O aluno se interroga (ou o curso de Direito no banco dos réus)

O aluno se interroga (ou o curso de Direito no banco dos réus)

Coloca em questão o que se tem tido como curso de Direito. Analisa as forças que conduzem o aluno desde o início do curso até seu término. Força para desconstruir esse direito de patuscada. Análise crítica da crítica ao Direito.

Interrogar-se é uma atitude ao menos intrigante, pois envolve o ato de percorrer um campo especial das relações poder-saber que, interage em efeitos com essas relações: o cuidar de si. Ao questionar-me, em especial sobre meu curso de direito, tenho em mãos, e em vista, algumas práticas de inquisitio e algumas práticas de resolução, na medida em que a cada ponto tocado, é possível mostrar um outro ponto que equivale a uma resposta (enquanto coisa posta, res posta) dada por certo sujeito inserido em uma trama de relações de poder e de saber. Em outras palavras, colocar meu discurso acerca do curso de direito envolve práticas que me perpassam e atravessam, práticas sobre o cuidado do sujeito (o cuidar de si que Foucault discutiu) e da criação do sujeito. Sendo assim, passarei a analisar aqui, sob um olhar arquivista, um olhar arqueológico, em suma, que vise a fazer aparecer as peculiaridades do curso de direito no que tange às relações de poder.

As práticas de investigação aplicadas parecem-me pertencer menos a um questionário do que a um relatório. Isso porque ao invés de tentar abordar as relações de força, de interdito, de permissão que se travam durante o curso de direito do ponto de suas intenções, de seus fins, o que tenciono é abordá-las a partir de seus meios de afirmação, de seus meios de atuação.

O presente texto se intitula como um interrogatório desse sujeito que sou porque neste momento histórico, este indivíduo é reconhecido, entre outras idiossincrasias, como estudante de direito. Daí a vontade de interrogar-me, daí a exteriorização de questões que há um certo tempo me tenho posto quanto ao dito curso de direito, daí que seja também, de certa forma, um interrogatório desse direito que se formou desde há muito tempo.

Inicialmente, a idéia me surgiu da necessidade compartilhar (não sei se é bem preciso esse termo) algumas inquietações que me chegaram e chegam sobre o curso de direito: o que espera um indivíduo ao se tornar aluno de um curso de direito? O que esse aluno passará a ter como direito durante e após a realização do curso? Quais as relações de forças que atuam na percepção do direito pelo aluno? Eis algumas delas.

Pretendo fazer aqui algo como uma observação do trajeto percorrido pelo aluno durante o curso, algo quase como mostrar a materialidade das relações de força que conduzem o indivíduo nesse estágio do saber.

Respondendo às três primeiras questões que coloquei, quero começar pela última. A percepção do direito pelo aluno do curso está mais ligada a eventos de força, a eventos de interdito, de permissão do que ao contato que tem com o plano de ensino da instituição. Não que esse plano não seja influente na percepção, mas é que ele parece atuar subsidiariamente, pois vê-se que as práticas de uma vária rede (permissões, interditos, exames, forças etc.) tem lugar primeiro na realização dessa percepção. Isso porque são essas práticas de força, de interdito etc. atuantes juntamente ou sobre o plano de ensino que constituirão os signos de percepção do direito. E cabe ressaltar aqui que ao que me parece, é mesmo do modo contrário ao que Husserl falava que se dão os eventos de percepção. Já disse ele que “é necessário separar completamente a percepção que dá o objeto, do enunciado que o pensa e o exprime...”. Ora, como separar a percepção do enunciado se só é possível perceber porque houve significação? Isto é, a coisa não tem um sentido, tem um significado. E mais: como separar, se é mesmo esse enunciado que vai tratar de construir a percepção, se só se percebe após se ter formado um enunciado? Ao que parece, é só depois de entrar na coisa que o indivíduo consegue perceber algum sentido (significação) dela. Isso porque, só após empregar ou participar de determinadas relações (que muitas vezes serão aquelas de interdito, permissões etc.) é que se poderá dizer que a coisa tenha um sentido, mas não porque ela o tenha, e sim porque se construiu um para ela, ou seja, se fez antes o processo de significação (signa facere, tornar signo).

Pois bem, dessa forma, é importante que se analise os modos de percepção do direito, mas daquele lado pelo qual se poderá ver antes as forças que atuam na construção de seu significado, pelo lado que subtraia o sentido que se quer fazer existir, pois o que há são signos. Aqui já se pode falar na vontade de verdade que é subjacente ao discurso de apresentação do direito. Existe um discurso (e aqui já volto à primeira pergunta colocada) que trata de exibir, de expor o curso de direito quase que como uma propaganda à grande quantidade de pessoas que almejam cursar um estudo definido como superior. Dois aspectos, ao menos, devem ser analisados aqui.

