O princípio de unidade familiar como fundamento para autorização judicial para viagem ao exterior de menor quando não há autorização do genitor

O princípio de unidade familiar como fundamento para autorização judicial para viagem ao exterior de menor quando não há autorização do genitor

Sustenta que o princípio da unidade familiar (Art. 226, CF) pode amparar decisões judiciais que autorizam a viagem de menores ao exterior, junto com o guardião, quando estes querem fixar ali seu domicílio.

Introdução

O que fazer quando a mãe, após a separação e tendo contraído novo casamento, dessa vez com um estrangeiro residente no seu país de origem, pretende estabelecer domicílio no local em que reside o atual marido, em companhia dos filhos, e quando o pai das crianças não autoriza essa viagem?

Em primeiro lugar, claro, a mãe deve propor ação visando o suprimento judicial, tendo em vista a negativa do pai em autorizar a viagem dos menores. Mas a solução do imbróglio jurídico é uma questão altamente complexa, não encontrando nem o advogado, nem o juiz, uma resposta fácil, uma vez que não existem fundamentos legais tão claros na legislação que possam suportar uma decisão favorável a essa mãe e seus filhos.

Ao contrário, a legislação dificulta a viagem dos menores, conforme teor do artigo 84, Incio II, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse dispositivo legal exige a autorização expressa do genitor, o que pode se configurar numa condição sine qua non, a critério da interpretação judicial. Em outras palavras, conforme o mencionado dispositivo, a autorização expressa de um dos genitores é uma exigência legal que pode dificultar em muito a decisão judicial, podendo até se tornar uma condição intransponível para que os filhos menores viajem ao exterior, mesmo em companhia de outro genitor.

Uma dificuldade a mais emerge quando se sabe que o genitor que não autoriza a viagem dos filhos também possui o direito de visita em relação aos mesmos, direito esse que pode se tornar menos efetivo dadas as dificuldades que surgem com o fato de os filhos, eventualmente, passarem a morar no exterior.

A questão pode ganhar um sentido de urgência quando a genitora conta com oferta de trabalho nesse país, e as crianças contam com vagas nas escolas do país destinatário, além de condições as mais favoráveis em relação à família que os vai receber, em termos de aceitação, de afeição e de segurança.

Pode acontecer, até, de o juiz concluir optar por ser muito cauteloso e decidir pela permanência das crianças com parentes (geralmente os avós), enquanto a mãe se estabelece em outro país, junto com seu atual marido.

Conflito entre a norma infraconstitucional do art. 84, II, do ECA com os princípios e garantias constitucionais

Todavia, eventual decisão baseada tão-somente no art. 84, II, do ECA, pode colidir com princípios e garantias fundamentais insculpidos na Carta Magna e se distanciar da melhor doutrina e da jurisprudência que tratam da matéria.

Na realidade, é um equívoco interpretar que um dispositivo legal e infraconstitucional (art. 84, inc. II, ECA), se configure como condição inexpugnável para a autorização judicial de viagem das menores. E isso, por razões doutrinárias e jurisprudenciais. São inúmeras as decisões de tribunais que autorizam a viagem de filhos menores mesmo quando não há a autorização paterna, nos casos em que o genitor que detém a guarda pretende fixar domicílio com seus filhos no exterior com o intuito de vivenciar novas alternativas de vida profissional e amorosa, refazer sua vida e também proporcionar melhores oportunidades para o desenvolvimento das crianças. O que se evidencia nessas decisões é que elas são guiadas por princípios e direitos constitucionais que têm e devem ter prevalência sobre os dispositivos legais infraconstitucionais.

Sobretudo é possível verificar, nesses casos, que o princípio constitucional da unidade familiar (art. 226, CF) – tem força preponderante para amparar decisões jurisdicionais relativas a pedidos de autorização para viagens de filhos ao exterior acompanhando o genitor que detém a guarda, sendo certo que esse princípio torna-se mais relevante ainda quando é do interesse de todos os membros do núcleo familiar a manutenção dessa unidade, cabendo ainda ressaltar que tal princípio mantém estreita sintonia com o direito fundamental de locomoção (art. 5º, XV, CF).

Realmente, não há qualquer dúvida sobre o direito da genitora de fixar seu domicílio em qualquer lugar, inclusive em outro país. E isto decorre de seu direito de locomoção, estabelecido no capítulo constitucional sobre os direitos fundamentais (art. 5º, inciso XV, CF: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”).

Mas, e quando a genitora é também guardiã de duas filhos menores? É claro que os vínculos materno-filiais construídos durante toda a vida não devem ser dissolvidos. Por isso, seu direito de locomoção deve ser assegurado com a premissa da manutenção da unidade dos membros da família, seus filhos, tudo em conformidade com o princípio constitucional da unidade familiar, o que evidentemente atende aos interesses das crianças.

