Semear e cultivar plantas destinadas à preparação de entorpecentes para uso próprio: fato típico ou atípico?

Semear e cultivar plantas destinadas à preparação de entorpecentes para uso próprio: fato típico ou atípico?

Visa apresentar e oferecer respostas para a questão que forma o título. Isso porque a Lei 6.368/76 não regulou a matéria de forma clara, deixando margem para inúmeras interpretações.

Visando a objetividade, o presente artigo quer tentar trazer algumas elucidações sobre a seguinte questão: O sujeito que cultiva planta que pode originar substância entorpecente, para uso próprio, pratica crime? A resposta para esta indagação é fornecida de várias formas pela doutrina e jurisprudência.

Isso porque, de acordo com a Lei 6.368/76 (Lei de Tóxico) o agente que semeia, cultiva ou faz colheita de planta com efeito psicotrópico, é punido com pena de 3 a 15 anos, mais pagamento de multa. Contudo, o art. 12, parágrafo 1º, inciso II, que regula tal conduta não distingui se a conduta é praticada com o fim de tráfico ou consumo pessoal.

À vista disto, indaga-se: como enquadrar o agente que planta droga para uso próprio, como o sujeito que mantém, em sua casa, um pequeno canteiro onde cultiva Cannabis sativum?

Daí resulta a problemática do presente artigo. Capez [1] entende que a conduta descrita acima é um fato atípico, pois tal conduta não se enquadra em tipo penal algum. Damásio segue a mesma linha, ao asseverar que:

O fato de semear, cultivar ou fazer a colheita, para uso próprio, de substância destinada a preparação de entorpecente não se encontra tipicamente definido como crime no art. 12 nem no art. 16 dessa Lei. É atípico. E não há crime sem lei que o defina (CP, art. 1º). [2]

Outra posição perfila o caminho da punição pelo próprio art. 12, parágrafo 1º, inciso II, ou seja, a lei pune em todos os sentidos, pois não distingue aquele que planta para uso próprio ou para o tráfico (vide RT 668/303 e 555/324).

Existe ainda a posição que ecoa com mais freqüência nos Tribunais, vejamos. Tentando amenizar o caso, mas ainda agindo de forma equivocada, alguns magistrados estão aplicando a aquele que planta para uso próprio, as mesmas medidas cabíveis para aquele que traz consigo, guarda e adquiri também para uso próprio (art. 16). Afirmam que, ao aplicar a referida regra, estão se valendo de analogia in bonam partem de norma penal incriminadora.

Nossa posição se difere das três destacadas acima.

A conduta de “plantar” substâncias entorpecentes submete-se as mesmas penas do crime de tráfico, sendo inclusive desmembramento do artigo que regula este crime (art. 12), mais precisamente no § 1º, inciso II. Caso o legislador objetivasse punir aquele que planta maconha para uso próprio, teria regulado essa conduta no art. 16, que fundamenta o crime de porte ou posse, para uso próprio, de substância entorpecente.

Logo após o referido artigo, haveria a mesma disposição que existe no crime de tráfico, só que agora regulando a conduta de plantar para uso próprio. Seria uma aberração jurídica o sujeito ser condenado nas penas do tráfico por plantar maconha para uso próprio, enquanto que o outro que é surpreendido com um “baseado”, também para uso próprio, atualmente, é beneficiado, em princípio, pela transação penal.

Assim, resta evidente que a tese do enquadramento para quem planta maconha visando o consumo próprio no art. 12, parágrafo 1º, inciso II é insustentável no âmbito jurídico penal.

Não comungamos também com a incriminação, sem o devido enquadramento, nos moldes do art. 16, que tenta amenizar a situação com fundamento na analogia in bonam partem. Tal argumento é equivocado, eis que no caso em questão não há lacuna na lei. Há um tipo penal que apenas incrimina pessoa que planta para o tráfico, e não para uso próprio. Ao julgarem o sujeito que planta maconha para fumar em sua casa de acordo com o art. 16, estão, na verdade, legislando, ferindo o princípio da separação dos poderes; e punindo sem ter lei que defina o crime, dilacerando o princípio da legalidade. Criam um novo verbo no art. 16, o que leva a concluir ofensa a legalidade.

Em relação a posição que pontua ser atípica a conduta de plantar para uso próprio, ela deve ser acolhida em partes.

Para que uma conduta seja considerada atípica é necessário que não haja o enquadramento entre a conduta e o tipo penal definido em lei.

É certo que “plantar” (entendida aqui como semear, cultivar e colher) não se confunde com “adquirir” e muito menos com “trazer consigo”. Não pode se equiparar também ao verbo “guardar”.

No entanto, o que pode ter fundamentação jurídica plausível é a afirmação no sentido de que há o enquadramento no verbo “guarda”, desde que a planta cultivada já seja a própria substancia entorpecente.

Com efeito, quem planta, por exemplo, um pé de maconha também está guardando, pois toma conta, vigia, zela, preserva, protege, etc, não no sentido de cultivar ou semear, mas pelo fato da planta conter o princípio ativo caracterizador e poder ser consumida in natura. Na verdade a conduta do agente é a de guardar a própria substância entorpecente.

É de boa prudência trabalharmos essa assertiva. O art. 12, § 1º, inc. II, estabelece o seguinte: Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente: semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à preparação de entorpecente ... (grifo nosso).

Percebe-se que o tipo penal não trata a planta como substância entorpecente, mas sim como algo que será destinado a tal fim. O art. 16, por sua vez, prescreve o seguinte: “Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência...” (grifo nosso).

