A reprodução assistida heteróloga e o direito da pessoa gerada ao conhecimento de sua origem genética

A reprodução assistida heteróloga e o direito da pessoa gerada ao conhecimento de sua origem genética

Analisa os principais aspectos referentes à reprodução assistida heteróloga e o direito da pessoa gerada através dessas técnicas ao conhecimento de sua origem genética.

Nos dias atuais, vivenciamos uma total reformulação do conceito de família. O modelo tradicional de família vem sendo substituído por uma definição mais moderna, em decorrência da evolução do mundo globalizado e da aquisição de novos valores introduzidos na sociedade contemporânea.

Com a constitucionalização do Direito Civil após o advento da Carta Magna de 88, as relações familiares passaram a ser funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe e, dentro dessa perspectiva, despertou-se um grande interesse no segmento das relações de parentesco, onde um número significativo de descobertas científicas revelou fenômenos nunca cogitados.

Muitas situações antes inimagináveis por nós, tornaram-se fatos concretos, fazendo com que a sociedade mundial esbarre nas novas fronteiras das mais variadas áreas da ciência, trazendo ao universo jurídico inúmeros questionamentos que repercutem diretamente no Direito de Família, sofrendo esta uma influência direta das descobertas na área da reprodução humana, com relação às origens, critérios e efeitos da filiação e, principalmente, no âmbito das técnicas de reprodução assistida.

Neste contexto, diante de tantas inovações, a Bioética busca as respostas para uma série de desafios de difícil solução, sem que essas incertezas interrompam ou impeçam o avanço tecnológico.

Sem dúvida, as rápidas conquistas da ciência nos trazem incontáveis conseqüências, envolvendo valores religiosos, morais, culturais, éticos e políticos dos mais variados, além dos interesses econômicos sempre presentes, influenciando a vida de todos nós, seja de maneira positiva ou de maneira negativa.

Diante do exposto, conclui-se que a exploração dos temas referentes à reprodução medicamente assistida, em especial à reprodução heteróloga, é relevante pela sua atualidade, uma vez que atinge diretamente a vida da sociedade, onde se busca substituir as dificuldades dos legisladores e aplicadores da lei, diante da inexistência de previsão legal ou inadequação desta, pela busca de um sistema de normas que assegure a realização total das potencialidades humanas e da manutenção de sua dignidade.

Para uma melhor análise do tema em questão, cabe primeiro caracterizarmos a reprodução assistida.

Para que ocorra a reprodução humana é mister que tanto a mulher quanto o homem estejam em condições de manter um ciclo reprodutivo completo, ou seja, desenvolver todas as etapas reprodutivas necessárias para se chegar à fecundação.

A fecundação ocorre quando há o encontro de um espermatozóide (célula sexual masculina) com o óvulo (célula sexual feminina), nas Trompas de Falópio, situadas no aparelho reprodutor feminino.

Essas células sexuais se unem formando o zigoto ou ovo, que leva a combinação do material genético do homem e da mulher, formando a primeira célula que dará origem futuramente ao bebê.

Após a fecundação, ocorre a implantação do ovo no útero da mãe (nidação), onde a criança continuará a se desenvolver até que esteja completamente formada aos nove meses de gravidez.

Quando, nesse processo natural, o ciclo não se completa, surgem os problemas relacionados à fertilização. Fatores de ordem biológica, médica ou psíquica podem impedir que as células germinativas masculina e feminina se unam, ocasionando por vezes a incapacidade de procriar.

Assim, a reprodução assistida surgiu para solucionar os casos de infertilidade (incapacidade causada por disfunções orgânicas ou funcionais que atuam na fecundação impossibilitando a produção de descendentes) e esterilidade (incapacidade de um dos cônjuges, ou de ambos, de fecundarem por um período superior a um ano, quando da não utilização de nenhum método contraceptivo e com vida sexual normal, seja por causas orgânicas ou funcionais) conjugal, provocando a gestação através da facilitação ou da substituição de alguma das etapas do ciclo reprodutivo, possibilitando que os casais estéreis ou inférteis venham a ter filhos.

Com o objetivo de corrigir essas anomalias, a medicina moderna desenvolveu os métodos artificiais para atenuar os problemas relativos à reprodução, que são as técnicas de reprodução assistida.

Dentre as principais técnicas atualmente disponíveis, destacam-se: inseminação artificial (IA), fertilização in vitro seguida de transferência de embriões (FIVETE), transferência intratubária de gametas (GIFT), transferência intratubária de zigotos (ZIFT), gestação por mãe substituta (“mãe de aluguel”).

