A obrigatoriedade das decisões judiciais
Analisa os fundamentos legais que obrigam o Poder Judiciário a proferir uma decisão ao caso concreto posto em juízo.
INTRODUÇÃO
O homem é um ser sociável e, devido a essa natureza, por não alcançar a plenitude isoladamente, está obrigado a manter contato com outros homens. Assim sendo todas as pessoas dependem do intercâmbio, da colaboração e confiança recíproca. Inobstante, o homem é um animal insatisfeito, insatisfeito precisamente em relação aos que convivem com ele.
Desta forma desde que se formaram os primeiros círculos sociais, na remota antiguidade, deve ter-se delineado a figura do juiz, pessoa encarregada de resolver questões surgidas entre os membros do grupo.
Inevitáveis os conflitos de interesses, o choque das paixões, naturalmente alguém havia de ser convocado a diminuir desavenças, sob pena de ser colocada em risco a própria manutenção da vida em sociedade.
Nos grupos primitivos, a ordem interna era mantida por um chefe, dotado de qualidades que o destacavam diante do grupo, tocando a ele, entre outras prerrogativas, o julgamento de dissídios e imposição de penalidades.
O professor André Franco Montoro, em livro clássico, escreveu: “(...) não se pode conceber uma sociedade humana em que não haja ordem jurídica, mesmo em se tratando de um estado rudimentar. Isto se exprime em latim pelo adágio conhecido Ubi soccietates, ibi jus (Onde há sociedade, há direito)”. (Introdução à Ciência do Direito. 24ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 54).
A progressiva complexificação social, além do aumento populacional e territorial obrigava a delegação de certas atribuições a pessoas de confiança do chefe ou príncipe, que cada vez mais se encontravam impossibilitados de atender pessoalmente a todas as demandas sociais. Permanecia a autoridade nele, mas o seu exercício tinha de ser dividido entre várias pessoas. Tal fato é um imperativo natural da especialização de funções e da divisão do trabalho.
O Ministro Mário Guimarães entreviu nesses fatos o surgimento da função de julgar, tão antiga como a própria sociedade.
“Na família, forma rudimentar da coletividade, juiz é o pai. No clã, é o chefe, em cujas mãos se concentram, habitualmente, todos os poderes, é o rei, o general, o sacerdote, o legislador, o juiz”.
“Quando se torna a grei mais numerosa, crescem e se complicam as relações humanas. O rei, absorvido por outras atividades, máxime as de guerra, não terá tempo de prover a todos os dissídios do seu povo. Cometerá tais funções a um preposto. Destaca-se, nesse momento, a entidade do juiz....” (O Juiz e a Função Jurisdicional. Rio, 1958, p. 19).
A Justiça de mão própria pela tendência a exceder os limites do necessário à defesa de cada um nos casos concretos, não podia subsistir, havia de ser substituída por outro sistema, no qual o juiz seria pessoa alheia aos interesses dos litigantes.
A princípio com atribuições compreendendo questões administrativas e religiosas, foi-se restringindo a função judicante ao mesmo tempo em que se desenvolviam as relações sociais, até chegar-se à situação atual, em que se destaca um Poder próprio, autônomo, composto de órgãos singulares e colegiados, servido por não menos numeroso conjunto de auxiliares especializados: o Poder Judiciário.
O Estado, supressa a Justiça pelas próprias mãos daquele que se diz vítima de ameaça ou seu direito, a todos promete o remédio da prestação jurisdicional, isto é, a tutela jurisdicional, direito de defender em juízo o que é seu, o que lhe pertença, na forma prescrita em lei.
Assim, o Estado tomou para si o poder e o dever de, com exclusividade, resolver de forma imparcial os conflitos de interesses entre os particulares e até mesmo os conflitos de interesses entre o Estado-Administração e os administrados.
Salvo casos excepcionais, só aos juízes compete dirimir as dissidências, os conflitos, vale dizer, o Estado possui o monopólio da jurisdição, isto é, somente o Estado-Juiz possui a prerrogativa de dizer o direito aplicável a um fato concreto, solucionando um conflito de interesses em caráter definitivo.
Nenhum juiz, entretanto, prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas da lei. O lesado tem de comparecer diante do Poder Judiciário, o qual, tomando conhecimento da controvérsia, se substitui à própria vontade das partes que foram impotentes para se autocomporem. O Estado, através de um de seus Poderes, dita, assim, de forma substitutiva à vontade das próprias partes, qual o direito que estas têm de cumprir;
O juiz exerce a jurisdição com independência jurídica e política. Livre da submissão a qualquer dos Poderes ou a qualquer entidade, profere suas decisões, formula e emite seus juízos obedecendo apenas às prescrições da lei e aos ditames de sua consciência.
