Desconsideração da personalidade jurídica: contorno ao princípio da autonomia patrimonial

Desconsideração da personalidade jurídica: contorno ao princípio da autonomia patrimonial

As sociedades empresariais, quando devidamente registradas, adquirem personalidade jurídica. Dentre as consequências dessa aquisição, existe a responsabilidade patrimonial, onde, por meio do Princípio da Autonomia, os bens do sócio não se confundem com os bens da sociedade, via de regra.

1. Introdução:

As sociedades podem ser classificadas em sociedades personificadas e sociedades não personificadas. 

Uma das consequências jurídicas de uma sociedade personificada é que ela é considerada um sujeito de direitos. Denota-se, nessa toada, que há uma separação entre os patrimônios dos sócios e o da sociedade. 

Tal asseveração é confirmada pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil Brasileiro. 

2. Da Aquisição da Personalidade Jurídica:

As sociedades empresariais possuem características distintas, seja pela responsabilidade de seus sócios, sua classificação (personificação), forma do capital ou estrutura econômica. Porém, nada disso importa para a aquisição da personalidade jurídica que, nos termos do artigo 45 do Código Civil Brasileiro, só terá sua existência a partir do momento em que for registrada. 

Pode-se, assim, assegurar que, firmar o contrato social ou o estatuto social não é ato suficiente para que a sociedade tenha personalidade jurídica. 

Frisa-se, nesse momento, que as sociedades empresariais são registradas na Junta Comercial, enquanto que as sociedades simples, em Cartório. 

Rocha e Santo (2014) dissertam que quando a sociedade for sujeito personalizado, poderá desde que não haja vedação legislativa, praticar qualquer ato jurídico que esteja previsto no contrato social. 

Assinalam, ainda, três consequências advindas da personificação quais sejam: Titularidade Negocial (embora representada, a sociedade é quem ocupa um dos polos numa relação comercial); Titularidade Processual (possui capacidade processual, pode ocupar o polo passivo ou ativo de qualquer demanda judicial) e Responsabilidade Patrimonial (por possuir patrimônio próprio, em face do Princípio da Autonomia Patrimonial, que se discorrerá a seguir) 

3. Princípio da Autonomia Patrimonial:

Por meio do Princípio da Autonomia Patrimonial que o manto da personificação da sociedade permite que os bens dos sócios sejam considerados distintos dos bens da sociedade, ou seja, os bens são incomunicáveis. 

De forma educativa, elucida-se que, sendo a pessoa jurídica capaz de adquirir direitos, também é ela capaz de responder por suas obrigações. 

O Princípio em comento é de suma importância para a economia do país (RAMOS, 2010.), uma vez que as empresas são as responsáveis pelo maior recolhimento de tributos e, de igual sorte, geradora de empregos e de receitas. 

Em contrapartida, se não houvesse autonomia patrimonial, muitas empresas sequer existiriam, uma vez que, no insucesso do empreendimento, sua criação poderia acarretar em riscos predominantemente superiores às vantagens. 

Coelho (2012) acrescenta que esse Princípio atinge a coletividade, podendo ser considerado um dos instrumentos de atração de investimento mais importantes para a economia globalizada, pois permite a atuação dos investidores tradicionais, afastando os risk makers, e o consequente aumento da inflação. 

A Autonomia patrimonial, em que pese sua importância, gerou repercussão negativa, uma vez que, percebeu-se que tal proteção jurídica poderia ser usada de forma abusiva e/ou fraudulenta ao proteger o patrimônio pessoal de sócios inescrupulosos, consoante Ramos (2010). 

4. Da Desconsideração da Personalidade Jurídica:

A Desconsideração da Personalidade Jurídica foi o método encontrado para determinar em quais situações o patrimônio dos sócios poderiam ser atingidos, afastando a personalidade jurídica da empresa, com a intenção de evitar lesões a credores (SOUZA FILHO, 2013.). 

Segundo Grinover (2008) e, de igual forma, Ramos (2010), o primeiro caso de desconsideração da personalidade jurídica ocorreu nos Tribunais Ingleses, contudo, alavancou grandes repercussões no direito norte-americano. No Brasil, essa possibilidade começou a ser regulamentada na década de 90. 

Inicialmente, no Código de Defesa do Consumidor (1990), após na Lei nº 8.884/1994, na Lei nº 9.605/1998, para finalmente ser, em 2002, regulada pelo Código Civil Brasileiro, no seu artigo 50, in verbis: 

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares ou sócios da pessoa jurídica. 

Insta aduzir que a personalidade jurídica da sociedade é afastada de forma momentânea, e seus efeitos são para a relação que se discute, judicialmente, (BRUSCATO, 2011) Ressalta-se, ainda, que, antes da entrada em vigor do NCPC, a desconsideração poderia ocorrer na própria ação executiva, não sendo necessária a distribuição de ação própria, desde que fundamentada (NEGRÃO, 2011). 

Contemporaneamente, essa situação está regulamentada pelo NCPC, no capítulo IV do Código. Duas são as teorias que respaldam sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica, definindo seu âmbito de alcance, bem assim, das condições para sua aplicabilidade. 

