Vazamentos, sob a visão de Hans Welzel e Mir Puig

Vazamentos, sob a visão de Hans Welzel e Mir Puig

O vazamento (violação de sigilo), tal como inserido no cotidiano brasileiro, estaria equiparado ao crime de adultério? De acordo com a Teoria da Adequação Social (Hans Welzel), uma conduta, ainda que criminalmente típica, pode tornar-se atípica. A Operação Satiagraha será o divisor de águas?

Com a divulgação da existência de 409 mil escutas autorizadas por juízes no ano de 2007, – média de 1,2 mil por dia – em todo o País, o corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), César Asfor Rocha, declarou-se perplexo, oportunidade em que disse não ser possível compactuar com excessos. À época, a edição de normas para evitar abusos e omissões de juízes na autorização de grampos telefônicos estaria em andamento e a fala do ministro encontrou eco em outros setores críticos do judiciário, que enfatizaram ser a interceptação uma exceção, não uma regra; um dos recursos, não o único; e, finalmente, que nenhuma investigação deveria começar pelo grampo.

Faz coro com aqueles magistrados a grande imprensa, e, lógico, pessoas confiantes na impunidade que, não obstante a "onda de grampo", continuam revelando intimidades criminosas por telefone. Setores, aliás, que encontram eco na precariedade do instrumental jurídico arcaico, sobretudo vulnerável às ingerências políticas, a tal ponto de veículos de imprensa pedirem providência sobre providências em andamento e políticos oportunistas liderarem Comissões Parlamentares para investigar o já investigado. E, como disse o delegado federal Otto Oliveira, em recente artigo, tudo transcorre num clima em que a Polícia Federal tem a boca torta pelo cachimbo da ditadura, se digladia para trabalhar com um instrumental ultrapassado, que a elite critica, mas resiste em reformar, e disso tira proveito.

De qualquer forma, a questão das interceptações telefônicas comporta outro enfoque. A cogitada banalização da quebra ou violação de sigilo não parece ser maior ou mais grave do que a divulgação de documentos sigilosos pela imprensa. Gravações telefônicas são divulgadas às escâncaras, documentos sigilosos são parcialmente ou integralmente transcritos ou citados sem a menor cerimônia. Qual o interesse? O uso da palavra interesse é proposital, já que a imprensa, por meio de um acordo branco, tem se abstido de divulgar notícias sobre sequestros de grandes e médios empresários, para garantia de “um bem maior”. Uma lógica que se aplica às televisões, quando deixam de exibir imagens consideradas “fortes”. Nada contra. Vale o registro pela falta de isonomia quando o bem maior é o interesse de Estado. Um debate que precisa se desenvolver sob a perspectiva do argumento de alguns profissionais de imprensa de que a eles não cabe o dever de guardar sigilo, exceto o da fonte. Disso deriva outra discussão sob o ponto de vista da ética, da moral, quando confrontado com o interesse público. Mas aí, vale a lei do furo jornalístico, o da exclusividade, vale outra moral.

Nesse sentido, com a mesma ênfase que se criticam as interceptações telefônicas, e a suposta banalização das quebras de sigilo, não criticam a banalização de vazamento de documentos oficiais sigilosos ou reservados. Serve de exemplo a divulgação de um relatório do Exército no Rio de Janeiro. O documento confidencial ou sigiloso relata a reação dos moradores e dos traficantes do morro da Providência quando da chegada dos militares. O registro conteria nomes e endereços de pessoas envolvidas com o tráfico, as armas que possuem, pontos-de-venda de drogas. Há, ainda, notícia de suposta corrupção de militares, tráfico de influência de assessores do governo do Rio de Janeiro junto a traficantes daquele Estado e de um suposto acordo entre autoridades e bandidos, ainda não muito bem esclarecido. Não se trata de ser verdade ou não e não é esse o foco desta discussão. O fato é que detalhes desse relatório confidencial do Exército foram divulgados, entre outros, pela Rede Globo de Televisão e jornal Folha de S. Paulo, seguidos de outros veículos de informação. Com igual ênfase, relatórios ditos confidenciais, fiscais, bancários e outros, protegidos por sigilo judicial, foram divulgados em casos como operações Vassourinhas, Anaconda, Hurricane, Sanguessuga e outras. Não só, uma conversa entre um advogado e sua cliente foi divulgada, quando este a orientava ("chore!"), deixando a sociedade perplexa. Também sem muita reserva ou reflexão ética, e não faz muito tempo, veículos de imprensa divulgaram uma conversa entre dois ministros do Supremo Tribunal Federal, quando estes dialogavam pela Internet, durante uma sessão daquela Corte de Justiça.