Qualquer dessas técnicas pode ser utilizada ora de forma homóloga ora de forma heteróloga, o que será definido de acordo com a proveniência do material biológico utilizado para a fecundação.

Assim, será homóloga quando os gametas utilizados para a fecundação artificial forem do casal interessado na procriação. E será heteróloga quando, na impossibilidade de um ou de ambos os interessados na procriação doarem os seus próprios gametas, forem utilizados gametas de terceiros na fecundação.

O Código Civil de 1916 determinava, em seu artigo 338, que presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos 180 dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal, no inciso I, e, no inciso II, os nascidos dentro dos 300 dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.

Já o Código Civil de 2002, em seu artigo 1.597, acrescentou mais três causas de presunção de paternidade/maternidade, cuja nova redação destaca a tentativa do legislador de abordar as técnicas de reprodução medicamente assistida, adequando as normas aos avanços científicos, imprevistos pelo legislador pretérito:

Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subseqüentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Esses dispositivos tratam dos filhos nascidos do que se convencionou denominar reprodução assistida. Dessa maneira, o Código Civil enfoca a possibilidade de nascimento de filho através das técnicas de reprodução medicamente assistida homóloga, heteróloga e dos embriões excedentários.

Na realidade, ao se referir ao tema, o Código Civil omitiu-se a respeito de vários aspectos civis relevantes, o que pode ser atribuído à novidade da matéria.

Sobre isso Sílvio de Salvo Venosa acrescenta: “advirta-se, de plano, que o Código de 2002 não autoriza nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata lacunosamente a existência da problemática e procura dar solução ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por um estatuto ou microssistema” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5. ed. v. 6. São Paulo: Atlas, 2005. p. 256).

Os novos dispositivos acrescentados ao Código Civil de 1916 trouxeram mais dúvidas do que soluções, sendo necessária a regulação da matéria através de lei específica, com normas que supram as lacunas trazidas pelas novidades da biotecnologia.

A grande questão relativa aos efeitos pessoais da reprodução heteróloga é a possibilidade ou não de acesso da pessoa gerada à sua identidade genética.

A Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, prevê no inciso IV, nºs 2 e 3, o anonimato dos doadores e receptores:

2 – Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores ou vice-versa.

3 – Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

Assim sendo, deve ser mantido não só o anonimato do doador, mas também o sigilo do casal que busca as técnicas de reprodução assistida, de modo a resguardar o direito à intimidade das pessoas envolvidas (artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal) frente à coletividade.

Esse sigilo tem justificativa diante das conseqüências que as informações a respeito da origem da filiação podem gerar para aquele que foi concebido. O anonimato não só facilitaria a integração da criança à família, evitando a intervenção de terceiros na sua formação, como também impediria essa criança de ser tratada de maneira discriminatória na sociedade, pela situação peculiar de como foi gerada.

Compartilhando dessa opinião, Maria Claudia Crespo Brauner afirma que a identidade do doador só pode ser revelada em caso de critérios médicos emergenciais, como, por exemplo, nas situações em que a pessoa tenha necessidade de obter informação genética indispensável à sua saúde, ou quando da utilização de gametas com carga genética defeituosa. A alegação de que a criança tem o direito de conhecer sua origem genética, serviria apenas para realçar o conceito de paternidade biológica, sendo este um conceito ultrapassado, em razão da valorização da paternidade afetiva (BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 88).

Já Belmiro Pedro Welter, acredita que não importa se a reprodução é natural ou medicamente assistida. Em qualquer caso, os filhos e os pais possuem o direito de investigar e, até mesmo, negar a paternidade biológica, como parte integrante de seus direitos de cidadania e dignidade da pessoa humana. Em caso de interesse do filho o anonimato deveria ser desocultado, uma vez que não participou do acordo entre os doadores e os receptores (WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 231).

Ainda, continua o autor, a investigação da paternidade permitiria o conhecimento da ancestralidade, da origem, da identidade pessoal, impedindo o incesto, preservando os impedimentos matrimoniais e evitando enfermidades hereditárias. Daí a justificativa que também ao doador caberia o direito da investigação de paternidade.

Para Guilherme Calmon Nogueira da Gama, o anonimato das pessoas envolvidas deve ser mantido, mas devem ceder à pessoa que resultou da técnica concepcionista heteróloga, diante do reconhecimento pelo Direito brasileiro dos direitos fundamentais à identidade, à privacidade e à intimidade, podendo a pessoa ter acesso às informações sobre toda a sua história sob o prisma biológico para o resguardo de sua existência, com a proteção contra possíveis doenças hereditárias, sendo o único titular de interesse legítimo para descobrir suas origens (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 803).

