A crise do Direito Penal moderno à luz do expansionismo da tutela penal na “sociedade de risco”
O presente artigo insere-se na discussão da crise do Direito Penal Moderno, no intuito de trazer como um de seus elementos a expansão que o Direito Penal vem sofrendo na atual sociedade de risco.
No âmbito da discussão a respeito da crise do Direito Penal moderno, uma gama de elementos podem ser responsabilizados como facilitadores. Em linhas gerais, dois posicionamentos se sobressaem: o primeiro traz uma tendência punitiva excessiva por parte do Estado como responsável pela crise; o segundo traz como facilitador a ausência de efetividade do Direito Penal, decorrente de uma ausência de punição mais rigorosa.
O presente artigo insere-se nessa discussão, mais especificamente na primeira linha de pensamento, no intuito de trazer como um dos elementos da crise a expansão que o Direito Penal vem sofrendo na atual sociedade de risco.
A sociedade moderna, em decorrência dos processos de desenvolvimento que vem passando como a globalização, a individualização, a revolução de gênero e a manipulação do processo tecnológico, percebe-se exposta a novos riscos e inseguranças.
Contextualmente, em um primeiro momento, os riscos pré-industriais eram pessoais, como doenças e acidentes naturais; com a industrialização, os riscos começaram a afetar a coletividade, como no caso de epidemias decorrentes da falta de higienização; e na sociedade pós-moderna, o risco atinge a coletividade em maior extensão.
Nesta última, o risco é marcado pela possibilidade de atingir não só as gerações contemporâneas, mas também as futuras, diferenciando-se por seu alcance, sua capacidade de influir socialmente e por sua constituição científica específica. Em meio a esse contexto permeado de novos receios e inseguranças sociais, a sociedade moderna torna-se uma “sociedade de risco”.
Os institutos fundamentais, as instituições de controle social e a coletividade passam a mover-se no sentido de antever e conter condutas, individuais ou coletivas, que tragam em seu contexto hipotético a ideia de um “risco”.
Consequentemente, a demanda social por segurança normativa cresce, principalmente na esfera penal.
Frente a dificuldade em utilizar os institutos tradicionais da persecução penal no combate aos novos riscos, o Estado inicia uma expansão normativa – por muitas vezes criticada e tida como desnecessária.
O Direito Penal, que antes limitava-se a tutelar bens jurídicos “clássicos” como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o patrimônio, agora aumenta de forma significativa seu campo de atuação. Passa-se a exigir dele a promoção de valores orientadores das relações humanas em sociedade, a garantia das gerações futuras e a regulamentação de temas até então estranhos a ele, tais como o meio ambiente, a manipulação genética e a economia.
Em razão desta ampliação, o Direito Penal deixa de ser uma reação às lesões mais graves ao interesse de liberdade dos cidadãos, reduzindo relativamente o significado do Direito Penal “nuclear”. Nasce então a ideia de um setorial Direito Penal Moderno – também chamado de “Direito Penal do Risco”.
No Direito Penal Moderno, a tutela passou a orientar-se no sentido de intervir de forma preventiva na liberdade individual, coibindo condutas que apresentassem contextos associados a riscos.
Quanto a esse ponto, difere-se de forma substancial do Direito Penal Clássico: enquanto este último orienta-se por princípios tais como a fragmentariedade, a subsidiariedade e a ultima ratio, visando uma intervenção repressiva mínima nas liberdades individuais, o Direito Penal do Risco orienta-se em princípios que aumentam significativamente o campo e alteram o momento de tal intervenção, como a prevenção, a segurança e a experimentação.
Outro ponto que merece destaque é o fato do Direito Penal Clássico visar com seus institutos a coibição do cometimento de condutas socialmente indesejadas, firmando-se para isso nos postulados da legalidade, da razoabilidade, da proporcionalidade e da lesividade ao bem jurídico.
O Direito Penal Moderno flexiona significativamente tais postulados quando intervém preventivamente para impedir a concretização de comportamentos arriscados.
À luz do que fora exposto, fica claro que as tendências políticas trazidas pela formulação do Direito Penal do Risco fazem surgir uma série de conflitos estruturais na ciência jurídico-penal, como seu afastamento das tradições clássicas, principalmente no que diz respeito às liberdades individuais.
O aumento na demanda social por segurança acaba por relativizar a demanda por liberdade – e o Direito Penal passa a ser visto como o único meio capaz de corresponder aos anseios da sociedade. Esta visão distorcida da finalidade da tutela penal acaba por desvirtuá-la, e é aqui que inserimos a ideia de uma crise no Direito Penal Moderno: ao passo em que a expansão desenfreada acaba por desvirtuá-lo e enfraquecê-lo, especialmente no que se refere ao seu caráter subsidiário de última ratio, não se pode simplesmente ignorar os novos desafios que surgem em matéria penal.
A visão social do Direito Penal como único mecanismo de intervenção apto a diminuir os riscos pressiona uma intervenção estatal de caráter normativo, que leva uma expansão exacerbada da tutela penal.
Porém, a referida expansão não parece ser o meio mais eficaz para lidar com os novos riscos. Criminalizar condutas tidas como lesivas à sociedade não basta para que não sejam mais praticadas, e ampliar de modo significativo as capacidades do Direito Penal faz, muitas vezes, com que este deixe “cair” a bagagem democrática.
Atentos a complexidade do tema, encerramos com o entendimento de José de Faria Costa: uma possível solução para o Direito Penal na era global consiste na diminuição das leis penais, e não na sua expansão; se faz necessário torná-las claras, precisas e de aplicação certa – isso garantirá uma maior efetividade do Direito Penal e poderá, na medida do possível, influenciar na repressão da criminalidade e na prevenção dos novos riscos.