A FUNÇÃO JURISDICIONAL
Primitivamente, o Estado era fraco e limitava-se a definir os direitos. Competia aos próprios titulares dos direitos reconhecidos pelos órgãos estatais defendê-las e realizá-los com os meios de que dispunham.
Eram os tempos da justiça privada ou justiça pelas próprias mãos, que, naturalmente, era imperfeita e incapaz de gerar a paz social, pois a defesa do direito por atividade própria acaba transmudando-se no império do mais forte. Vencia a lide aquele que intimidasse o adversário. O que valia era a força bruta, e não o direito.
Com o surgimento da escrita, gravaram se as férreas normas da legislação mosaica expressa no Pentateuco e a Lei de Talião, consagrada no ordenamento babilônico, mas comum a todos os povos da época. Com a evolução das relações sociais nos primórdios da civilização, já por volta de 1711 e 1699 a. C., com o Código de Hamurabi, temos uma das primeiras composições das leis escritas, com tribunais minimamente organizados, onde é possível se identificar uma forma de arbitramento.
A necessidade de se pacificar o grupo e estabelecer a ordem jurídica, levou a sociedade a desenvolver uma intervenção no campo da administração da justiça. Na luta contra a autodefesa, o Estado começou a discipliná-la e limitá-la, para depois excluí-la por absoluto. João Paulo Lucena, citado por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, afirma ser assim que surge o interesse social, excludente dos conflitos e perturbação da ordem pública que representava a justiça privada, oriundo de dois fatores primordiais: a proibição expressa pelo Estado e a renúncia do indivíduo na realização da justiça particular (Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, Elementos para uma nova Teoria Geral do Processo, p. 90).
Fazia-se, à época da idade média, imperiosa a limitação do poder então absoluto, sendo, assim, concebida a teoria da separação dos poderes, que representa hoje um dos pilares do constitucionalismo moderno.
Desde Aristóteles reconhece-se que a função estatal é suscetível, em razão das diferenças que apresenta, de ser dividida num certo número de categorias, agrupando cada qual aqueles atos do Estado que apresentam, entre si, traços de uniformidade. O próprio Aristóteles já fixava em três essas categorias.
O primeiro a elaborar uma teoria da divisão de poderes sistematizada foi John Locke, inspirado na Constituição Inglesa, dizendo ser necessário que as funções do Estado fossem exercidas por órgãos diferentes: Executivo, Legislativo, Confederativo (Relações Internacionais) e Discricionário (atribuições extraordinárias que o governo exercia de acordo com as leis), tendo por fundamento a limitação do ente juspolítico.
Neste aspecto, cabia à expressão jurisdicional do poder declinar o direito, mesmo quando o Estado-Administração fosse parte na relação processual. Coube ao Poder Judiciário a predominância da jurisdição, vale ratificar, dizer o direito.
Foi, no entanto, Montesquieu quem melhor sistematizou a chamada repartição dos poderes estatais, propondo um sistema de organização e funcionamento do poder estatal de modo que cada órgão desempenhasse uma atividade distinta, ao mesmo tempo em que a atividade de cada qual servisse de contenção da atividade de outro órgão.
A preocupação de Montesquieu era a defesa da liberdade contra o poder político, único existente na época. Para alcançar esse fim dividiu o exercício do poder entre as diferentes classes sociais (estamentos) que constituíam a sociedade, única forma eficaz de impedir a opressão de uma classe por outra.
Hoje se fala de separação de órgãos, especialização de funções e, sobretudo, cooperação entre órgãos, para que o poder limite o poder. Então, quando se fala em “separação de poderes”, não se cogita de exclusividade, mas preponderância de funções.
Sendo ilimitadas as pretensões humanas e limitados os bens para satisfazê-las, inevitável é o conflito, situação em que surge a insatisfação. Com isso, a existência de uma ordem reguladora, como o é o direito, é insuficiente ante a possibilidade do seu descumprimento. Mas a insatisfação é fator anti-social por excelência, provocando a desagregação e a instabilidade social. Por isso é necessária a criação de mecanismos destinados a tornar suportáveis os conflitos sociais.
