Garantia fiduciária exige identificação do crédito, e não dos títulos objeto da cessão

Garantia fiduciária exige identificação do crédito, e não dos títulos objeto da cessão

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou decisão da Justiça paulista segundo a qual a garantia fiduciária somente estaria aperfeiçoada com a identificação dos títulos de crédito na contratação. Para os ministros, o instrumento de cessão fiduciária de direitos creditórios deve indicar, de maneira precisa, o crédito, e não o título objeto de cessão.

Dessa forma, o colegiado deu provimento ao recurso especial de um banco e excluiu os créditos cedidos a ele dos efeitos da recuperação judicial das empresas fiduciantes, ao reconhecer que a instituição bancária detém a titularidade dos créditos, nos termos da Lei 9.514/1997.

Segundo informações do processo, em 2013, o banco emitiu cédula de crédito bancário e emprestou a uma empresa têxtil R$ 1 milhão, garantidos por instrumento particular de cessão fiduciária de duplicadas e direitos, registrado em cartório.

Em recuperação judicial, a empresa e a sua distribuidora tentaram infirmar o instrumento de cessão fiduciária, alegando que não houve a correta determinação dos títulos de crédito cedidos, submetendo, assim, o valor remanescente – pouco mais de R$ 137 mil – à recuperação.

O banco ajuizou ação argumentando que seria o proprietário fiduciário dos bens móveis, razão pela qual não se submeteria à recuperação. Em primeiro grau, o pedido foi julgado procedente, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entendeu que a exigência legal para aperfeiçoar a garantia fiduciária somente estaria cumprida com a identificação dos títulos de crédito na contratação – o que não ocorreu no caso.

Especificação do crédito

O relator do recurso no STJ, ministro Marco Aurélio Bellizze, afirmou que o fundamento do acórdão recorrido não encontra respaldo nos autos, nem na lei. Segundo ele, a cessão fiduciária sobre títulos de crédito transfere a titularidade do crédito cedido, o qual deve ser devidamente especificado no contrato – e não do título, que simplesmente o representa, conforme os artigos 18, IV, e 19, I, da Lei 9.514/1997.

“Por meio da cessão fiduciária de direitos creditórios, representados pelos correlatos títulos, o devedor fiduciante, a partir da contratação, cede ‘seus recebíveis’ à instituição financeira (credor fiduciário), como garantia ao mútuo bancário, que, inclusive, poderá apoderar-se diretamente do crédito constante em conta vinculada (‘trava bancária’) ou receber o respectivo pagamento diretamente do terceiro (devedor do devedor fiduciante)”, disse.

Concurso de credores

O relator ressaltou que a jurisprudência do STJ é sedimentada no sentido de que a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de créditos, não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, de acordo com o parágrafo 3° do artigo 49 da Lei 11.101/2005.

“Afigura-se cada vez mais comum a suscitação de teses, por parte das empresas em recuperação judicial, destinadas a infirmar a constituição do negócio fiduciário, com o declarado propósito de submeter o aludido crédito ao concurso recuperacional de credores”, declarou Bellizze.

Ele mencionou precedente da Terceira Turma segundo o qual a constituição da propriedade fiduciária, oriunda de cessão fiduciária, dá-se a partir da contratação, sendo, desde então, plenamente válida e eficaz entre as partes.

Duplicata virtual

Segundo Bellizze, na ocasião da realização da cessão fiduciária, é possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido emitido, o que inviabiliza a sua determinação no contrato. O ministro explicou que, por expressa disposição da Lei 10.931/2004, a garantia da cédula de crédito bancário pode ser constituída por crédito futuro, o que já inviabilizaria a especificação de um título ainda não emitido.

“Nesse contexto, e a partir da fundamentação teórica exposta, tem-se que a apresentação de farta documentação, com os borderôs eletrônicos que ostentam a descrição das duplicatas, representativas do crédito dado em garantia fiduciária à obrigação assumida na cédula de crédito bancário em questão, tal como reconhecido pelo juízo primevo, atende detidamente o requisito contido no artigo 18, IV, da Lei 9.514/1997”, ressaltou o relator.

Por fim, o ministro destacou que o entendimento do TJSP, ao exigir a especificação do título – e não do crédito –, “ignora a própria sistemática da duplicada virtual”, em que a devedora fiduciante alimenta o sistema, com a emissão da duplicata eletrônica, gerando a seu favor um crédito cujo borderô é remetido ao sacado/devedor.

