O referendo de um país cansado

O referendo de um país cansado

O nosso poder restringido a um "sim" ou "não" para a comercialização de armas de fogo, nos dá a garantia de imponência como se mais uma vez o nosso exercício de cidadania assegurado como fundamento constitucional fosse aplicado na grandeza que merece.

No dia 23 de Outubro, novamente compareceremos as urnas para manifestarmos de certo modo a soberania popular com esteio no artigo 14, inciso II da Constituição Federal. Uma soberania, diga-se de passagem, sufocada por nossa miséria humana. O nosso poder restringido a um “sim” ou “não” para a comercialização de armas de fogo, nos dá a garantia de imponência como se mais uma vez o nosso exercício de cidadania assegurado como fundamento constitucional fosse aplicado na grandeza que merece.

Porém no dia 23 de Outubro muitos de nós vamos as urnas com inúmeras preocupações tentando de fato cumprir as determinações da Carta Magna, que fielmente acreditamos que um dia será obedecida, do preâmbulo ao final. No caminho, pensaremos nas crises políticas que envolvem o Partido dos Trabalhadores, lembraremos das Comissões Parlamentares de Inquérito que tentam a todo custo desvendar a incógnita de um país açoitado por oportunistas e que mesmo puxado veementemente para baixo, desafia a gravidade almejando a cada dia o vôo da águia. Não poderemos esquecer também os escândalos dos parlamentares a todo tempo investigados porque substituíram a ética, o bom senso e a nossa confiança por alguns milhares de reais, fazendo do dinheiro o seu mais fiel eleitor.

Se possível lembraremos do dia em que estávamos parados no semáforo, por imposição legal, pois se avançássemos o sinal às 02:00 da manhã correríamos o risco de ser multados, ao invés de justificar nossa conduta à Fazenda Pública, preferimos ser assaltados à mão armada naquele cruzamento tão perigoso.

Enquanto estamos na fila aguardando nosso direito de opinar no Referendo, com pouco esforço lembraremos das grades de nossas casas, dos muros de concreto, de nossos carros blindados, dos condomínios separados, das cercas elétricas. Por outro lado, espelhando a realidade mais crua, lembraremos das vezes que fomos para casa depois de um dia todo de trabalho, em um ônibus lotado e caminhando minutos no escuro a margem dos matagais, tristemente relembraremos daquele assassino que tentou molestar as nossas esposas, nossas filhas, na insegurança das vias públicas.

Por um minuto, poderíamos pensar nos salários atrasados, nas medidas provisórias, na sufocante carga tributária, no desvio de verbas públicas, na evasão de divisas anunciada todos os dias no noticiário, mas tudo isso seria resultado de uma reflexão infrutífera.

Aguardamos mais uns minutos na fila do exercício da cidadania, e percebemos que filas são comuns para a efetivação do nosso direito. Filas aguardando o término da greve dos servidores públicos, filas por uma vaga na escola mais próxima de nosso bairro, fila para o atendimento inadiável no posto de saúde, fila para acreditar que amanhã há de ser diferente.

Entregando nosso título ao mesário, pode nos passar pela cabeça, a figura dos traficantes com a arma em punho, nossos familiares sendo assaltados dentro da agência bancária, correndo o risco de morte, da mesma forma que corremos quando saímos de nossas casas todos os dias. Por fim, é bom lembrar das inúmeras pessoas assassinadas por arma de fogo em seqüestros cruéis e execráveis.

Já é chegada a hora de lermos na tela da urna eletrônica acerca de nossa responsável decisão. Porém, antes de digitarmos, pensamos também na irresponsabilidade de se ter uma arma em casa, de se ferir por acidente nossos filhos e entes queridos, nos indignamos na possibilidade dos ladrões não registrarem suas armas, e mesmo sabendo que dificilmente elas sairão dos morros, dos grandes centros e dos presídios acreditamos que a nossa decisão é algo mais forte que o estampido de um disparo de um fuzil.

Agora, é hora de dirigirmos nosso indicador ao centro de nossas decisões tão desconsideradas ultimamente, tão invalidadas pela ganância daqueles que simplesmente não dão a mínima para o exercício da cidadania. Mas nós queríamos muito que cada gesto, cada deslize pudesse ser levado a ato público, para que pudéssemos cassar a impunidade a fio de espada.

No regresso aos nossos lares, a expectativa como há anos atrás sobre nossa escolha, à vontade de discutir com os amigos sentados num botequim se realmente fizemos a coisa certa. Bom, a dor do velório de poucos dias, pela morte de um jovem vitimado por uma bala perdida pode ser compensada com a alegria e a esperança daqueles que acreditam que o Brasil só é ainda chamado de Terceiro Mundo, por aqueles que não tem a concepção de pátria, cidadania e humanidade.

O sol jaz no horizonte e é hora de ligarmos a televisão para acompanharmos as ultimas notícias de um país cansado de compactuar com tanta mentira.

Com a confirmação de nosso direito e a sensação de dever cumprido nesse dia 23, já pulsa forte nosso coração pelo ano de 2006. Tenho a convicção de que desta vez há de ser diferente, porque assim como o mestre Rui Barbosa também acredito que: “A esperança é o mais tenaz dos sentimentos humanos: O naufrago, o condenado, o moribundo aferram-se-lhe convulsivamente aos últimos rebentos ressequidos”.

Sobre o(a) autor(a)
Guilherme Arruda de Oliveira
Advogado
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