Contaminação das provas na fase inquisitorial
Entendimentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça acerca das provas obtidas na fase inquisitorial e corroboradas em juízo bem como a possibilidade da condenação se fundar exclusivamente em elementos informativos obtidos no inquérito policial a luz da doutrina pátria.
Conforme cognição pacífica acerca do engendramento das práticas processuais penais pátrias, o “processo” penal se divide em fase inquisitorial, perpetrada por atos investigativos de cunho administrativo, como o inquérito policial, procedido pelos órgãos de polícia judiciária e o (corretamente) criticado procedimento investigatório criminal, promovido pelos órgãos de persecução penal - como o Ministério Público Estadual e Federal -, e a fase processual, onde se impele a persecução criminal sob o crivo regular do contraditório e da ampla defesa, produzindo-se provas perante a autoridade judiciária, com a adequada distribuição do ônus da prova ao órgão de acusação, o qual promove a persecução em face do acusado, que não detém o dever de provar sua inocência.
Ordinariamente se admite que o inquérito policial, bem como as demais “espécies” de procedimentos inquisitivos criados à deriva do ordenamento constitucional perfazem-se de procedimentos dispensáveis e de cunho administrativo, em razão da desnecessidade destes para o oferecimento da ação penal pelo parquet, que está autorizado a oferecer a denúncia sem um procedimento prévio de cunho investigativo, caso detenha elementos informativos que entende necessários para o deslinde da acusação.
Logo, pontua-se o entendimento de que a ação penal e a posterior instrução criminal podem ser impelidas sem as investigações prévias de caráter administrativo, apesar desta ocorrência ser incomum na prática forense.
Neste sentido, a Código de Processo Penal impera que, caso a instrução processual seja promovida após o inquérito policial, e com base neste, a decisão não poderá ser efetivada com base exclusivamente em elementos informativos colhidos na fase inquisitorial, apesar de se resguardar o princípio da livre convicção do juiz.
Versa o art. 155 do CPP:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Com a ressalva do óbvio, o legislador incluiu a exceção das provas não repetíveis e antecipadas, que poderão ser utilizadas para fundamentar a decisão emanada do Juízo, como é o caso do exame de corpo de delito, que não poderá ser repetido na fase processual, em razão de já ter se escoado os vestígios do delito, os quais estavam presentes na fase inquisitiva, permitindo-se que o laudo de exame de corpo de delito seja utilizado para fundamentar a convicção do magistrado em ato decisório da ação penal, apesar de não ter sido produzido no curso da ação penal.
Neste contexto, o Superior Tribunal de Justiça, publicou uma tese sobre o tema apresentado, a qual mostra-se controversa em relação aos mandamentos normativos que lastreiam a matéria em apreço, conforme demonstraremos a seguir.
A mencionada tese declara que:
As provas inicialmente produzidas na esfera inquisitorial e reexaminadas na instrução criminal, com observância do contraditório e da ampla defesa, não violam o art. 155 do Código de Processo Penal - CPP visto que eventuais irregularidades ocorridas no inquérito policial não contaminam a ação penal dele decorrente.
Conforme se extrai de simples comparação entre o dispositivo processual preteritamente analisado e a tese emanada da Corte Superior, a parte primeira do entendimento da Corte encontra-se em clara contradição com a norma insculpida no Art.155/CPP, permitindo uma análise extensiva e prejudicial à incolumidade da persecução processual, permitindo graves afrontas à postulados constitucionais, autorizando que o julgador condene com base em elementos informativos colhidos no inquérito policial, desde que sejam “reexaminados” na instrução criminal, sem ao menos esclarecer o que se entende por “reexaminar”.
Fica a pergunta: caberia embargos declaratórios de tese jurisprudencial?
Seguindo com a análise do exposto, nota-se outra afronta ao ordenamento pátrio e a realidade forense contida na segunda parte do entendimento jurisprudencial colacionado, o qual versa que “eventuais irregularidades ocorridas no inquérito policial não contaminam a ação penal dele decorrente.”
Entende-se, portanto, numa interpretação literal - já que a corte não nos concedeu insumos bastantes para fazê-lo de outra forma, pois nem o inteiro teor dos acórdãos precedentes [1] esclarecem o arguido – que as irregularidades (nulidades?) ocorridas no inquérito policial que serve de base a propositura da ação penal, serão convalidadas com o recebimento da denúncia ?
Imagina-se a hipótese de um exame de corpo de delito realizado no inquérito policial de forma irregular num crime que se sujeita à disposição do Art. 158/CPP, sendo necessária a realização do referido exame em face dos vestígios deixados pelo fato, tornando-se impossível a repetição deste no curso da ação penal, deverá o juiz aceitar a irregularidade, ao arrepio da lei?
E caso o julgador decida desconsiderar o referido exame, sem supri-lo por meios indiretos, poderá condenar sem prova da materialidade, ou absolver por uma “mera irregularidade” ocorrida em sede inquisitorial ?
Nota-se que em qualquer vertente, a ação penal é contaminada pela inobservância de preceitos formais no inquérito.
Fernando da Costa Tourinho Filho neste sentido:
“Contudo, quando determinado ato houver sido realizado durante o inquérito policial, com manifesta preterição de formalidade, de molde a desnaturá-lo, ou ,então, se houver omissão do próprio ato, o que o juiz pode fazer, ante a projeção da relevância do ato sobre o processo, é determinar sua realização ou renovação, se possível. Não o sendo, aquele vício poderá contagiar todo o processo. Veja-se, como exemplo, a omissão de exame de corpo de delito, direto ou indireto, nos crimes que deixam vertígios. Se estes ainda subsistirem, far-se-á o exame. Muitas vezes, o exame foi feito, mas, por um só louvado. Tal omissão de formalidade acarreta a imprestabilidade do laudo. Trata-se de formalidade ad solemnitatem.” TOURINHO, 1979, pag. 163.
Infelizmente é claro o hábito das Cortes Superiores em violar preceitos constitucionais reconheidos, inclusive, no direito comparado, ratificando arbitrariedades cometidas por juízes singulares e membros do parquet.
Reiteramos aqui o brado negativo de agressão às instituições públicas, e à impunidade, contudo, salutar se faz repisar a necessidade da observância acurada acerca da aplicação das normas penais e processuais penais, afastando-se o assaz da persecução ao “inimigo” do Estado, animus que só aflora a violação a axiomas indispensáveis para a manutenção da estabilidade social e jurídica de um Estado Democrático.
Notas
[1] AgRg nos EDcl no AREsp 1006059/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Julgado em 20/03/2018,DJE 02/04/2018; AgInt no AREsp 1168591/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, Julgado em 20/02/2018,DJE 28/02/2018; HC 381186/DF,Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, Julgado em 26/09/2017,DJE 06/10/2017; AgRg no AREsp 609760/MG, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, Julgado em 01/03/2017,DJE 29/03/2017; HC 371739/PR, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Julgado em 06/12/2016,DJE 02/02/2017; AgRg no HC 256894/MT, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Julgado em 14/06/2016,DJE 30/06/2016
[2] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal - 3º Volume. Editora Jalovi, 1979.