Assim, o direito de determinar livremente o seu domicílio deve ser efetivado e combinado com a manutenção da unidade familiar, visto ser do interesse maior dos filhos menores a permanência desse núcleo familiar do qual há tempo eles são membros essenciais e uma vez que ele se constitui o lócus da fruição de sentimentos materno/filiais, da segurança afetiva e da formação da subjetividade, requisitos para o pleno e saudável desenvolvimento psíquico das mesmas, lembrando, ainda, que o direito fundamental de locomoção e o princípio da unidade familiar são cláusulas que não podem ser afastadas, exceto por evidências absolutamente claras de que a segurança dessa unidade familiar esteja lesionada ou ameaçada de sê-lo.

Evidente que o direito de visita do pai é de fundamental importância tanto para o genitor quanto para os filhos e não deve ser afastado. Eventual dificuldade em efetivá-lo não pode servir de obstáculo à concessão da tutela jurídica para a viagem dos menores eis que os direitos do núcleo familiar constituem alicerces e cláusulas inafastáveis do Estado Democrático de direito, quais sejam o direito de locomoção combinado com a manutenção da unidade familiar, sendo certo que o direito de visita estará sempre garantido ao apelado.

Fundamentos doutrinários e jurisprudenciais

Os fundamentos constitucionais acima expendidos são adotados pela melhor doutrina que defende de forma clara a prevalência do direito do detentor da guarda em fixar seu domicílio, tanto no próprio país quanto no exterior, junto com os filhos, onde se destaca o princípio da proteção da unidade familiar. Por todos, traz-se à colação o seguinte texto de Fernando Malheiros Filho.

“(...) pode o guardião deliberar sobre o domicílio próprio e de seus filhos sem a anuência do genitor visitante? Tudo está a indicar que essa deva ser uma decisão soberana e exclusiva do guardião, posto que não se pode imaginar que todo o núcleo familiar deste deve ficar condicionado exclusivamente ao interesse e conforto no exercício do direito de visitas do visitante. Nessa linha também impera o valor superior, de ordem pública, plasmada em princípio constitucional (CF, art. 226, caput), em favor da unicidade familiar, que merece a proteção do Estado e inspira a interpretação das normas jurídicas”.

Na seqüência, este mesmo autor se indaga sobre a questão quando envolve a mudança de domicílio do guardião para o exterior, fazendo a seguinte interpretação:

“A situação poderia envolver maior complexidade se a transferência de domicílio dá-se do país para o exterior, mas não parece que nem mesmo essa situação, ainda mais em um mundo interligado pela informática e pelas instituições, deva servir de obstáculo à guarda, presente o interesse do menor em manter-se na companhia do guardião, sempre considerando que a Carta Magna assegura ao cidadão o direito de ingressar ou sair do território nacional (CF, art. 5º, XV), e que para a viagem ao exterior a lei atribui ao Juiz a possibilidade de conceder a autorização (ECA, art. 83, § 2º), cuja concessão deve ter em mira os interesses do menor, nisso incluindo-se, a toda evidência, a preservação do núcleo familiar em que ele encontra-se inserido” [1].

Cabe destacar ainda, na esteira dos direitos constitucionais, o que é estabelecido pela Convenção de Haia, que ingressou no Direito Brasileiro através do Decreto Legislativo nº 79, de 15 de setembro de 1999, e do Decreto Presidencial nº 3.413, de 14 de abril de 2000. Esta convenção internacional é conhecida como “Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças”, e em seu art. 5º dispõe, expressamente, ser direito do guardião fixar a residência do menor.

Além da doutrina e dos fundamentos jurídicos relevantes que acima foram expostos, revela-se oportuno mencionar importantes decisões de alguns dos mais importantes tribunais do país que corroboram tal entendimento:

Agravo de intrumento Nº 70009596214

Sétima Câmara Cível -

Comarca de Porto Alegre

suprimento do consentimento. Autorização para viagem. Não apresentando o genitor qualquer motivo para negar a autorização para a filha acompanhar a genitora, que detém sua guarda, e que pretende fixar residência em outro país, cabível o suprimento judicial do consentimento. Agravo desprovido. Porto Alegre, 27 de outubro de 2004.

APELAÇÃO CÍVEL

Número do processo: 1.0024.05.572210-2/002(1)

Relator: ALMEIDA MELO

Relator do Acordão: ALMEIDA MELO

Data do acordão: 23/03/2006

Data da publicação: 26/04/2006

EMENTA: Civil. Processo civil. Competência. Juízo da Infância e da Juventude. Viagem de menor. Companhia da mãe. Exterior. Consentimento paterno. Suprimento. Autorização judicial. A competência do Juízo da Infância e da Juventude para expedir autorização para viagem de criança ao exterior, quando falta a anuência de um dos pais, decorre das regras do art. 84 e 148, IV, da Lei nº 8.069/90. No controle judicial de situações da espécie, deve o magistrado atentar, preferencialmente, para o bem-estar do menor, destinatário maior de sua decisão. Mantém-se o deferimento de autorização judicial, por tempo determinado, para viagem de menor ao exterior, em companhia da mãe, que exerce a sua guarda, quando necessária para suprir a falta não justificada do consentimento paterno. Rejeita-se a preliminar e nega-se provimento ao recurso.