Note-se que o legislador só incrimina aquele que guarda substância entorpecente, e não plantas destinadas à preparação de entorpecente.

Então, no nosso entender haverá fato típico configurado a atitude do agente de cultivar ou semear planta que não precisa de preparação para ser usada, pois, por si só, já se configura substância entorpecente. Assim, por conseqüência óbvia, estará guardando a droga proibida, não importando que esteja em um vaso, ou em um canteiro. O que importa é que existe substância entorpecente sendo guardada, não interessando sua forma.

Não se leva em conta o cultivar ou o colher, pois a partir do momento que se tem a substância entorpecente, é irrelevante saber se há cultivo. O sujeito não é punido criminalmente por cultivar, mas sim pelo fato de guardar em sua casa substância entorpecente, para consumo próprio.

Com efeito, aquele sujeito que tem planta de maconha em casa poderá ser responsabilizado penalmente nos moldes do art. 16, da Lei de Tóxico, por guardar substância entorpecente para uso próprio, desde que a maconha possa ser consumida in natura, não sendo necessário qualquer ato de extração.

É cediço que o THC (tetrahidrocanabinol), princípio ativo proibido no país, é uma substância química fabricada pela própria maconha, sendo o principal responsável pelos efeitos da planta, e que está presente em praticamente todas as partes da planta. Agora, se a erva em questão não contém o princípio ativo, por qualquer motivo, inclusive por ser muito nova, o agente não pratica crime algum. Posto que aqui temos apenas a planta destinada à preparação do entorpecente, e não a substância entorpecente.

Mesmo porque, há vários julgados que consideram folhas de maconha, folhas de coca, galhos de maconha inócuos, não constituindo objeto material do delito, por falta do princípio ativo (cite-se RT 476/368, RT 608/327, RT 588/310).

Frise-se que é imprescindível que a planta possa ser consumida in natura, pois do contrário o fato será atípico. Haja vista que a punição no art. 16 é somente a guarda de substância entorpecente, e não plantas destinadas ao preparo. É óbvio que, pela leitura do art. 16, deve ser entendido somente a substância entorpecente pronta para ser utilizada, pois o próprio artigo contém a expressão “para uso próprio”. Se for para uso, deve ser utilizada; e se deve ser utilizada, deve estar apta para tanto.

Qualquer ato para extração da substância na planta pode ser considerado como fato descaracterizador da figura típica contida no art. 16.

Em suma, é imprescindível saber se as plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, como a Cannabis sativum, Claviceps paspali, Datura suaveolans, Erytroxylum coca, Lophophora williamsii (Cacto peyote), Prestonia amazonica (Haemadictyon amazonicum), contém a substância proscrita e podem ser consumidas in natura, sem necessidade de alguma espera ou preparação.

Não podemos, neste singelo artigo, nos atrever em determinar quais casos a planta pode ser considerada a própria substância entorpecente, pois falta-nos competência para tanto; é evidente que cada caso deverá ser analisado por peritos capazes de informar se a planta, além de possuir o princípio ativo, pode ser consumida in natura, posto que se apresenta como a própria substância entorpecente.

Caso necessite de algum tipo de extração da planta para obtenção da substância entorpecente, e ela for destinada para consumo próprio, não haverá crime algum. Implicando apenas em destruição da planta, nos moldes do art. 8, § 2º, da Lei 10.409/02.

Por fim, resta mencionar que tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL n.º 7.134/02) que, além de amenizar a sanção ao usuário, tipifica a conduta de semear, cultivar plantas destinadas à preparação de entorpecente para uso próprio, o que põe fim a discussão doutrinária. Esse dispositivo reza que o indivíduo que, p. ex., plantar maconha em vaso, receberá as mesmas sanções do porte, ou seja, advertência, serviços a comunidade, ou medidas educativas. Ressalte-se que há possibilidade do juiz determinar que o delinqüente submeta-se a tratamento de saúde. Abaixo transcrevemos o artigo do Projeto de Lei que faz referência ao porte e plantio para uso próprio:

Art. 27. As penas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo, ouvidos o Ministério Público e o defensor.

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Incorre nas mesmas penas quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

O que deve restar cristalino é que o legislador basilar não quer descriminar o uso de entorpecente, mas apenas reduziu a carga punitiva. Em outros termos, usar drogas é, e será, crime.

Conclusão

Sem o atrevimento pueril de querer se revestir da razão, entendemos que frente à legislação que rege a matéria atualmente, deve-se entender que semear, cultivar e colher plantas destinadas à preparação de substâncias entorpecentes, para consumo próprio, é uma conduta atípica.

Será, todavia, típica, se a planta semeada, cultivada ou colhida, para uso próprio, contiver o princípio ativo da substância e puder ser consumida in natura, sem necessidade de algum tipo de extração ou outro procedimento para o consumo, pois, neste caso teremos o enquadramento no art. 16, acolhido pelo verbo “guardar” e pelas expressões “substância entorpecente” e “uso próprio”.


Bibliografia

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Forenses, 1994.

FRANCO, Alberto Silva (Coord.). Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. 2.

GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos-Prevenção-Repressão. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.

JESUS, Damásio E. Lei antitóxico anotada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

SZNICK, Valdir. Lei anti-tóxico. São Paulo: Pillares, 2004.


[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 37.


[2] JESUS, Damásio E. Lei antitóxico anotada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 50.

Sobre o(a) autor(a)
Clovis Alberto Volpe Filho
Advogado, Mestre em Direito Público pela Unifran e professor de Direito da Fafram/Ituverava-SP.
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