STJ impede eficácia retroativa de escritura que fixou separação de bens após união estável de 35 anos

STJ impede eficácia retroativa de escritura que fixou separação de bens após união estável de 35 anos

Com base nas disposições do artigo 1.725 do Código Civil, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a impossibilidade de se dar eficácia retroativa a uma escritura pública firmada em 2015, por meio da qual os então companheiros reconheceram uma união estável de 35 anos e fixaram o regime de separação dos bens constituídos durante a relação.

Para o colegiado, a formalização posterior da união estável com adoção de regime distinto daquele previsto pelo Código Civil para os casos em que não há manifestação formal – a comunhão parcial de bens – equivale à modificação de regime de bens na constância do relacionamento, produzindo efeitos apenas a partir da elaboração da escritura (eficácia ex nunc).

De acordo com os autos, a relação teve início em 1980, mas a primeira escritura de união estável só foi lavrada em 2012. Nesse primeiro documento, houve apenas a declaração da existência de união estável – que, à época, já durava cerca de 33 anos –, sem disposição sobre o regime de bens.

Na escritura firmada em 2015 – três meses antes do falecimento da companheira –, além da declaração de existência da união estável, definiu-se que, na forma do artigo 1.725 do Código Civil, todos os bens e direitos configuravam patrimônio incomunicável dos conviventes.

Na ação que deu origem ao recurso, a filha da convivente buscou a anulação da escritura pública firmada em 2015, sob a alegação de que a manifestação de vontade de sua mãe não se deu de forma livre e consciente, e de que seria inadmissível a celebração de escritura pública de união estável com eficácia retroativa.

Escritura de união estável modificativa não pode retroagir

O pedido de anulação foi julgado improcedente em primeira instância, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS). Para o tribunal, não seria possível a declaração de nulidade do negócio jurídico sem a comprovação de vício nos elementos de validade da declaração, e seria possível a lavratura de escritura pública meramente declaratória do regime de bens eleito pelos conviventes, ainda que em caráter retroativo.

Segundo a relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, o Código Civil prevê que, embora seja dado aos companheiros o poder de dispor sobre o regime de bens que regerá a união estável, ocorrerá a intervenção estatal na definição desse regime quando não houver a disposição dos conviventes sobre o assunto, por escrito e de forma expressa.

"Dessa premissa decorre a conclusão de que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do regime de bens da união estável com eficácia retroativa", explicou.

Silêncio não significa ausência de regime de bens

Nancy Andrighi apontou que a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada à falta de regime de bens na união estável não formalizada, como se houvesse uma lacuna passível de posterior preenchimento com eficácia retroativa.

No caso dos autos, afirmou a ministra, a união estável mantida entre as partes sempre esteve submetida ao regime normativamente instituído durante a sua vigência. Além disso, a magistrada salientou o fato da existência de escritura pública lavrada em 2012, em que as partes, embora confirmassem a longa união, não dispuseram sobre os bens reunidos na sua constância.