No direito primitivo, esses mecanismos eram a autocomposição e a autodefesa. Como o Estado de Direito não tolera a justiça feita pelas próprias mãos dos interessados, caberá à parte deduzir em juízo a lide existente e requerer ao juiz que a solucione na forma da lei, fazendo, de tal maneira, a composição dos interesses conflitantes, uma vez que os respectivos titulares não encontraram um meio voluntário e amistoso para harmonizá-los.
Tomando conhecimento das alegações de ambas as partes o magistrado definirá a qual deles corresponde o melhor interesse, segundo as regras do ordenamento jurídico em vigor, e dará composição ao conflito, fazendo prevalecer a pretensão que lhe seja correspondente.
Saliente-se, ainda, que no direito moderno jogam papel bastante relevante a defesa de terceiro, a mediação e o processo. Daí o papel da jurisdição, função do Estado moderno.
Por outro lado desde que o Estado privou os cidadãos de fazer atuar seus direitos subjetivos pelas próprias mãos, a ordem jurídica teve que criar para os particulares um direito à tutela jurídica estatal. Em conseqüência, passou o Estado a deter não apenas o poder jurisdicional, mas também assumiu o dever de jurisdição.
Em renomada obra, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, mencionando o festejado mestre Arruda Alvim, prelecionam que podemos, assim, afirmar que a função jurisdicional é aquela realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista aplicar a lei a uma hipótese controvertida mediante processo regular, produzindo, afinal, coisa julgada, com o que substitui, definitivamente, a atividade e vontade das partes (Comentários à Constituição do Brasil Promulgada em 13 de outubro de 1998. São Paulo, 1997, 4º volume, tomo III, p. 13).
Cândido Rangel Dinamarco define jurisdição como: “... a atividade pública e exclusiva com a qual o Estado substitui a atividade das pessoas interessadas e propicia a pacificação de pessoas ou grupos em conflito, mediante a atuação da vontade do direito em casos concretos” (Fundamentos do Processo Civil Moderno. São Paulo, 2000, p. 115).
Ao criar a jurisdição no quadro de suas instituições, visou o Estado a garantir que as normas de direito substancial contidas no ordenamento jurídico efetivamente conduzam aos resultados enunciados, ou seja: que se obtenham, a experiência concreta, aqueles precisos resultados práticos que o direito material preconiza. E assim, através do exercício da função jurisdicional, o que busca o Estado é fazer com que se atinjam, em cada caso concreto, os objetivos das normas de direito substancial. Es outras palavras, o escopo jurídico da jurisdição é a atuação das normas de direito objetivo.
A idéia de que o Estado procura a realização do direito material há de coordenar-se com a idéia de que os objetivos buscados são, antes de mais nada, objetivos sociais: trata-se de garantir que o direito objetivo material seja cumprido, o ordenamento jurídico preservado em sua autoridade e a paz e ordem na sociedade favorecidas pela imposição da vontade do Estado. O interesse que se satisfaz através do exercício da jurisdição é, pois, o interesse da própria sociedade.
As considerações acima expostas coadunam-se perfeitamente à moderna teoria da jurisdição de Gian Antônio Micheli que apresentou como nota distintiva do conceito de jurisdição, não tanto o caráter da substitutividade, como afirmou Chiovenda, mas sim o da imparcialidade do órgão que profere a decisão. A norma a aplicar, é, para a administração pública, a regra que deve ser seguida para que uma certa finalidade seja alcançada. Já para o órgão jurisdicional, a mesma norma passa a ser o objeto de sua atividade institucional, no sentido de que a função jurisdicional se exercita com o único fim de assegurar o respeito ao direito objetivo.
A jurisdição, para este autor, tem a sua principal característica não só na qualidade de terceiro do juiz – terzietà, mas também nos princípios da demanda e do contraditório. O juiz exerce a clara figura do terceiro imparcial, retirando o poder de decisão dos envolvidos ou partes, passando este poder a alguém que, não estando envolvido no conflito, pode melhor solucioná-lo.
A crítica contra a teoria desenvolvida por Micheli foi o questionamento de como o juiz pode representar um órgão imparcial, quando decide acerca de questões em que o próprio Estado é parte. Esta crítica é rechaçada lembrando-se ser o Judiciário um poder independente dos demais.
O DIREITO DE AÇÃO
O Estado almeja ter, numa perspectiva extremamente dogmática, o monopólio da produção e aplicação das normas jurídicas e quer ver efetivada a prevalência das fontes estatais do direito (lei e jurisprudência) em detrimento das demais fontes.