Número do processo: 1.0476.05.001656-9/001(1)

Relator: CÉLIO CÉSAR PADUANI

Relator do Acordão: CÉLIO CÉSAR PADUANI

Data do acordão: 01/06/2006

Data da publicação: 06/06/2006

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. PEDIDO DE ALVARÁ JUDICIAL. PRELIMINAR. AGRAVO RETIDO. REALIZAÇÃO DE NOVA PERÍCIA. NEGAR PROVIMENTO. EXPEDIÇÃO DE PASSAPORTE DO FILHO. VIAGEM PARA O EXTERIOR. RESISTÊNCIA DO PAI. SUPRIMENTO JUDICIAL. POSSIBILIDADE. GUARDA DO MENOR INCUMBIDA À MÃE. INTERESSE DA CRIANÇA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

ACÓRDÃO

APELAÇÃO CÍVEL N° 85.325-410, da Comarca de ATIBAIA

RELATOR: J. ROBERTO BEDRAN

Desembargadores OSVALDO CARON (Presidente e Revisor) e CINTRA PEREIRA.

São Paulo, 14 de setembro de 1999.

EMENTA
Menor. Suprimento de consentimento do pai para viagem de filha com a mãe, que detém a guarda, ao Japão, em busca de melhores condições econômicas. Deferimento. Cerceamento de defesa inexistente. Procedência mantida. Apelação não provida.

2005.001.26378 - APELACAO CIVEL

DES. EDSON VASCONCELOS - Julgamento: 23/11/2005

DECIMA SETIMA CAMARA CIVEL

APELAÇÃO CÍVEL - SUPRIMENTO DE AUTORIZAÇÃO PATERNA PARA VIAGEM DE MENOR - GUARDA MATERNA RESIDÊNCIA NO EXTERIOR. A resistência do pai do menor apóia-se em situações subjetivas e hipotéticas. Abomina ao bom senso a pretensão de afastar-se um filho de sua mãe apenas por ser esta destituída de bens materiais, sendo certo que o suposto prejuízo decorrente do afastamento dos demais familiares cede diante do incomensurável abalo afetivo que representaria privar a criança dos desvelos maternos, merecendo salientar ainda que os valores da cultura européia que o menor poderá adquirir apenas acrescentará beneficio a seu acervo vivencial, já fornido em boa parte dos bons valores e do culturalismo nacional. Provimento ao recurso.

Conclusão

Pode-se concluir com duas formulações, complementares, que o presente estudo nos oferece: Verificamos, por um lado, que o mencionado dispositivo infraconstitucional do art. 84, II, do ECA, não pode ser entendido como a única condição absolutamente necessária para se autorizar a viagem de filhos menores ao exterior, acompanhando o genitor que pretende fixar domicílio em outro país. Não o é porque a matéria, da mais alta relevância, envolve direitos fundamentais e princípios basilares do Estado de Direito, sabendo-se que o processo de constitucionalização do direito de família ocorrido no país obriga que seus temas sejam interpretados conforme os princípios contidos na Magna Carta.

Por outro lado, o princípio da unidade familiar, constante do art. 226 da Constituição Federal, interpretado conjuntamente com o direito de locomoção do art. 5º, inciso XV, CF, tem força suficiente para amparar decisões jurisdicionais relacionadas à fixação do domicilio do guardião, mesmo quando o domicilio escolhido for no exterior.

Esperamos que o presente estudo ajude muitos pais e filhos a encontrarem a solução para situações que muitas vezes estão passando e que os colocam no seguinte dilema: ou viajam para ficar com o marido ou a esposa, deixando seus filhos, ou ficam com os filhos e deixam o marido, um dilema do tipo “a escolha de Sofia”. Nenhuma dessas situações, no entanto, é confortável. O que as pessoas precisam é manterem a unidade familiar e, junto com os filhos, refazerem sua vida e inclusive a vida dos filhos, ainda mais quando é essa a vontade expressa dos mesmos que querem, juntos, a oportunidade de um novo caminho.

Referências

[1] Fernando Malheiros Filho. Os princípios e a casuística na guarda dos filhos. Disponível em: http://www.gontijo-familia.adv.br/ Acesso em 10/06/2006.

Sobre o(a) autor(a)
Joberto. Luiz de Sales
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