É possível o corte de energia elétrica do consumidor inadimplente
A concessionária pode interromper o fornecimento de energia elétrica
se, após aviso prévio, o consumidor continua sem pagar a conta. O
entendimento é da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que,
por maioria, reconheceu o direito da Companhia Energética de Minas
Gerais (Cemig) cortar o fornecimento de energia de uma consumidora
inadimplente.
A consumidora Sebastiana Costa entrou com um mandado de segurança na
Justiça mineira contra ato do gerente regional da Cemig. Na ação,
impetrada em 1999, Sebastiana buscava impedir o corte, afirmando estar
inadimplente em razão de se encontrar passando por diversas
dificuldades financeiras, estando desempregada e cuidando da mãe.
Segundo afirma, nos últimos seis meses, antes de entrar com o mandado
de segurança, os funcionários da companhia estariam ameaçando-a,
intimidações concretizadas em setembro daquele ano. Pediu na ação que,
liminarmente, o fornecimento fosse restabelecido, independentemente do
pagamento das contas vencidas.
A liminar foi concedida pelo juiz de Governador Valadares (MG), o qual
determinou o imediato restabelecimento do fornecimento de energia
elétrica. Ao julgar o mérito, o juiz entendeu que a luz é um bem
essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável
subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, motivo pelo
qual entendeu impossível a sua interrupção ou suspensão. No entanto,
considerou que nenhuma razão assistia à consumidora, pois ela foi
avisada sobre a suspensão por falta de pagamento, que é fato previsto
na legislação e não havia direito líquido e certo ao que estava pedindo.
Ela apelou, mas o Tribunal de Justiça de Minas Gerais manteve a
decisão. Para o TJ, não há previsão legal que obrigue o fornecimento
gratuito de energia elétrica, assim não haveria arbitrariedade na
suspensão do fornecimento até a regularização dos pagamentos. "Não
fosse assim, num país onde a grande maioria é hipossuficiente, seria o
mesmo que decretar a falência da fornecedora de energia". Diante da
decisão, a consumidora recorreu ao STJ, afirmando que a decisão do TJ
ofendeu o Código de Defesa de Consumidor (CDC).
No STJ, o relator do processo, ministro Humberto Gomes de Barros,
concluiu que é lícito à concessionária interromper o fornecimento de
energia elétrica, quando houve aviso prévio e o consumidor manteve a
inadimplência no pagamento da conta. O ministro ressaltou que, apesar
de ter contribuído para a jurisprudência que havia sido firmada na
Primeira Turma de que o corte não poderia ser permitido, percebeu que
"o corte, por efeito de mora (atraso), além de não maltratar o Código
do Consumidor, é permitido".
A mudança de entendimento se deu porque percebeu, durante apreciação de
caso semelhante na Primeira Turma, que a proibição de cortar o
fornecimento em tais casos acarretaria aquilo a que se denomina "efeito
dominó". "Com efeito, ao saber que o vizinho está recebendo energia de
graça, o cidadão tenderá a trazer para si o tentador benefício. Em
pouco tempo, ninguém mais honrará a conta de luz". E, se ninguém paga
pelo fornecimento, a distribuidora de energia não terá renda, não
podendo adquirir os insumos necessários à execução dos serviços
concedidos, vindo a falir. O que acarretaria a interrupção definitiva
do fornecimento.
A tese da impossibilidade do corte assenta-se nos artigos 22 e 42 do
CDC, afirma Gomes de Barros. "É necessário, entretanto, observar que o
fornecimento de energia elétrica se faz mediante concessão, regida pela
Lei 8.987/95", destaca. O artigo 6º da lei afirma, dentre outras
coisas, que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua
interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando
motivada por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da
coletividade. "Como se percebe, o parágrafo terceiro (transcrito
anteriormente) permite, expressamente, a interrupção do fornecimento,
quando o usuário deixa de cumprir sua obrigação de pagar".
Para o ministro, a circunstância de as empresas prestarem serviços de
primeira necessidade não as obriga ao fornecimento gratuito. "O corte é
doloroso, mas não acarreta vexame", afirma. "Vergonha maior é o
desemprego e a miséria que ele acarreta". A seu ver, o fornecimento
gratuito de bens da vida constitui esmola. "Negamos empregos a nosso
povo e o apascentamos com esmolas. Nenhuma sociedade pode sobreviver
com seus integrantes vivendo de esmolas".
Esse entendimento vai ao encontro do que já vinha sendo julgado, por
unanimidade, pela Segunda Turma. Ao votar acompanhando o relator, o
ministro Franciulli Netto lembrou que na Segunda Turma houve casos de
empresas que usam energia elétrica como insumo e estavam há cinco anos
sem pagar, "beneficiadas pela benevolência de serem serviço público,
mas ninguém pode passar em um pedágio e não pagá-lo afirmando ser
pobre". Franciulli Netto destacou também o fato de que em inúmeros
estados há uma cota de quilowatt gratuita para os casos mais
excepcionais.
Também votando nesse sentido, o ministro João Otávio de Noronha teceu
algumas considerações. A primeira quanto à constitucionalidade das
leis. Para ele, em recurso especial, se a lei é constitucional, a
matéria é pertinente ao Supremo Tribunal Federal, mas não sendo, tem-se
que aplicá-la. E a Lei 9.427 traça especificamente essa hipótese,
dizendo que não importa em descontinuidade quando não há o pagamento e
há a autorização para o corte de energia. Outra consideração feita pelo
ministro foi quanto á miserabilidade. "A miserabilidade é uma questão
de política social. Política social se afaz via orçamento da República,
orçamento fiscal do país e não por meio das receitas das empresas
privadas", afirmou. Outra coisa: o setor brasileiro de energia elétrica
padece de investimentos de mais de cem bilhões de dólares para que o
país possa retomar o seu desenvolvimento. Não vamos ter crescimento do
PIB acelerado se não resolvermos o problema energético. Portanto, se
queremos o desenvolvimento do país, atender à sociedade com um todo,
devemos cumprir as regras, e a regra é bem clara".
Ao acompanhar essa conclusão, o ministro Castro Meira destacou voto do
ministro Franciulli Netto, proferido durante julgamento de questão
semelhante na Segunda Turma. Na ocasião, Franciulli Netto afirmou
entender que, na medida em que o Poder Judiciário não admite o corte do
fornecimento de energia, estimula, sem qualquer dúvida, a
inadimplência, que aumentará em uma progressão geométrica, chegando ao
ponto em que a companhia de energia poderá atingir um regime caótico, a
não ser que os restantes consumidores adimplentes se sujeitem a uma
tarifa exorbitante. Entendeu, assim,que as tarifas ficam mais baratas
na medida em que todos pagam. "É claro que todos ficamos comiserados
com a situação de quem passa por dificuldades, mas prestigiar uma
política que implique um estímulo à inadimplência, creio que não possa
ser a nossa melhor lição. Temos que lembrar que, ao julgarmos, estamos
tendo uma missão pedagógica no sentido de levar mensagem para a
sociedade, e esta não pode ser meramente assistencialista".
A decisão da Primeira Seção uniformiza a jurisprudência do STJ a ser
seguida pelas duas turmas que a integram e apreciam as questões
relativas a Direito Público.