“O pagamento do borderô, por sua vez, ingressa na conta vinculada, em garantia fiduciária ao mútuo bancário tomado pela empresa fiduciante, não pairando nenhuma dúvida quanto à detida especificação do crédito (e não do título que o representa), nos moldes exigidos pelo artigo 18, IV, da Lei 9.514/1997”, afirmou.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.797.196 - SP (2017/0238573-1)
RELATOR : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE
RECORRENTE : BANCO ABC BRASIL S.A
ADVOGADOS : GABRIEL JOSÉ DE ORLEANS E BRAGANÇA - SP282419A
PEDRO REZENDE MARINHO NUNES - SP342373A
RECORRIDO : KOWARICK DISTRIBUIDORA DE TECIDOS E PRESTADORA DE
SERVICOS LTDA - EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL
RECORRIDO : KOWARICK INDUSTRIA TEXTIL EIRELI - EM RECUPERAÇÃO
JUDICIAL
ADVOGADO : ADRIANO MACHADO FIGUEIREDO - SP166959
REPR. POR : ALVAREZ & MARSAL - ADMINISTRADOR
ADVOGADO : FERNANDO GOMES DOS REIS LOBO - SP183676
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PRETENSÃO DE EXCLUSÃO DE
CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE AO ARGUMENTO DE QUE O TÍTULO DE CRÉDITO
(DUPLICATAS VIRTUAIS) NÃO SE ENCONTRARIA DEVIDAMENTE DESCRITO NO
INSTRUMENTO CONTRATUAL. DESCABIMENTO. CORRETA DESCRIÇÃO DO CRÉDITO,
OBJETO DE CESSÃO. RECONHECIMENTO. OBSERVÂNCIA DA LEI DE REGÊNCIA.
RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
1. A controvérsia posta no presente recurso especial cinge-se em saber se, para a
perfectibilização do negócio fiduciário, a permitir a exclusão do credor titular da posição
fiduciária dos efeitos da recuperação judicial, no específico caso de cessão fiduciária de
direitos creditórios, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, os títulos
representativos do crédito (in casu, duplicatas virtuais), como entendeu o Tribunal de origem;
ou se é o crédito, objeto de cessão, que deve estar suficientemente identificado, como
defende o banco recorrente.
2. Dos termos do art. 18, IV, e 19, I, da Lei n. Lei n. 9.514/1997, ressai absolutamente claro
que a cessão fiduciária sobre títulos de créditos opera a transferência da titularidade dos
créditos cedidos. Ou seja, o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que hão de
estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os
representa.
3. Por meio da cessão fiduciária de direitos creditórios, representados pelos correlatos
títulos, o devedor fiduciante, a partir da contratação, cede "seus recebíveis" à instituição
financeira (credor fiduciário), como garantia ao mútuo bancário, que, inclusive, poderá
apoderar-se diretamente do crédito constante em conta vinculada ("trava bancária") ou
receber o respectivo pagamento diretamente do terceiro (devedor do devedor fiduciante).
Por consectário, em atenção à própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a
garantia fiduciária – bem incorpóreo e fungível, por excelência –, sua identificação no
respectivo contrato, naturalmente, referir-se-á à mensuração do valor constante da conta
vinculada ou dos "recebíveis", cedidos em garantia ao débito proveniente do mútuo bancário
e representados por títulos de crédito.
4. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à
conformação do negócio fiduciário, além de não possuir previsão legal – o que, por si, obsta
a adoção de uma interpretação judicial ampliativa – cede a uma questão de ordem prática
incontornável. Por ocasião da realização da cessão fiduciária, afigura-se absolutamente
possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a
inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato.
5. Registre-se, inclusive, que a lei especial de regência (Lei n. 10.931/2004, que disciplina a
cédula de crédito bancário) é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da

cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, per si,
inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido).
6. Na hipótese dos autos, as disposições contratuais estabelecidas pelas partes não deixam
nenhuma margem de dúvidas quanto à indicação dos créditos cedidos, representados por
duplicatas físicas ou escriturais – sendo estas, por sua vez, representadas pelos correlatos
borderôs, sob a forma escrita ou eletrônica -, os quais ingressarão, a esse título (em garantia
fiduciária), em conta vinculada para esse exclusivo propósito.
7. A duplicata virtual é emitida sob a forma escritural, mediante o lançamento em sistema
eletrônico de escrituração, pela empresa credora da subjacente relação de compra e venda
mercantil/prestação de serviços (no caso, as próprias recuperandas), responsável pela
higidez da indicação.
8. É, portanto, a própria devedora fiduciante que alimenta o sistema, com a emissão da
duplicata eletrônica, que corporifica uma venda mercantil ou uma prestação de serviços por
ela realizada, cuja veracidade é de sua exclusiva responsabilidade, gerando a seu favor um
crédito, a permitir a geração de um borderô (o qual contém, por referência, a respectiva
duplicata), remetida ao sacado/devedor. Já se pode antever o absoluto contrassenso de se
reconhecer a inidoneidade desse documento em prol dos interesses daquele que é o próprio
responsável por sua conformação. O pagamento, por sua vez, ingressa na conta vinculada,
em garantia fiduciária ao mútuo bancário tomada pela empresa fiduciante, não pairando
nenhuma dúvida quanto à detida especificação do crédito (e não do título que o representa),
nos moldes exigidos pelo art. 18, IV, da Lei n. 9.514/1997.
9. Recurso especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, acordam
os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar
provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Moura Ribeiro (Presidente), Nancy Andrighi, Paulo de Tarso
Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília, 09 de abril de 2019 (data do julgamento).
MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Relator

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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