A limitação de desconto de empréstimos bancários em folha como forma de combate ao superendividamento

A limitação de desconto de empréstimos bancários em folha como forma de combate ao superendividamento

Apesar das divergências jurisprudenciais, a limitação de desconto de empréstimos bancários em folha é o caminho mais eficaz no combate ao superendividamento e, por conseguinte, consagra o princípio da dignidade da pessoa humana.

A concessão irresponsável e desenfreada de empréstimos a trabalhadores com proventos singelos é uma prática comum entre instituições financeiras, o que, por óbvio, acomete substancialmente a renda destes e gera um fenômeno cada vez mais comum na sociedade: o superendividamento.

Nas palavras de CAVALAZZI e MARQUES (2006), o superendividamento pode ser conceituado como “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”¹.

É certo que o superendividamento se trata de um fenômeno que gera inúmeras consequências sociais. A busca incessante e irrestrita por lucro, oriunda da economia de mercado liberal presente no Brasil, faz com que cada vez mais a população esteja à mercê de cobranças abusivas de instituições financeiras e, consequentemente, tenha uma vida financeira mazelada.

À vista de tal realidade, ficou clara a necessidade de intervenção do Poder Judiciário em tais relações contratuais, especialmente em relação aos empréstimos bancários. A matéria, entretanto, ainda é objeto de amplo debate no judiciário e passa longe de ser pacificada: a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, no bojo do Recurso Especial nº 1586910, que não é válido que o judiciário delibere quanto ao limite imposto para que os bancos possam debitar na conta corrente dos clientes/devedores que fizeram empréstimos. Anteriormente, a Terceira Turma do Tribunal Superior de Justiça, em caminho oposto, tinha validado o limite de até 30%. Há, ainda, orientação do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não se faça a limitação de débito de empréstimo nos casos de contrato de mútuo, por ter o mutuário consentido com a cobrança.

Não obstante tais entendimentos, o mais importante é ressaltar que, na realidade, a questão em comento deve ser examinada a partir da Constituição Federal. Isto porque a Lex Mater preceitua, em seu artigo 170, caput, que “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna [...]”².

Nesta linha, o juiz José Wilson Gonçalves, da 5ª Vara Cível de Santos/SP, analisando as disposições constitucionais, em liminar concedida a um aposentado para proibir que o banco desconte mais de 30% de seus proventos para pagamento de empréstimos, ressaltou que não é concebível “que uma parte na relação contratual obtenha vantagem absurda enquanto a outra parte é conduzida à ruína pessoal, financeira e psíquico-emocional"³.

Ainda de acordo com o juiz, “[...] quando os efeitos práticos do contrato causar essa distorção, notadamente em razão dos altos juros e encargos financeiros exigidos do consumidor, o Estado, pelo Juiz, se provocado adequadamente, deve intervir, reequilibrando a relação contratual, seja no que diz respeito à forma de amortização (extensão de prazos ou limitação de descontos em conta corrente, por exemplo), seja modificando a taxa de juros praticada, principalmente quando se constatar excesso expressivo, comparando-se à taxa média de mercado”³.

De fato, soa preciso o entendimento do magistrado. Isto porque as práticas adotadas pelas instituições financeiras que causam o superendividamento não devem ser analisadas tão somente do prisma contratual, posto que é evidente que ferem princípios fundamentais contemplados na Constituição Federal, em especial o princípio da dignidade da pessoa humana.

Neste sentido, TEIXEIRA e SONCINC (2015) observam que “O endividamento do consumidor é um fenômeno que causa extremo impacto na vida das pessoas, especialmente porque afeta a sua dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, III), provocando sua exclusão do mercado consumo e consequentemente a exclusão social, uma vez que o endividado se encontra impossibilitado de continuar a consumir, de continuar a adquirir produtos ou serviços que a sociedade de massa impõe para aceitação dos indivíduos. A literatura específica informa a existência de casos em que o consumidor endividado acaba comprometendo até o seu mínimo vital para poder continuar no mercado de consumo e cada vez se torna mais endividado” 4.