4.1 Da Teoria Maior:

Coelho (2012) é objetivo ao afirmar que a Teoria Maior permite que o Magistrado defira o pedido de desconsideração da personalidade jurídica como forma de coibir fraudes e abusos. 

A Teoria Maior é taxativa, estando elencada no artigo 50, do Código Civil Brasileiro, ou seja, quando houver abuso da personalidade jurídica, pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. 

Sendo o rol taxativo, importa destacar que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica não pode ser extensiva. 

O desvio de finalidade fica caracterizado quando o objeto social da empresa diverge da atividade explorada pela sociedade. Já a confusão patrimonial ocorre quando não há caixas separados para entrada e saída de valores dos sócios e da sociedade (NEGRÃO, 2011) A confusão patrimonial é um forte motivo para o deferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica no caso da EIRELI, uma vez que o valor exigido para o capital social é elevado e, os pequenos empresários, não conseguem distinguir o patrimônio pessoal do da EIRELI. 

4.2 Da Teoria Menor:

Coelho (2012) destaca que a Teoria Menor é mais vasta, e que o simples prejuízo do credor já serve para embasar o deferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica. 

Negrão (2011) sublinha que os casos de aplicação da Teoria Menor são encontrados na legislação extravagante e, que para sua caracterização basta a demonstração de insolvência da sociedade. 

A teoria menor abrange mais possibilidades de deferimento da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que basta demonstrar suspeitas da falta de intenção (ou condição) de cumprimento da obrigação devida ao credor. 

Tratando-se de relação de consumo, trabalhista ou ambiental, aplica-se a Teoria Menor, em face do reconhecimento da vulnerabilidade de quem solicita a desconsideração da personalidade jurídica. 4. Da Desconsideração Inversa Genericamente, o motivo pelo qual a desconsideração é solicitada resume-se em atingir os bens dos sócios por dívidas oriundas da sociedade. 

Há, no entanto, a possibilidade de pleitear, judicialmente, a chamada Desconsideração Inversa, onde se busca atingir o patrimônio da pessoa jurídica por dívidas advindas do sócio. 

Essa modalidade consta no Enunciado 283, do CJF, in verbis: 

Art. 50. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. 

Essa modalidade de desconsideração está prevista no NCPC, no artigo 133, §2º: § 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Ramos (2010) afirma que a desconsideração da personalidade jurídica, na modalidade inversa, é bastante utilizada no direito de família, onde o sócio transfere seu patrimônio pessoal para a empresa, a fim de afastá-lo da partilha ou de eventual execução alimentícia. 

Outra situação em que cabe desconsideração inversa é na EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, uma vez que para sua constituição é necessário capital social mínimo de 100 salários mínimos nacionais. Ou seja, em alguns casos, o titular da empresa transfere todo o seu patrimônio particular para integralizar o capital social do seu negócio. 

5. Das Considerações Finais

O instrumento foi criado, de forma exclusiva, para coibir abusos, tanto no que tange a Teoria Maior, quanto a Teoria Menor. Porém, importa destacar que desconsiderar a personalidade jurídica é uma medida de exceção e não regra geral. 

Diante disso, torna-se visível a impossibilidade de afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica abnegue o princípio da autonomia patrimonial da sociedade empresária. 

Insta, no entanto, dizer que em determinados casos, é permitido ao Magistrado contornar a blindagem oferecida pelo princípio, a fim de estender a obrigação aos sócios da sociedade empresária, ou, à sociedade empresária obrigações dos sócios. 

Se o Princípio da Autonomia perdesse sua força, integralmente, a desconsideração da personalidade jurídica não seria restrita ao processo onde foi solicitado, ademais acarretaria em um prejuízo social imensurável, inclusive com aumento do índice de desemprego. 

Conclui-se, assim, que sem o Princípio da Autonomia não haveria possibilidade de se constituir uma sociedade de responsabilidade limitada. 

Doutra banda, sem a Disregard of Legal Entity, a sociedade estaria vulnerável ao mau uso da personalidade jurídica. 

REFERÊNCIAS

BRUSCATO, Wilges. Manual de direito empresarial brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. 

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial: direito de empresa. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 1v. 

GRINOVER, Ada Pellegrini. Da Desconsideração da Pessoa Jurídica (Aspectos de direito material e processual).Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 10, n. 48, mar. /abril. 2008. 

NEGRÃO, Ricardo. Direito Empresarial: Estudo Unificado. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 

RAMOS, André Luiz Santa Cruz. Direito Empresarial Esquematizado. São Paulo: Método, 2010. 

ROCHA, Marcelo Hugo da; SANTOS, Vauledir Ribeiro. Como se preparar para o Exame da Ordem, 1ª fase: comercial. 10. ed. São Paulo: Método, 2014. 

SOUZA FILHO, Genival Silva. EIRELI – Empresa Individual de Responsabilidade Limitada. Revista de Direito Empresarial, Belo Horizonte, v. 10, n.2, p.105-120, maio/ago. 2013.

Sobre o(a) autor(a)
Josiele Gülden Reck
Josiele Gülden Reck, Especialista em Direito Empresarial Contemporâneo pela Faculdade CNEC de Farroupilha – RS. Bacharel em Direito pela Faculdade CNEC de Farroupilha – RS.
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