Para tanto, existem dogmas, tidos como “verdades inquestionáveis e indiscutíveis”, se bem que, na verdade, não o sejam. O compromisso do direito, como um todo, ao final, não é tanto com a verdade, mas com a dissolução de conflitos, a fim de tornar viável uma convivência intersubjetiva.
Há, então, a essencialização de dois princípios: princípio da inegabilidade dos pontos de partida (dogmas), também denominado princípio da negação; e o princípio da proibição do “non liquet”, neste o Estado decide tudo, sempre.
Em razão de o Estado ter assumido o monopólio da justiça, proibindo a autotutela, surge, em contrapartida, a necessidade de armar o cidadão com um instrumento capaz de levar a cabo o conflito intersubjetivo em que está envolvido. Esse direito é exercido com a movimentação do Poder Judiciário, que é órgão incumbido de prestar a tutela jurisdicional.
Através da função legislativa o Estado estabelecea ordem jurídica, fixando em forma preventiva e hipotética as normas que deverão incidir sobre as situações ou relações que, possivelmente, venham a ocorrer entre os homens no convívio social.
Assim o ordenamento jurídico atribui aos cidadãos “seus direitos” prefixando as pretensões que cada um pode ostentar diante dos outros, bem como estabelece os deveres dos vários integrantes do grupamento social juridicamente organizado.
Quando o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição da República solenemente assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, não só vem garantido o direito de ser pedida a tutela jurisdicional, com base na afirmação da existência de ato lesivo a direito individual, como também afirmado está que todo cidadão tem o direito de pedir ao Judiciário que obrigue o autor da lesão ou ameaça a reparar o ato danoso que praticou.
Explicito também quanto ao papel tutelar da jurisdição é o Código de Processo Civil, no seu artigo 2º, ao dispor, textualmente, que é tarefa da jurisdição civil prestar a tutela jurisdicional, quando a parte a requerer nos casos e formas legais.
Tem, assim, o autor, por meio do direito público subjetivo de ação que lhe foi conferido pelo Estado, um direito em face do próprio Estado, e, correlatamente, existe um dever da parte deste para com o indivíduo de lhe prestar a tutela. Esta regra é valida também para o réu no sentido de ser objeto de decisão, e, bem assim, qualquer outros incidentes levantados pelo demandado.
Destarte frente à violação de um bem juridicamente protegido, não cabe outra atividade que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo judicial – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não corresponde à vontade das partes e resulta na imposição da estrutura institucional, será solucionado o conflito e sancionado o autor.
Ressalte-se que mais do que imparcial (porque “impessoalidade” é requisito de qualquer agente que atue em nome do Estado em qualquer de suas funções soberanas e não tributo apenas dos juízes) o órgão jurisdicional é sempre um terceiro diante da relação material controvertida. Mesmo quando o juiz aprecia uma causa em que o Estado seja parte, a função jurisdicional fica a cargo de um organismo completamente estranho à Administração Pública e cujo único comprometimento é com a ordem jurídica.
Segundo a teoria do direito da ação, concebida pelo eminente processualista italiano Enrico Túlio Liebman, o autor não precisa ter razão para provocar a atividade jurisdicional, já que o direito processual de ação existe, mesmo que o direito material alegado não exista. Ademais, aquele corresponde a um agir contra o titular do poder jurisdicional, que é o Estado, sendo o direito de ação, em última análise, o direito à jurisdição.
A pedra de toque do direito de ação para Liebman é o direito a uma decisão de mérito sobre a demanda; assim, partindo do pressuposto de ser a ação um direito à jurisdição, é mister saber onde começa a jurisdição; para o autor em testilha, esta só existe quando o juiz pronuncia sobre o mérito – decide sobre a lide, seja esta decisão favorável ou contrária ao autor.
Dessa forma, o exercício da ação cria para o autor o direito à prestação jurisdicional, direito que é um reflexo do poder-dever do juiz de dar a referida prestação jurisdicional.
Pode-se, com isso, dizer que o direito fundamental à ação é a faculdade garantida constitucionalmente de deduzir uma pretensão em juízo, e, em virtude dessa pretensão, receber uma resposta satisfatória (sentença de mérito) e justa, respeitando-se, no mais, os princípios constitucionais do processo (contraditório, ampla defesa, motivação dos atos decisórios, juiz natural, entre outros).