Indubitável, portanto, que o superendividamento é um fenômeno que deve ser encarado como uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois não somente exclui o devedor do mercado de consumo, mas também o impossibilita de prover o próprio sustento e de sua família, comprometendo, consequentemente, o seu mínimo vital.

Este entendimento, felizmente, é cada vez mais comum nos Tribunais do país. Cola-se, a título de exemplo, julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONTOS EM CONTA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROPORCIONALIDADE. VÁRIOS EMPRÉSTIMOS. LIMITE MÁXIMO DE 30%. É possível que as instituições financeiras descontem valores em conta bancária dos devedores, desde que limitado ao patamar de 30%. Dessa forma, preserva-se a dignidade da pessoa humana e aplica-se o princípio da proporcionalidade, atendendo aos interesses de ambas as partes. Existindo vários empréstimos contratados em nome do devedor, a soma dos descontos de todos eles não pode ultrapassar o limite de 30% dos vencimentos líquidos do devedor, sob pena de lhe causar a completa impossibilidade de subsistência.” (TJMG. 14ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 1.0024.12.238906-7/003. Rel. Des. Estevão Lucchesi. Sem grifos no original).

Ocorre que o cenário ideal, por óbvio, é não haver necessidade de se provocar o Poder Judiciário para a solução de tais questões. Um dos caminhos para tanto seria a edição de legislação especial que trate do superendividamento. MARQUES, LIMA e BORTONCELLO (2010), sobre a possível solução para tal problemática, apontam que, “Dentre os países da civil law, a solução francesa é a que tem despertado mais interesse na doutrina brasileira, mas as lições do Direito Comparado, em especial do Canadá e da Alemanha, podem também ser úteis para os países emergentes, e para o Brasil, se quisermos elaborar uma legislação especial”5 .

Ainda sobre a ausência de uma legislação específica sobre o superendividamento, os autores supracitados concluem que, “Sendo assim, [...] o desafio proposto pela expansão do crédito ao consumo, sem uma legislação forte que acompanhasse esta massificação, a não ser o Código de Defesa do Consumidor e o princípio geral de boa-fé, pode criar uma profunda crise de solvência e confiança no país, não só na classe média, como nas mais baixas”5.

Não se nega que as soluções supra são o caminho modelo. Entretanto, o cenário ideal ainda está distante da realidade brasileira, não havendo quaisquer previsões sobre a possível regulamentação do combate ao superendividamento. Justamente por isso, a humanização das decisões judiciais e a observância das disposições constitucionais, tal qual o julgado trazido acima, têm se mostrado importantes aliados na batalha contra o endividamento.

Sabe-se que o fenômeno da desjudicialização é uma tendência, principalmente como uma forma de desobstrução do Poder Judiciário. Sem embargo, faz-se mister ressaltar que não há, atualmente, outro caminho para se combater o superendividamento e as práticas abusivas de instituições financeiras, a não ser a provocação adequada do Poder Judiciário.

À vista disso, quando constatado que os efeitos do contrato causam uma distorção absurda entre as partes, podendo levar o devedor ao superendividamento, a intervenção judicial deve ser incisiva, de forma que haja um reequilíbrio da relação contratual, tanto em relação à forma de amortização, quanto em relação a revisão da taxa de juros praticada pela instituição financeira.

Referências bibliográficas

MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. 

TEIXEIRA, Rodrigo Valente Giublin; SONCIN, Juliano Miqueletti. O endividamento do consumidor brasileiro e a ofensa ao princípio da dignidade humana. Revista de Estudos Jurídicos, v. 1, n. 25, 2015. 

MARQUES, Claudia Lima; LIMA, Clarissa Costa de; BERTONCELLO, Káren Danilevicz. Escola Nacional de Defesa do Consumidor. Prevenção e tratamento do superendividamento. 

Sobre o(a) autor(a)
Igor Atanes Chainça
Igor Atanes Chainça é assessor do Ministério Público Federal.
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