O autor acredita que, para fazer valer esse direito, a criança gerada poderia valer-se do remédio constitucional do habeas data, previsto no artigo 5º, inciso LXXI, “a”, da Constituição Federal, que asseguraria “o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público”.

O habeas data não se restringiria à Administração Pública, podendo atingir entidades que mantenham bancos de dados de caráter público; o que abrange casas de saúde, bancos de sêmen e de embriões e, fundamentalmente, as pessoas dos profissionais que se responsabilizaram pelo procedimento médico concernente à procriação assistida heteróloga.

Sem dúvida, essa é uma questão que gera muita polêmica, pois envolve direitos fundamentais de várias ordens. De um lado, o direito dos doadores de preservarem o anonimato – de acordo com o princípio do direito à intimidade e à privacidade -, de outro, o direito das pessoas geradas pela reprodução heteróloga de buscarem a formação de sua identidade pessoal, com reflexos importantes em sua integridade físico-psíquica.

Porém, mesmo aqueles que defendem que o anonimato deve ser absoluto, não podem olvidar-se que este não poderá sobrepor-se aos riscos concretos de doenças hereditárias, que poderiam ser prevenidas ou até mesmo tratadas com a quebra do anonimato. É inconcebível que o anonimato do doador prevaleça em detrimento da manutenção da saúde, ou até mesmo, da vida da pessoa concebida com o material genético de terceiros. O princípio constitucional do direito à vida deve prevalecer, sem dúvida, sobre o direito à privacidade e à intimidade do doador.

Mesmo diante do conhecimento da origem genética, não será estabelecido nenhum vínculo de parentesco entre doador e pessoa gerada. Serão três os efeitos causados: o efeito psicológico do conhecimento da origem genética, a preservação da saúde das pessoas geradas pela técnica de reprodução assistida frente doenças genéticas e, os impedimentos matrimoniais.

Por mais que o vínculo de filiação existente entre a criança gerada e os receptores das técnicas de reprodução heteróloga já esteja definido pela filiação civil, desconsiderando os fatores biológicos, isso não deve impedir que, posteriormente, diante de real necessidade, a pessoa venha a conhecer sua origem biológica.

Para Maria Clara Osuma Diaz Falavigna e Edna Maria Farah Hervey Costa, não mais se admite em nosso Direito a vedação do acesso de uma pessoa às suas origens, sob pena de violação dos direitos de personalidade, essencialmente da integridade e da dignidade: “[...] a situação é semelhante à da adoção, ou seja, se há possibilidade de o filho adotado ver reconhecida sua origem biológica, o mesmo ocorre para os que nasceram de fecundação artificial heteróloga. Nesse caso a legislação é clara de negar qualquer relação jurídica entre o filho dado em adoção e os pais biológicos, sendo omissa em relação às inseminações heterólogas; porém, visto que mesmo em se tratando de adoção há possibilidade de se conhecer a origem biológica, não se negará o direito do filho concebido por reprodução assistida heteróloga“ (COSTA, Edna Maria Farah Hervey; FALAVIGNA, Maria Clara Osuma Diaz. Teoria e prática do direito de família: de acordo com a Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Editora Letras jurídicas: Bestbook Editora, 2003. p. 210).

Observando-se todas as questões acima abordadas, pode-se imaginar a quantidade de indagações que surgem a cada dia e a cada nova descoberta. Diante desse cenário, fica claro que a legislação existente é insuficiente para regular o assunto, causando mais dúvidas do que certezas. Faz-se necessária e urgente a regulação da matéria por meio de lei específica, que supra as lacunas do Código Civil, trazidas juntamente com as novidades da biotecnologia. Sem dúvida esse tema é de grande complexidade e merece uma discussão aprofundada.


Documentos Consultados

1. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

2. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direito de família. 5. ed. v. 6. São Paulo: Atlas, 2005.

3. BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

4. WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.

5. COSTA, Edna Maria Farah Hervey; FALAVIGNA, Maria Clara Osuma Diaz. Teoria e prática do direito de família: de acordo com a Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Editora Letras jurídicas: Bestbook Editora, 2003.

6. BARRETO, Vicente. (Org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

7. BRASIL Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

8. BRASIL. Lei n.º 10.406, de 1º de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Novo Código Civil Brasileiro. Campinas: Bookseller, 2002.

9. Conselho Federal de Medicina. Resolução n.º 1.358, de 11 de novembro de 1992. Publicado no D.O.U. em 19.11.92. Disponível em < http://www.portalmedico.org.br/ resolucoes/cfm/ 1992/1358_1992.htm. Acesso em: 21.11.2005.

10. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001.

11. LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.


Sobre o(a) autor(a)
Fernanda de Fraga Balan
Estudante de Direito
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