Digna de comento é a teoria do direito de ação de Ovídio Araújo Baptista da Silva, segundo o qual a ação não se confunde com o direito subjetivo público de provocar a tutela jurisdicional. Segundo esse processualista “a ação não é um direito subjetivo público pela singela razão de ser ela própria a expressão dinâmica de um direito subjetivo público que lhe é anterior e no qual ela mesma se funda, para adquirir sua pressuposta legitimidade”.
E mais adiante complementa: “a ação será, em qualquer caso, o exercício de um direito preexistente ou simplesmente deixará de ser ação legítima, fundada em direito. Tenho ação processual por que antes a hei de ter direito subjetivo público para exigir que o Estado me preste tutela capaz de tornar efetivo meu direito, cuja realização privada o próprio Estado tornou impossível”.
Sob a dicção de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, a Constituição da República empalmou o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que, em síntese, de um lado outorga ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, e, de outro, faculta ao indício o direito de ação, ou seja, o direito de provocação daquele.
METODOLOGIA JURÍDICA
O termo metodologia tem dois significados. Os primeiros são os modos de investigação que uma determinada ciência utiliza. O outro, as doutrinas que sistematizam o conhecimento científico e a própria transformação da realidade.
O primeiro é o ponto de vista estritamente técnico, o que os juristas na prática realizam em uma ordem jurídica como a nossa; também conhecido como ponto de vista “dogmático” porque parte do princípio da inegabilidade dos pontos de partida, segundo o qual não se deve discutir as premissas do direito positivo, posto e positivado pelo Estado.
Essas premissas justificam-se no plano sociológico, isto é, pela natureza tácita de normas que exprimem algo subentendido pela coletividade.
As leis, as regras e os costumes em vigor (incluindo as normas não redigidas que servem de base para a aplicação da lei) repousam, em primeiro lugar na certeza de que seu cumprimento é a garantia do bem-estar tanto do indivíduo como da comunidade, e na confiança de que são atingidos determinados objetivos, acerca dos quais existe um indiscutível consenso.
Evidentemente as normas nunca são totalmente efetivas, não conseguindo evitar que a ordem seja violada pelo conflito, situação que ocorre com freqüência nas sociedades modernas. E quando a ordem social é violada, surge a necessidade de ser restaurada, evitando-se sua destruição, o que é alcançado mediante a imposição do direito, tornando efetivos os valores que expressa.
De mencionar-se que a ordem surge da conexão dialética com a realidade social e econômica, que constitui a base da sociedade, estando ínsita em qualquer sociedade, sendo-lhe inerente, já que a realidade social manifesta-se, historicamente, como um todo estruturado, produzindo espontaneamente, as regras que a governam. É a força normativa inseparável da vida social.
A justiça, na atualidade, deve ser realizada de acordo com a lei; mais precisamente de acordo com os princípios do estado de direito, contexto de igualdade no qual o poder e a autoridade do Estado são derivados única e exclusivamente da lei, proibida toda ação ultravires, ou seja, todo ato oficial que ultrapassa os limites juridicamente estabelecidos de poder e autoridade, mesmo quando a ação é realizada com a melhor das intenções e em nome do interesse público.
Levados pela necessidade de tomar decisões com base no direito (que não pode ser colocado em dúvida, em razão das premissas acima mencionadas), os juristas preparam normas e as fórmulas para os órgãos legislativos, executam-nas no vasto âmbito do Poder Executivo e ainda desempenham “funções jurisdicionais”, isto é, ajuízam ações ou normas segundo outras normas. Vista dessa perspectiva, a metodologia jurídica são “atos de decisão”, técnica prático-científica dos processos de decisão orientados por normas, vale dizer, o juiz e o tribunal têm diante de si o infrator e a obrigação de proferir uma sentença.
O “NON LIQUET”
Uma vez provocado, o órgão jurisdicional não pode eximir-se de decidir a questão submetida a sua apreciação, havendo sempre de manifestar-se sobre os pedidos que lhe sejam endereçados, sob pena de violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, com insculpido na Carta Magna no artigo anteriormente mencionado.
Conforme esclarecimentos de Alexandre de Moraes o Poder Judiciário, desde que haja plausibilidade de ameaça ao direito, é obrigado a efetivar o pedido de prestação jurisdicional requerido pela parte de forma regular, pois a indeclinabilidade da prestação jurisdicional é princípio básico que rege a jurisdição, uma vez que a toda violação de um direito responde uma ação correlativa, independentemente de lei especial que a outorgue (Direitos Humanos Fundamentais. Teoria Geral. Comentários aos artigos 1º ao 5º da Constituição da República Federativa do Brasil. Doutrina e Jurisprudência. São Paulo, 1998, volume 3, p. 197).
