam olhar o primeiro
grau como a porta de entrada da parte no sistema judiciário, ou
seja, os homens de Brasília devem olhar ao resto do país, não o
contrário. Uma construção hígida não inicia pelo telhado. Parece
mais racional, portanto, que se aprimore o acesso, o trâmite e a
prestação da jurisdição em primeiro e segundo graus para que a
provocação dos tribunais superiores se torne apenas desnecessária,
não impossível.
É
preciso, também, analisar a PEC dos Recursos sob o prisma
constitucional, já que, por corolário lógico, ela se presta a
integrar o texto da Constituição Federal. E é neste mote que o seu
maior impedimento encontra repouso: sendo um exercício do direito à
ampla defesa, um recurso não pode ser transformado em ação, já
que a ampla defesa é garantia constitucional petrificada que não
pode ser alterada, salvo se a modificação for tendente a majorá-la.
Não
é essa, porém, a teleologia imanada na proposta de emenda à
Constituição. A visão, equivocada, parte exatamente do pressuposto
de que, se os tribunais estão cheios de recursos, é porque são
eles – os recursos – os problemas a atacar. E não são. Juízes
não são máquinas, são homens, como dizia Charles Chaplin, e é
isso que torna a prestação jurisdicional falha e dá ânsia à
insurgência. Advogados e promotores, na mesma proporção com que
erram os magistrados, também falham. É por tal razão que nem de
longe se pode esquecer que o que está em jogo é o direito da parte,
sendo ela a única prejudicada em, depois de passar um bom tempo com
a espada de Dâmocles mirada em sua cabeça, não poder recorrer
de um acórdão que considera injusto, pois é somente ela quem
arcará com os efeitos que dele emanarão.
Perigoso,
demais disso, quando se sintetiza o problema da lentidão como sendo
fruto da garantia ao livre e amplo acesso. Mesmo em nome da
celeridade almejada por todos, os valores constitucionais não podem
ser negligenciados em detrimento do combate à gestão decadente, à
incompetência, à falta de pessoal, à ausência de espírito
público daqueles que servem, à má produção legislativa e aos
desmandos administrativos que ocorrem na seara do Poder Executivo que
desembocam, como litígios, no Judiciário. Estes são os vícios
que, definitivamente, causam a demora nos processos e precisam ser
atacados de frente.
Curioso,
porém, que uma proposta deste jaez encontre sua defesa mais
contundente na pessoa do presidente da Corte cuja missão precípua é
zelar pela guarda da Constituição. Peluso é um magistrado de
carreira, um jurista brilhante que, tão logo saiu das cadeiras
universitárias, passou a engrossar as fileiras da magistratura
estadual. É natural que, com tantos anos de vivência, tenha, no
calejo de um sem número de autos manuseados, uma visão técnica e
quase mecânica sobre os litígios que lhe chegam ao seu sopeso. A
ciência jurídica, no entanto, tutela bens tão ou mais valiosos
quanto a ciência médica, por exemplo, o que faz com que os efeitos
produzidos por uma sentença judicial sejam graves demais a caber na
frieza de um mapa estatístico. Deste modo, não subsiste qualquer
argumento que seja capaz de subverter a ordem constitucional e
irromper o direito de, seja um penalmente condenado, seja um cidadão
que buscou a jurisdição voluntária, ter a palavra final sobre o
seu litígio dada, sem embargo algum, pelo último órgão que lhe
permite a Constituição Federal.
Em
que pese às considerações acima, nesta República das Jabuticabas
é bem provável que a proposta seja votada e aprovada. Não se sabe
como poderá o cidadão defender-se desta lesão, já que ela, uma
vez aprovada a medida, terá sido provocada, em parte, por iniciativa
de quem teria o dever constitucional de evitá-la.
Tomar
atitudes corajosas, corrigir os erros mais arraigados numa sociedade
complacente com o malfeito, importa em sangrar, em cortar a própria
carne, em dedicar algumas horas a mais no estudo dos problemas que a
acometem. Reza uma velha passagem que, no auge da Guerra Fria, em que
Estados Unidos e a antiga União Soviética digladiavam pela chegada
ao espaço, o que mais atrapalhou os americanos em sua missão foi
uma singela caneta. A ausência de força gravitacional impedia que
os astronautas, durante as jornadas espaciais, pudessem escrever, já
que as canetas utilizam-se da gravidade para fazer descer a tinta até
a esfera que toca o papel. Gastaram-se milhões e milhões de dólares
na pesquisa sobre a química e a física do deslocamento de fluídos,
até que se chegou à produção de uma sofisticada caneta
esferográfica com um sistema de autobombeamento termo-fluído
trifásico capaz de escrever não apenas sob situações de gravidade
zero, mas sob quaisquer condições, até de ponta cabeça e em meios
aquosos.
Os
russos, que chegaram antes ao espaço, levaram um lápis.
Entretanto,
a pesquisa americana empunhada na fabricação da caneta, antes
motivo de piada, por envolver compostos químicos e físicos no
estudo do fluxo dos fluídos, serviu à medicina e em como tornar
mais eficiente a absorção de medicamentos, sobretudo os destinados
ao tratamento de neoplasias (cânceres). Usou-se a tecnologia obtida
também na atualização da produção dos modernos discos rígidos
dos computadores e até mesmo para modelar o trânsito dos grandes
centros americanos, dando fluência rápida às vias de fluxo
arterial.
A
fábrica do lápis 2B russo, estatal, fechou quando a URSS ruiu e o
mercado do leste europeu sucumbiu à importação chinesa.
A
situação narrada, mesmo que mítica e um tanto tragicômica, pode
servir de analogia à realidade brasileira. Chegamos à encruzilhada
e temos duas opções de caminho a percorrer: o das soluções
producentes e definitivas ou o das medidas anódinas, do “jeitinho”.
Na esteira do momento constitucional vivido, o movimento empenhado
deveria ser no sentido de democratizar, sem hipocrisia, o acesso aos
tribunais superiores. É passada a hora de tomar atitudes ousadas,
profundas, que privilegiem a eficiência, que sejam capazes de
combater os problemas da gestão pública, que tornem, de fato, o
Judiciário célere, sem que, para tanto, seja preciso combalir o
texto constitucional ou impingir entraves aos direitos dos cidadãos.
Foram atos como estes que diferenciaram a Rússia dos Estados Unidos. Serão atos da mesma estirpe que definirão qual será a natureza do Judiciário com que teremos de conviver. Os percalços mais difíceis – aqueles sentidos no bolso – já vencemos e até mesmo com eles nos acostumamos. O que resta, portanto, é exigir um serviço público à altura do preço que custa. As atitudes de agora evidenciam, todavia, o pensamento de que é mais fácil consertar, pelas beiradas, os efeitos dos problemas do Judiciário, já que as causas são empurradas com a barriga, bem à moda tupiniquim.