"O silêncio das partes naquela escritura pública de 2012 não pode, a meu juízo, ser interpretado como uma ausência de regime de bens que somente veio a ser sanada pela escritura pública lavrada em 2015. O silêncio é eloquente e se traduz na submissão das partes ao regime legal, de modo que a escritura posteriormente lavrada efetivamente modifica o regime então vigente", concluiu a ministra ao reformar o acórdão do TJMS.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.845.416 - MS (2019/0150046-0)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
R.P/ACÓRDÃO : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : VERA LUCIA FERREIRA LOURENÇO
ADVOGADO : LUIS FERNANDO LOPES ORTIZ - MS012082
RECORRENTE : MARLIZETE FERREIRA LOURENCO RODRIGUES
ADVOGADOS : ROBERTO SANTOS CUNHA - MS008974
BRUNO GALEANO MOURÃO - MS014509
LORENA IBRAHIM BARBOSA - MS011676
RECORRIDO : JOSÉ MANUEL DIAS ALVES
ADVOGADOS : JOÃO PAULO SALES DELMONDES - MS017876
MARCELA SALES DOS SANTOS - MS021291
INTERES. : JOSE FERNANDO FERREIRA LOURENCO
INTERES. : GISELLE MARIA FERREIRA LOURENÇO
INTERES. : EURIDES CANDIDO BASSANULPHO E SILVA - ESPÓLIO
EMENTA
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES. OMISSÕES
E CONTRADIÇÕES. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES EXAMINADAS E
COERENTEMENTE FUNDAMENTADAS. ERRO, FRAUDE, DOLO OU
SUB-ROGAÇÃO DE BENS PARTICULARES. QUESTÃO NÃO RECONHECIDA PELO
ACÓRDÃO RECORRIDO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ.
FORMALIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL. DESNECESSIDADE. CARACTERIZAÇÃO
QUE INDEPENDE DE FORMA. EFEITOS PATRIMONIAIS DA UNIÃO ESTÁVEL.
REGIME DE BENS. APLICABILIDADE DA REGRA DO ART. 1.725 DO CC/2002 E
DO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL, NA AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO
EXPRESSA E ESCRITA DAS PARTES. SUBMISSÃO AO REGIME DE BENS
IMPOSITIVAMENTE ESTABELECIDO PELO LEGISLADOR. AUSÊNCIA DE
LACUNA NORMATIVA QUE SUSTENTE A TESE DE AUSÊNCIA DE REGIME DE
BENS. CELEBRAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INCOMUNICABILIDADE
PATRIMONIAL COM EFICÁCIA RETROATIVA. IMPOSSIBILIDADE, POIS
CONFIGURADA A ALTERAÇÃO DE REGIME COM EFICÁCIA EX-TUNC, AINDA
QUE SOB O RÓTULO DE MERA DECLARAÇÃO DE FATO PRÉ-EXISTENTE.
1- Os propósitos recursais consistem em definir, para além da alegada
negativa de prestação jurisdicional: (i) se houve erro, fraude, dolo ou
aquisição de bens particulares sub-rogados e de efetiva participação da
companheira; (ii) se a escritura pública de reconhecimento de união estável
e declaração de incomunicabilidade de patrimônio firmada entre as partes
teria se limitado a reconhecer situação fática pretérita, a existência de
união estável sob o regime da separação total de bens, e não a alterar, com
eficácia retroativa, o regime de bens anteriormente existente.
2- Inexistem omissões e contradições no acórdão que examina amplamente,
tanto no voto vencedor, quanto no voto vencido, todas as questões suscitadas
pelas partes.
3- Dado que o acórdão recorrido não reconheceu a existência de erro,
fraude ao direito sucessório, dolo ou aquisição de patrimônio por meio de
bens particulares sub-rogados e de efetiva participação da companheira,
descabe o reexame dessa questão no âmbito do recurso especial diante da
necessidade de novo e profundo reexame dos fatos e das provas, expediente
vedado pela Súmula 7/STJ.
4- Conquanto não haja a exigência legal de formalização da união estável
como pressuposto de sua existência, é certo que a ausência dessa
formalidade poderá gerar consequências aos efeitos patrimoniais da relação
mantida pelas partes, sobretudo quanto às matérias que o legislador,
subtraindo parte dessa autonomia, entendeu por bem disciplinar.
5- A regra do art. 1.725 do CC/2002 concretiza essa premissa, uma vez que o
legislador, como forma de estimular a formalização das relações
convivenciais, previu que, embora seja dado aos companheiros o poder de
livremente dispor sobre o regime de bens que regerá a união estável,
haverá a intervenção estatal impositiva na definição do regime de bens se
porventura não houver a disposição, expressa e escrita, dos conviventes
acerca da matéria.
6- Em razão da interpretação do art. 1.725 do CC/2002, decorre a conclusão
de que não é possível a celebração de escritura pública modificativa do
regime de bens da união estável com eficácia retroativa, especialmente
porque a ausência de contrato escrito convivencial não pode ser equiparada
à ausência de regime de bens na união estável não formalizada, inexistindo
lacuna normativa suscetível de ulterior declaração com eficácia retroativa.
7- Em suma, às uniões estáveis não contratualizadas ou contratualizadas
sem dispor sobre o regime de bens, aplica-se o regime legal da comunhão
parcial de bens do art. 1.725 do CC/2002, não se admitindo que uma
escritura pública de reconhecimento de união estável e declaração de
incomunicabilidade de patrimônio seja considerada mera declaração de fato
pré-existente, a saber, que a incomunicabilidade era algo existente desde o
princípio da união estável, porque se trata, em verdade, de inadmissível
alteração de regime de bens com eficácia ex tunc. 8- Na hipótese, a união
estável mantida entre as partes entre os anos de
1980 e 2015 sempre esteve submetida ao regime normativamente instituído
durante sua vigência, seja sob a perspectiva da partilha igualitária mediante
comprovação do esforço comum (Súmula 380/STF), seja sob a perspectiva
da partilha igualitária com presunção legal de esforço comum (art. 5º,
caput, da Lei nº 9.278/96), seja ainda sob a perspectiva de um verdadeiro
regime de comunhão parcial de bens semelhante ao adotado no casamento
(art. 1.725 do CC/2002).

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr.
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, acompanhando a divergência, por maioria, dar
parcial provimento aos recursos especiais, nos termos do voto da Sra. Ministra Nancy
Andrighi, que lavrará o acórdão. Vencido o Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze. Votaram
com a Sra. Ministra Nancy Andrighi os Srs. Ministros Moura Ribeiro, Paulo de Tarso
Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva.
Brasília (DF), 17 de agosto de 2021(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
9- Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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