De outro giro, não apenas as conversações telefônicas são protegidas com reservas legais. Operações financeiras, questões fiscais, sigilo telemático, sigilo médico, sigilo de auditoria, sigilo da fonte (para jornalistas), sigilo profissional. Cada tema protegido por sigilo tem lei específica e prevê responsabilidade. Vazamento é crime. Existem, em tese, punições administrativas no caso de servidores públicos e assemelhados, que respondem também criminalmente. Um delito que comporta coautoria. No caso do vazamento de banco de dados da Casa Civil, por exemplo, recorreu-se ao Artigo 325 do Código Penal Brasileiro.

Traçado esse panorama factual, o que se pretende é debater uma vertente da divulgação do relatório sobre a conclusão do inquérito em que foi indiciado o delegado federal Protógenes Queiroz. Execrado pelos indícios de que pode ter propiciado o vazamento de informações, divulga-se, sem pedir explicações ou sem maiores questionamentos, quem vazou tal documento, também protegido por sigilo.

Estando o vazamento inserido no cotidiano brasileiro, estaria ele, hoje, equiparado ao crime de atentado ao pudor e adultério?

De acordo com a Teoria da Adequação Social, preconizada por Hans Welzel, uma conduta, ainda que criminalmente típica, pode tornar-se atípica quando se adapta aos valores sociais, ou seja, quando uma conduta antes intolerada passa a ser aceita. Na mesma linha, o jurista espanhol, Mir Puig, pontificou uma indagação intrigante: pode o Estado reprimir uma conduta que a sociedade não condena? Esse mesmo autor, quando analisa os denominados bens jurídicos – entendam-se aqui como tais os valores socialmente consagrados –, assinala que, para “serem protegidos penalmente e considerarem-se bens jurídicos penais, será preciso que tenham importância fundamental”.

Não dá para analisar os eventuais erros do delegado Protógenes Queiroz nesse aspecto, sem se questionar o grau de amadurecimento da sociedade brasileira, na medida em que se tem revelado absolutamente tolerante com os vazamentos. Há, pois, um quê de hipocrisia no fato de se condenar a interceptação telefônica e divulgação de dados confidenciais e não se ter o mesmo escrúpulos em divulgar o conteúdo. Há uma estrada de duas mãos com claros indicadores de que não existe divulgação sem vazamento e que por trás de todo vazamento existem pessoas ou instituições e divulgadores.

Diante da perspectiva de uma nova ordem institucional pós-Daniel Dantas, em que o vazamento, ainda que provocado pela própria defesa, só serve para fragilizar a prova, é impossível finalizar sem algumas indagações. Estará o ordenamento jurídico brasileiro convertido a mero jogo de palavras? Será o caso Protógenes o verdadeiro divisor de águas? Irá a sociedade brasileira institucionalizar ou banir o vazamento de sua história? Irá a Polícia Federal apurar todos os vazamentos com igual zelo? Será aberta uma nova Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar o vazamento da apuração sigilosa sobre o vazamento? Ou, como recentemente pontificou o delegado federal Rodrigo Bastos de Freitas, iremos continuar fingindo que, a pretexto de defender a Democracia e o Estado de Direito, estamos apenas concorrendo para inviabilizá-los?

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Armando Rodrigues Coelho Neto
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