Relaxamento regressivo da prisão em flagrante

Relaxamento regressivo da prisão em flagrante

O relaxamento da prisão em flagrante pela autoridade policial significa manter incólume um dos direitos mais caros do cidadão: sua liberdade.

Quando se fala em prisão em flagrante delito deve vir incontinenti à mente que a liberdade de alguém foi ou está na iminência de ser constrita. E no bojo dessa ilação há que se verificar a observância dos preceitos legais, e, sobretudo, dos constitucionais, pois daí se irradiam os postulados para a segurança e garantia das liberdades individuais, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, que repousa no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, pilar inarredável do Estado Democrático de Direito.

O Poder Judiciário é o guardião do cumprimento das leis, e por isso, no artigo 5º, inciso LXV da Constituição Federal determina: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Nesse particular, configura crime de abuso de autoridade eventual inação, conforme dispõe artigo 4º, alínea “d” da Lei 4.898/65 (“lei de abuso de autoridade”).

Logo, em última análise a autoridade judiciária é que tem o condão de relaxar uma prisão em flagrante delito. Em que pese a Carta Política exarar “prisão” de forma genérica, outro não deve ser o entendimento, já que se for outra espécie de prisão cautelar como no caso da prisão temporária ou preventiva haverá revogação e não relaxamento

O que se expendeu está hialino e ostensivo no ordenamento jurídico, mas a aplicação da lei nem sempre se dá nela mesma de modo isolado e estanque, máxime quando envolver um dos valores mais caros do cidadão, que é a liberdade, guindado à categoria de direito fundamental (artigo 5º da Constituição Federal). Assim, a interpretação tem de ser mais sistemática, teleológica e supeditada na principiologia constitucional.

Precipuamente tomemos a etimologia do termo “relaxar”. Esse vocábulo vem do latim relaxare, e dentre os vários sinônimos encontrados no dicionário Aurélio estão: diminuir a força ou a tensão, dispensar o cumprimento de (lei ou dever), atenuar, moderar, afrouxar, condescender, tornar-se negligente, perverter-se, desmoralizar etc.

Ora, como vemos o termo é equívoco e não unívoco, o que nos autoriza asseverar que não obstante a acepção empregada no texto constitucional ser a óbvia, nem por isso deixa de ter um sabor estranho quando emprestado para o campo jurídico.

Doutrinariamente muitos se debatem contra a possibilidade de a autoridade policial relaxar o auto de prisão em flagrante delito porque essa atribuição (competência) está expressa na Constituição Federal como sendo do juiz. Ousamos discordar e adjetivar tal posicionamento como simplista.

O que o artigo 5º, inciso LXV da Constituição Federal disciplina é que a autoridade judiciária fará o controle e fiscalização final, evitando possíveis equívocos e até mesmo indevidas arbitrariedades.

Muitos se arvoram em atestar que a prisão efetivada pela autoridade policial não é propriamente uma prisão, mas mero ato administrativo que só adquire o jaez de prisão quando homologada pela autoridade judiciária.

Difícil é convencer o cidadão segregado, o qual não sabe a diferença de cadeia pública e presídio, de ato administrativo e ato judicial, que ele se encontra “atrás das grades”, mas não está preso porque o juiz ainda não foi comunicado. Essa prisão seria então quase que uma ilusão de óptica.

Nossa opinião, que não encontrou eco na doutrina, sempre parcimoniosa nos assuntos envolvendo Polícia, é que o agente da autoridade quando captura o indivíduo estará indubitavelmente tolhendo sua liberdade, legal (art. 301 do Código de Processo Penal) ou ilegalmente. E uma vez levado à presença da autoridade policial, esta ratifica ou não a detenção, praticando assim o primeiro controle de legalidade acerca da supressão da liberdade.

O segundo controle de legalidade será feito também pela autoridade policial no momento em que ela fará um autocontrole de seu próprio convencimento e analisará a pertinência do recolhimento do conduzido. Denominamos esse ato de relaxamento regressivo da prisão em flagrante.

Destarte, se o fato cientificado à autoridade policial se afigurar numa potencial restrição da liberdade do cidadão e puder desde logo ser sopesado e aquilatado, findada a instrução provisória sem sobrevir justa causa para o recolhimento à cadeia pública, referida medida tem de ser afastada.

O terceiro controle da legalidade é feito pelo juiz, conforme comentado, sendo que nesse momento a liberdade do cidadão é albergada por máxima garantia, já que subsistindo alguma nulidade o magistrado intervirá imediatamente, tão-logo seja comunicado da prisão.

Não há dúvida de que o delegado de polícia, que é a autoridade policial por excelência converte a detenção realizada pelo agente da autoridade em prisão. Aludida transmudação é feita por meio de uma peça extremamente formal que é o auto de prisão em flagrante, cuja natureza jurídica é pré-processual quanto ao conteúdo, e processual quanto à forma, e que inclusive pode ter a nulidade absoluta argüida, medida processual prevista no artigo 564, IV do Código de Processo Penal.