Primeiro, que os cursos acadêmicos tenham se transformado (seria preciso um estudo à parte para detectar o momento de tal transformação, bem como o solo que a tornou possível) em metas profissionais, ou seja, meros instrumentos para a obtenção de melhores condições econômico-financeiras. Especialmente, o curso de direito passou a ser divulgado como ampliador de tarefas mais rentáveis. Ora, talvez esse seja um dos acontecimentos ligados a vários outros eventos que ocorrem durante o curso como a potencialização do fenômeno da resistencialização, ou da formação tecnicista, ou ainda da limitação do saber a alguns campos. Note-se a relação: o aluno entra no curso com a idéia de que ele servirá para lhe proporcionar melhores condições econômicas ou financeiras. Daí que o fenômeno da resistencialização possa ser tão largamente potencializado em suas forças, permitindo a liberação dos efeitos de poder peculiares a esse capilar: a oposição à maioria de idéias (mais especificamente, vontades de saber) contrárias às idéias com as quais ingressou no curso. Em outras palavras, aquele conjunto de noções, reflexões e estudos que não puder ser concebido ou enquadrado no plano do aluno, contra ele se fará uma resistência, tornando-se difícil a apreensão de outros saberes. Da mesma forma, nota-se o implemento de um ensino tecnicista, ainda que crítico, pois até mesmo essa crítica será filtrada pelo resistencialismo da relação de poder pedagógico e servirá apenas para um aprimoramento da técnica usada e ensinada pelo curso.

Segundo, que a atuação da primeira relação de poder, citada acima, produza (ou, ao menos, influa) a produção de uma outra, que é a divulgação do direito como sendo esse meio, esse instrumento de propulsão econômica de que se tem falado. O direito é uma relação, como há um certo tempo já venho dizendo: é uma relação que tem por escopo unicamente realizar um discurso de pressão sobre o poder quando esse se torna perigoso para um determinado indivíduo. O direito não tem outro papel a não ser esse de atuar em prol do indivíduo lesado pelo poder. Não tem o escopo de criar normas, muito menos de analisar valores morais: isso é o poder que realiza. O direito somente atuará quando esse poder se tornar por demais penoso para um indivíduo, por meio de um discurso de pressão (que pode ou não ser reconhecido pelo poder). Qualquer outro fim atribuído ao direito já não é mais particular a ele, e sim a práticas de poder que vêm se apresentando como direito à sociedade que se instaurou após o final do século XVIII (ao que parece, mais precisamente, após a Revolução Francesa). Isso que a teoria geral do direito, divulgada desde a metade da idade clássica tem mostrado como direito, na verdade são práticas de poder que se apresentam, se mascaram como direito. Daí a necessidade de se arranjar homens capazes de sepultar o direito, esse direito que desde aquele tempo tem se apresentado, para que se possa dar vida (visibilidade) ao que realmente é o direito, ao direito antidisciplinar. Entenda-se: o direito é antidisciplinar porque não tem regras estabelecidas pelo poder. O poder o limita, sim, mas sua atuação é a mesma, sempre. Quando se notar o direito estabelecendo normas, regras de conduta social etc., arranquem os punhais e não tenham dó: isso não é direito!, é uma prática de poder que certamente estará exacerbando seus limites sobre alguém. É justamente aqui que aparece o direito verdadeiro (como se o direito falso fosse direito!): o direito só age quando notar uma atuação perniciosa do poder sobre determinado indivíduo, e só poderá realizar, em prol desse indivíduo, uma pressão sobre a relação de poder que estiver danificando o indivíduo, pois não tem outros meios para atuar. Ao final, cabe ao poder reconhecer ou não a pressão realizada pelo direito, cabe ao poder mesmo retroceder sua atuação perniciosa sobre o indivíduo ou ignorar o discurso do direito. Por mais uma vez; o direito não estabelece normas ou regras sociais, muito menos é capaz de melhorar as condições econômico-financeiras de alguém: isso tudo é o poder quem produz.

Passando a analisar mais detidamente as relações interiores entre saber-a-ser-passado e saber-a-ser-adotado, quero expor uma questão, a princípio, temporal.

Somente após um considerável tempo (agora no sétimo período do curso de direito) consigo me perguntar se o que me tem sido fornecido como estudo realmente compreende um campo de análise do que venha a ser o direito ou se constitui, em contrário, em campo de treinamento frente a práticas diversas. Ou seja, trata-se de notar dois pontos. Primeiro: que durante os primeiros períodos do curso, apesar de serem ministradas matérias como filosofia geral, filosofia jurídica, sociologia e introdução ao estudo do direito, não é colocada a questão de o que é o curso de direito. Segundo: que as práticas ensinadas no curso são menos referentes ao estudo do direito e mais a técnicas de controle e execução das leis existentes.

