A inconstitucionalidade na pena de prestação de serviços comunitários

A inconstitucionalidade na pena de prestação de serviços comunitários

Debate a constitucionalidade da pena de prestação de serviços comunitários, levando em conta o texto constitucional e os aspectos práticos da execução penal.

Apesar de considerada pelos especialistas de várias áreas que tratam do tema (operadores do Direito, sociólogos, psicólogos) uma das penas mais eficazes e humanas em seu propósito de repreender e prevenir infrações penais (objetivos fixados pelo Art. 59 do CP), assim como na função de reeducar o indivíduo na razão de sua conduta social, a pena de prestação de serviços comunitárias, ou PSC, pode ser inconstitucional pelo paradigma de Estado Democrático de Direito.

Diferentemente de outras penas, a PSC traz um bem direto à comunidade com um trabalhador não-oneroso à instituição em que labora, junto com a repressão ao ato criminoso por este ser garantidamente “compensado” jurídica e socialmente pelo indivíduo in persona – mas não limita a sociabilidade do condenado, questão essa de difícil tratamento em outras sanções penais.

Entretanto, a forma prescrita legalmente desta condenação ainda permite críticas de âmbito constitucional. As primeiras podem ser feitas com base nos parágrafos do Art. 46 do CP, o artigo próprio da PSC, abaixo:

Art. 46. A prestação de serviços à comunidade ou a entidades púbicas é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação de liberdade

§ 1° A prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado.

§ 3° As tarefas a que se refere o §1° serão atribuídas conforme as aptidões do condenado (...).

Residem nestes parágrafos algumas características básicas da prestação de serviços: primeiro, o serviço é gratuito por excelência; segundo, é atribuído ao condenado conforme suas aptidões.

O serviço deve realmente ser gratuito, pois do contrário haveria remuneração ao cumprimento da sanção penal. A pena deixaria de ter caráter repressivo, e seria um emprego normal, conseguido por vias criminosas – o que é diferente do trabalho do preso privado de sua liberdade, pois lá o labor não constitui a pena, e sim algo adicional e facultativo para o detento (apesar de o preso que opta por não trabalhar cometer falta grave segundo a Lei de Execução Penal, outra matéria de inconstitucionalidade nas penas).

Segundo, o trabalho deve ser escolhido de acordo com as aptidões do sentenciado. Além do claro apelo psicológico de tornar o cumprimento da pena atrativo/menos repulsivo à pessoa, há ainda a possível vantagem para a sociedade de que este indivíduo a ajude em algo não só diferente do que ela já tem em recursos humanos, mas também no qual ele é eficiente.

Em uma leitura pouco atenciosa, parece sim uma sanção cabível e excelente para os padrões do Estado Democrático de Direito. Entretanto, deve-se atentar a certos pontos. Vê-se que o juiz do fato ordena apenas que a pena seja aplicada de acordo com a aptidão do condenado, sem delimitação nenhuma.

Não parece, mas pode ser extremamente subjetivo o critério exercido no quesito aptidão. Esta palavra designa o talento que alguém tem para algo. Isto não quer necessariamente dizer que um médico irá prestar serviços médicos gratuitos, ou que um cozinheiro irá preparar sua comida para linhas de famélicos. Se usado o conceito real da palavra, pode-se chegar à seguinte dialética e posterior cominação legal: o juiz dirigindo-se a um advogado, pergunta se este sabe varrer; o advogado diz que sim, e o juiz (ou quem seja responsável pela colocação das pessoas em cada área, que, como se pode ver na sentença em questão, não é necessariamente o juiz) designa a ele esta prestação de serviços, claramente ignorando o potencial benéfico que tem para a sociedade a colocação de um operador do Direito à sua disposição para o conhecimento e orientação na busca de direitos.

Há ainda de se dizer que é bem possível que, mesmo atendendo aos maiores talentos reconhecidos de certa pessoa, a pena seja inconstitucional. Por exemplo, se um cozinheiro, evangélico fervoroso, tivesse que preparar comida que ajudasse a manter uma instituição espírita, religião esta que ele não respeita e acha ofensiva a seus princípios religiosos, haveria claro desrespeito ao princípio da liberdade religiosa, e até mesmo pode-se considerar uma ofensa à dignidade humana.

Observamos ainda mais claramente a inconstitucionalidade na forma de um possível trabalho forçado. Este já é vedado claramente pela matéria constitucional brasileira, mas deve-se ainda ilustrar a afirmação com o que diz a CF/88 sobre a remuneração básica do trabalhador:

Art. 7°. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

IV – Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado (...)

Desta forma, o trabalho não remunerado deve ter caráter voluntarioso – o que é alcançado em acordo com o paradigma do Estado Democrático de Direito onde o infrator deve participar da decisão sobre a pena cominada. Geralmente, isto é conseguido com o controverso critério da aptidão, em que o condenado deve dizer o que ele sabe fazer, no que ele é melhor ou pior, sujeitando-se, então, ao resultado da dialética réu-juiz/entidade ordenadora da PSC.

Mas e se o condenado decidir não participar desta decisão, ou simplesmente não for dado a ele um trabalho com o qual ele concorde, mesmo que de acordo com suas aptidões? Como vimos, não há delimitação do tema na decisão proferida pelo magistrado.

Assim, chegamos a uma triste conclusão: o réu pode ser condenado a trabalho forçado. Isto se dá porque o trabalho não pode ser remunerado, como já explicado, e desta forma deveria ser voluntário ou ter caráter voluntarioso, com o réu participando da decisão de cumpri-lo – mas isto pode não ocorrer, o que é expresso no seguinte texto da CF/88:

Art. 5°. (...)

XLVII – Não haverá penas:

a) de trabalhos forçados.

Ainda há de se ressaltar que uma das características do trabalho forçado, junto com a gratuidade e obrigatoriedade, é a coação. E o réu é justamente coagido a obedecer à sanção penal, quando se observa os enunciados legais que tratam das cominações a que está submetida a pessoa do réu que por ventura não cumpra o que for decidido sobre a sua pena PSC, é visto no Código Penal:

Art. 44. (...)

§ 4° A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta (...) respeitando o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão.

Ou seja, o Código Penal deixa claro: se não trabalhar no que for mandado, e a falta não for realmente escusável (o que pode ferir ainda o princípio da Legalidade, já que não há rol expresso de escusas, em termos objetivos ou em princípios próprios) segundo os critérios do julgador, o indivíduo irá para a cadeia.

E mais: há coação ainda pior no caso da pessoa que está em seu último mês de pena, forçando-a a cumprir, na cadeia, mais do que o ordenamento jurídico enuncia até para aquele que ainda tem muito da pena para pagar, ameaçando-o de sofrer repressão maior do que a inicialmente merecida por ele segundo o juiz.

É claro então que, apesar de toda a eficiência da pena de prestação de serviços comunitários, tanto para a sociedade quanto para o réu, ela pode, em alguns casos, ferir a Constituição Brasileira e o Estado Democrático de Direito, especialmente no que tange à produção de trabalho forçado para os apenados.

Sobre o(a) autor(a)
Luís Mário Leal Salvador Caetano
Advogado militante, pós-graduando em Direito Civil pela Universidade Anhanguera, bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba, ex-economiário da Caixa Econômica Federal, colaborador em diversas publicações especializadas.
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