Pela simples leitura da Carta Magna e Código de Processo Penal chegamos à conclusão que irrefutavelmente há prisão antes mesmo da comunicação ao juízo. Só para citar alguns dispositivos, o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal impõe que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (...)”. O mesmo artigo 5º, no inciso LXII menciona que “o preso será informado de seus direitos (...)”. Ainda o artigo 5º inciso LXIV aduz que “o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial”.

Cite-se ainda que a própria epígrafe do documento de flagrante chama-se “auto de prisão em flagrante delito”. E para dirimir qualquer dúvida, nos casos de captura feita pelos agentes da autoridade, o artigo 304 do Código de Processo Penal silencia a respeito da voz de prisão. Não obstante ser praxe nas delegacias de polícia fazer constar do auto de prisão em flagrante a “voz de prisão”, isso se constitui mera figura expletiva. O mais técnico seria consignar então “voz de detenção”.

Diferentemente ocorre no artigo 307 do Código de Processo Penal, porquanto aqui é a própria autoridade policial quem captura o indivíduo, e a voz de prisão se faz premente porque já se antecipou uma fase da prisão em flagrante, não sendo exigido agora que a autoridade policial converta a detenção, ato precário de custódia realizado por seus agentes, em prisão. Por isso, alhures nos referimos a “voz de detenção”.

Sem entrar em minúcias, já que este não é o objeto deste ensaio, a prisão em flagrante delito ocorre em três momentos distintos, quais sejam, a captura do indivíduo, a lavratura do auto de prisão em flagrante e o seu recolhimento ou não à cadeia pública (prisão-cautela).

Tal sustentação encontra guarida no artigo 304, § 1º do Código de Processo Penal, em interpretação contrario sensu: “Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão (...)”. Este parágrafo primeiro vem topograficamente imediatamente depois de estabelecidas as formalidades para a instrução provisória descritas no artigo 304.

E da mesma sorte que a autoridade judiciária pode cometer crime de abuso de autoridade por não relaxar a prisão ilegal, também a autoridade policial. É o que traz o artigo 4º, alínea “a” da Lei 4.898/65: “Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.

Fernando Capez sem se debruçar muito sobre o tema admite que o auto de prisão em flagrante delito seja relaxado pela autoridade policial desde que seja depois do recolhimento à prisão e antes da comunicação imediata ao juiz, ensinando eminente doutrinador que antes do término do auto e conseqüente recolhimento não há propriamente prisão. (Curso de Processo Penal, 13ª edição, editora Saraiva, p.262).

Discordamos nesse ponto do brilhante doutrinador, uma vez que ventilado raciocínio significa afirmar que para se corrigir uma ilegalidade ou um juízo de valor apressado deve-se chegar ao extremo de primeiro recolher o conduzido à prisão para que o ato se consume em todas as suas etapas, e aí exsurgindo um marco entre o cerceamento da liberdade e a comunicação ao juiz dentro desses lindes a autoridade policial está legitimada a retroceder da sua decisão. De acordo com o que sustentamos, esse relaxamento regressivo pode ser feito antes.

De outro lado, sem usar a expressão relaxamento de flagrante, Magalhães Noronha pondera que: “A captura do indiciado não importa seu recolhimento ou custódia (...) pode acontecer que, pelos esclarecimentos prestados, a autoridade verifique, v.g., não ter havido crime e sim apenas um ilícito civil; que não é o capturado o autor do crime; que se acha extinta a punibilidade (novatio legis etc.) e outras causas ou circunstâncias (...) deverá nesses casos, a autoridade soltar o capturado, a menos que prefira remeter incontinenti o auto ao juiz para que decida” (Magalhães Noronha, Curso de Direito Processual Penal, Ed. Atual. Por Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha, ed. Saraiva, 1998, p. 216).

No mesmo norte, porém mais consentâneo com o que defendemos Guilherme de Souza Nucci no seu Manual de Processo Penal e Execução Penal, utilizando o fundamento do artigo 304, §1º contrario sensu do Código de Processo Penal já comentado por nós, admite que a autoridade policial proceda ao aventado controle de legalidade antes de se recolher o conduzido à prisão.

Essa discussão não é meramente teórica e acadêmica, como autoridade policial muitas vezes nos socorremos desse instituto, seja porque dentre os vários conduzidos no auto de prisão em flagrante delito, contra um ou alguns deles não se amealhou indícios firmes para a manutenção da prisão ou em razão de qualquer outra causa que formou o convencimento pela inexistência de justa causa.

Talvez a resistência da doutrina para admitir o relaxamento da prisão pela autoridade policial seja em função da nomenclatura, tanto que muitos apregoam que se não trata particularmente do relaxamento, mas de um juízo negativo de valor.

Eufemismos jurídicos a parte, como primeiro garantidor das liberdades individuais, a autoridade policial tem obrigação de colocar o cidadão em liberdade caso não haja suporte probatório mínimo para a prisão cautelar de flagrante delito nem razoabilidade fundada no devido processo legal material, implícito no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal.

Sobre o(a) autor(a)
João Romano da Silva Junior
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá, Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura de Maringá/Paraná, Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito da FMP-RS...
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