A subsidiariedade como baliza para a insignificância
Nem sempre é possível que se determine de plano o caráter bagatelar de uma conduta, o que acontece amiúde em casos de descaminho, crimes previdenciários e de sonegação de impostos.
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aracterística marcante do Direito em um Estado democrático é a sua fragmentariedade, ou seja, o ordenamento jurídico não deve se ocupar de todas as coisas e atos, o que, além de impraticável, resultaria em um regime de viés totalitarista, restringindo de forma brutal a liberdade e, por conseguinte, a dignidade humana.
A fragmentariedade que, como dito, deve ser uma característica de todo nosso ordenamento jurídico, aparece de forma marcante no Direito Penal, considerado o ramo do Direito que se difere dos demais pela rigidez de sua principal sanção: a pena privativa de liberdade. A prisão, largamente criticada pela doutrina moderna, é, como bem sabido, a forma mais drástica de sanção existente em nosso ordenamento jurídico, e, especialmente em nosso precário sistema prisional, um caminho quase inevitável para a completa degradação, física e moral, do ser humano.
Nesse sentido, a questão da fragmentariedade se mostra ainda mais relevante no Direito Penal: uma limitação tão drástica da liberdade humana, bem jurídico de inquestionável valia, só pode se dar quando realmente indispensável para a proteção de outros bens jurídicos, tão ou mais valiosos, como a própria liberdade, a vida e a propriedade. Mesmo esses relevantíssimos bens jurídicos não devem ser objeto da tutela penal se forem atacados de modo a lhes causar uma lesão insignificante, como no clássico exemplo do furto de uma maçã em um supermercado, em que a incidência da pena, e mesmo do processo, no caso, mostra uma injustiça flagrante que agride as mais básicas noções humanas de proporcionalidade entre a conduta e a sanção.
Porém, nem sempre é possível, como o foi no exemplo acima, que se determine de plano o caráter bagatelar de uma conduta, o que acontece amiúde em casos de descaminho, crimes previdenciários e de sonegação de impostos. Salta aos olhos que o furto de um batom é conduta insignificante, mas o que dizer de um descaminho em que os produtos têm o valor total de R$ 1.000,00 ou R$ 2.000,00 ou da sonegação de R$ 500,00 de impostos? O que seria, nesses casos, lesão significativa ao bem jurídico protegido?
Para responder a essa questão, torna-se necessário recorrermos a uma decorrência lógica do princípio da fragmentariedade: o caráter subsidiário do sistema penal. De acordo com essa característica, o Direito Penal só deve atuar quando a ação dos outros ramos do ordenamento jurídico se mostrar ineficaz e insuficiente para a repressão do comportamento considerado indesejável. Sendo essa atuação suficiente a eventual resposta penal a essa conduta se torna desnecessária e desproporcional.
Nesse sentido e considerando o caráter fragmentário do Direito como um todo, vemos ocasiões em que mesmo os outros ramos do ordenamento jurídico, que não contém toda a carga sancionatória do Direito Penal, se furtam a atuar, frente ao exíguo dano aos bens jurídicos tutelados. Nestes casos, a atuação estatal, além dos já citados problemas, incorreria em grave ofensa ao princípio da eficiência (Constituição Federal, art. 37, caput) já que o dispêndio de recursos materiais e humanos seria claramente desproporcional ao ganho que se poderia obter. Junte-se a isso o exíguo número de procuradores federais e estaduais, juízes e promotores existentes que devem dar cabo a inumeráveis processos (só no Supremo Tribunal Federal são milhares por ano para cada Ministro) e se verá que o caso não é só de coerência jurídica, mas também de compreender, realisticamente, as necessidades e as limitações da práxis estatal.
Assim, encontramos em nosso ordenamento jurídico normas segundo as quais o Estado, pelas razões já expostas, se abdica de reprimir certas condutas que, em face de seu valor, se tornam irrelevantes. Ocorre desse modo na Procuradoria da Fazenda Nacional que, de acordo com a lei, está desobrigada de manter execuções fiscais cujos valores são inferiores a R$ 2.500,00. Nesse sentido, dispõe a lei 10.522, de 19.07.02 (na redação dada pela Lei 11.033/04):
“serão arquivados... os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)”
Já na Procuradoria do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) esse limite se eleva para R$ 5.000,00. No mesmo diapasão da lei anterior prevê a Portaria do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) nº 4.910, de 4 de janeiro de 1999:
“Art. 4º A Dívida Ativa do INSS de valor até R$ 5.000,00 (cinco mil reais), considerada por CGC/CNPJ, não será ajuizada, exceto quando, em face do mesmo devedor, existirem outras dívidas, caso em que estas serão agrupadas para fins de ajuizamento.”
Ora, se os Direitos Tributário e Previdenciário, que contam com sanções rigorosas (elevadas multas administrativas), mas, que de qualquer forma são, via de regra, bem menos gravosas que as penas típicas do Direito Penal (privativas de liberdade e restritivas de direito), consideram desnecessária a persecução do autor, o que dirá o Direito Penal, que, como visto, deve agir somente em ultima ratio?
A resposta é dada de forma majoritária pelos nossos tribunais, como exemplificado abaixo:
Jur. ementada 3636/2002: Penal. Crime previdenciário (CP, art. 168-A). Valor até R$ 5.000,00. Princípio da insignificância (portaria 4.190/99-MPAS).
TRF 4ª REGIÃO - RECURSO CRIMINAL EM SENTIDO ESTRITO Nº 2000.72.01.003148-6/SC (DJU 10.06.02, SEÇÃO 2, P. 495, J. 25.06.02)
EMENTA
PENAL. PROCESSO PENAL. OMISSÃO NO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. PORTARIA Nº 4.910/99. MPAS. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PENAL. APLICAÇÃO. PRECEDENTES. QUARTA SEÇÃO DESTE TRIBUNAL. APLICA-SE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA JURÍDICA COMO CAUSA EXCLUDENTE DE TIPICIDADE, QUANDO O CRÉDITO PREVIDENCIÁRIO NÃO ULTRAPASSAR O VALOR EQUIVALENTE A R$ 5.000,00 (CINCO MIL REAIS) CONFORME EXPLICITA A PORTARIA N° 4.910, DE 04 DE JANEIRO DE 1999, DO MPAS, TENDO EM VISTA A INEXISTÊNCIA DE DANO AO ERÁRIO E POR NÃO OFENDER OU COLOCAR EM PERIGO O BEM JURÍDICO PENALMENTE TUTELADO, NÃO PODENDO POR ISSO, SER CONSIDERADO COMO FATO PENALMENTE TÍPICO.
Assim, conclui-se que, a despeito das críticas sofridas pelo princípio da insignificância no que tange à sua difícil delimitação, verifica-se, em análise perfunctória, que o caráter subsidiário do Direito Penal, especialmente com relação ao Direito Administrativo pode nos fornecer balizas seguras para se definir o caráter bagatelar ou não de cada fato supostamente delituoso.