Quanto à primeira questão, ao que parece, se pode dizer que ao questionar o que é o direito, as ditas matérias teóricas se furtam à questão de o que é o curso de direito. Uma tal análise levaria ao questionamento da própria teoria do direito, à medida que se perceberia - é de se esperar - que o curso de direito não engloba uma análise do direito, e sim de práticas outras que em muitos poucos casos tocam o direito. Quanto à segunda questão, o que tenho por ora a dizer é que as tais práticas ensinadas no curso de direito constituem, de longe, algo que fica a dever o caráter de jurídico. É que, ora, não se pode conceber como direito essas práticas matematicamente e até mesmo freudianamente - por que não? - preparadas, ordenadas para o ensino ministrado no curso. O direito parece ser, desde há muito - e é preciso remontar às teorias gerais do direito - algo bastante diferente do que se tem ensinado sê-lo.

Nessa esteira, o saber a ser passado torna-se discutível, na medida em que se pode desconfiar de sua idoneidade, vale dizer, se pode indagar se realmente é um saber jurídico. Pois o saber a ser passado inverte-se com o saber a ser adotado, pois ao invés de se adotar saberes jurídicos, adota-se saberes técnicos, saberes que ficam a dever seu caráter jurídico. E tal problema vai muito mais além do que a mera relação oferta-aquisição de saber: há a figura do professor e a figura do aluno. Em outras palavras, não há indivíduos que estudam determinado saber: há o indivíduo-professor e o indivíduo-aluno. Isso significa que ao criar-se tais sujeitos (Foucault já falara da capacidade criativa do poder) estabelece-se toda uma teia de exercícios e práticas que conduzem e transportam o saber. O saber torna-se algo dúctil, algo canalizável. A partir desse momento então (criação, gênese – merece uma comparação cristã?) estabelece-se uma íntima ligação entre o indivíduo-aluno e seu futuro como indivíduo-instruído: não há mais tanta liberdade em se buscar o saber por várias formas, tem-se o professor, dispositivo que as práticas de poder souberam através dos tempos construir para vigilância da sapiência. É que o professor, passou a ser (se sempre não tenha sido) considerado como fonte do saber, e não como vetor do saber: ao invés de se percebê-lo como transmissor, como ponto de conversão do saber, foi possível, com a vária teia do poder pedagógico, tê-lo como fonte do saber. Daí a cômoda posição em que se encontram os tais alunos, que ingressam no curso com aquela visão de ascensão sócio-econômica. Será somente considerado como válido aquilo que for passado (dado) pelo professor. Daí a ampla atuação do fenômeno da resistencialização à apreensão de novas formas de conhecimento. Daí o uso da pedagogia da velha posição cristã neo-testamentária de senhor-servo. A passagem jônica nunca foi mais audaz: και γνοσεστε τεν αλεθεια και η αλεθεια ελευτεροσει υμας (e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará).

Mais uma questão há de ser abordada quanto ao saber ensinado. É interessante fazer a mesma pergunta de Pilatos: quid veritas? (o que é a verdade?). Seria ela aquilo que os gregos chamavam αλεθεια (para os gregos, a verdade era aquilo desvendado, desvelado, alethéia). Será mesmo que ainda hoje se pode ter a verdade como algo desvendável? Ainda mais em um curso jurídico, ambiente propício para discussões sobre aparência e realidade! Não, não mais. Ao que parece – isso se tomarmos como esteira a análise que pode se chamar desconstrutiva de Foucault e Nietzsche – a verdade já passou, há muito, a ser criável. E não criável por alguma forma de metafísica, não. Criável por práticas sutis de poder, exercidas pelos indivíduos em suas várias relações sociais. Por isso a importância de se tocar essa questão em sede de curso jurídico: o que é o direito? Qual a sua verdade? Qual o seu erro? Colocar respostas a tais questões depende muito mais da análise de como são passados os conceitos de direito, de verdade e erro do que necessariamente o significado de cada conceito em particular. Isso quer dizer que há tanta (ou mais) importância em se notar como, de que forma são passados os conceitos, os métodos do objeto do curso jurídico (o direito?) do que a explicação que se dá a esse objeto. É por isso que não se preocupa em mostrar o que seja o direito e sim como ele funciona, porque assim, constrói-se, ao menos indiretamente, seu conceito. Ocorre que tal conceito, como vimos, é deturpado desde longa data, talvez por força dessa prática de informação que mostra mais um poder em atuação (camuflado de direito) do que o direito em si.

Findando o presente artigo, mais uma pequena observação: seria necessário, para que se começasse a destruir esse direito que aí está (esse poder disfarçado), que se incluísse a questão do que é o poder nos planos de ensino de um curso jurídico, pois não há como ter noção do que venha a ser o efetivo direito sem se passar por uma análise do poder. O direito ainda há de ser um capítulo no estudo do poder, forçosamente. Isso se se quiser realmente por à mostra o verdadeiro local do direito.

Sobre o(a) autor(a)
Saymon Mitchel Mamede
Estudante de Direito
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