Corroborando com esta obrigatoriedade está inscrito no artigo 35 da Lei Orgânica da Magistratura em seu inciso I que são deveres do magistrado: cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício e no inciso III que o juiz deve determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais, ou seja, a tarefa do magistrado é a de interpretar e aplicar a legislação, dada pelo Poder Político Constituinte.
O juiz está obrigado a julgar, a faze-lo de acordo com as disposições do Código de Processo, aplicando a tutela jurisdicional quando provocado pela parte ou pelo interessado segundo regra geral (no procedat judez ex officio). Não se exime de sentenciar ou despachar, alegando lacuna ou obscuridade na lei. Cabendo-lhe aplicar as normas e, inexistindo estas, desempenhar-se-á do encargo recorrendo á analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito.
Também se infere a obrigatoriedade de apreciar o pedido posto em juízo do quanto disposto artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil que dispõe na hipótese da lei ser omissa que o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito.
O artigo 126 do Código de Processo Civil, por sua vez, adverte que o juiz não se eximirá de sentenciar ao despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. Por mais que se desagrade com os dissabores de uma interpretação nem sempre albergadora da tese defendida, a decisão jurídica se impõe. Verifica-se, pois, que, embora não se possa assegurar direito a uma sentença favorável, existe o direito a uma decisão ou sentença mesmo que desfavorável, ou, então, que inadmita mesmo a ação, ou, ainda, que dê pela invalidade do processo.
E se a lei for clara é dever do magistrado interpreta-la e aplica-la, apesar de não encontrar dificuldades. Se a lei for obscura ou ambígua, deverá interpreta-la empregando certa engenhosidade intelectual.
Lacuna pode existir na lei, fórmula mais ou menos perfeita do direito, não, porém, no direito. O juiz nunca pode esquivar-se de sua função, mesmo quando se depara com casos em que a lei é omissa ou possui lacunas. Em seu trabalho de aplicador, o juiz pode ser levado a revelar o direito, integrar a norma jurídica. É-lhe vedado pronunciar o “non liquet”, isto é, que o direito não está revelado, declarado, explicitado.
A expressão “non liquet” é usual na ciência do processo, para significar o que hoje não mais existe: o poder de o juiz não julgar, por não saber como decidir.
O direito é, existe. Cabe ao juiz, técnico em matéria jurídica, enuncia-lo (jura novit cúria), no desempenho de suas funções de prestar a tutela jurisdicional que o Estado a todos promete.
Curiosa a posição de Zitelmann: não é a lei, propriamente dita, que tem lacunas, e sim nosso conhecimento a seu respeito.
CONCLUSÃO
Pelo quanto exposto podemos concluir que o juiz é um agente do poder público subordinado às restrições que lhe são impostas pela organização estatal que tomou para si a função de julgar os conflitos sociais e delegou ao juiz a obrigação de decidir tais conflitos dentro das normas legais vigentes.
Assim, o magistrado tem poderes-deveres, pois os poderes incumbidos ao juiz são intrinsecamente deveres, sem os quais não poderia exercer plenamente o comando jurisdicional que o Estado lhe outorgou.
Cada magistrado, exercendo a função jurisdicional, não o faz em nome próprio e muito menos por um direito próprio: ele é, aí, um agente do Estado (age em nome deste). O Estado o investiu, mediante determinado critério de escolha, para exercer uma função pública; o Estado lhe cometeu, segundo seu próprio critério de divisão de trabalho, a função jurisdicional referente a determinadas causas. E agora não poderá o juiz, invertendo os critérios da Constituição Federal e da lei, deixar de conhecer dos processos que elas lhe atribuíram.
O juiz, atualmente, não pode deixar de julgar. Ainda que nada tenha ficado provado; ainda que não saiba quem tem razão; ainda que não saiba qual das partes é vítima e qual o algoz; ainda que ignore qual das partes o está enganando, o juiz tem o dever de julgar. Não sabe e, entretanto, deve julgar, como se soubesse. “Il giudice decide non perché as ma come se sapesse.” (CARNELUTTI, Franesco. Diritto e Processo. Napoli, Morano, 1958, p. 265).
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