Usucapião como forma de regularização do solo

Usucapião como forma de regularização do solo

A ação de usucapião talvez esteja entre os únicos instrumentos judiciais que possibilitam a obtenção de um registro imobiliário, quando não restam alternativas para transferência de propriedade.

Também denominada “prescrição aquisitiva”, a usucapião não representa para o possuidor uma perda, como inferiria uma prescrição convencional do Código Civil, mas ocorre ganho da propriedade.

Pela usucapião o legislador permite que uma determinada situação de fato, que, sem ser molestada, se prolongue por um certo intervalo de tempo previsto em lei, se transforme em uma situação jurídica, atribuindo-se assim juridicidade a situações fáticas que amadureceram com o tempo. (RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, p. 108)

A usucapião transforma um fato, da posse prolongada do imóvel, em aquisição originária de propriedade, não ocorre uma sucessão, pois não há relação jurídica direta entre o antigo proprietário e o formado pela usucapião. Além do tempo decorrido, a usucapião também se justifica pelo abandono e descuido por parte daquele que tem o domínio, nesse aspecto privilegia a função social da propriedade.

A ação de usucapião é maneira adequada para realizar regularização de lotes em parcelamentos ilegais, clandestinos ou irregulares, mesmo quando não é possível a regularização por via administrativa.

O custo da ação não é acessível, há necessidade de efetuar perícias, coletar as provas da posse, contratar advogado, o que afasta parcela mais humilde da população dessa ação.

A despeito do custo da ação, é possível observar o amplo escopo da usucapião, ainda que existiam na doutrina dúvidas quanto à possibilidade de ingresso com a ação nos casos de imóveis rurais com tamanho inferior ao módulo rural mínimo e do imóvel sem matrícula. Como é fato sabido, na maioria das vezes, estes se tratam de loteamentos clandestinos.

A questão do imóvel rural de tamanho menor que o modulo mínimo é muito importante pelo fato dos procedimentos administrativos não compreenderem estes.

As respostas para as dúvidas ainda são divididas, há desde quem entenda ser o pedido juridicamente impossível, até quem o entenda plenamente viável. Neste artigo os pedidos serão tratados como possíveis, embora se deva ter toda cautela para que não ocorra um incentivo a proliferação de novos loteamentos clandestinos. A regularização precisa ser feita com intuito de sanar situações consolidadas no tempo, não abrigar ilegalidades de alguns “espertalhões”. Lembrando, que existe tratamento penal para tais indivíduos, além da implicação em dever de indenizar.

Da jurisprudência, conforme o entendimento, seguem:

0041155-98.1997.8.26.0224 - Apelação - Rel.: Galdino Toledo Júnior. Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado, 18/03/2014. TJSP

Ementa: USUCAPIÃO Pretensão lastreada no art. 183 da CF Extinção da ação, por impossibilidade jurídica do pedido Descabimento Posse ad usucapionem de área de até 250 m², por cinco anos ininterruptos, utilizada para moradia do autor, não possuindo este outro imóvel urbano ou rural. Provas juntadas que comprovam a alegada posse, com os requisitos legais, pelo período aquisitivo. Imóvel localizado em loteamento irregular, ou mesmo com área non aedificandi, que não obsta o reconhecimento da prescrição aquisitiva, por constituir mera irregularidade administrativa. Recurso provido, com observação da restrição de edificação sobre a faixa non aedificandi.

0000162-11.2011.8.26.0648 - Apelação – Rel.: Salles Rossi - Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado, 12/03/2014. TJSP

Ementa: VOTO DO RELATOR EMENTA USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO Ação ajuizada na vigência do Novo Código Aplicação, entretanto, do prazo prescricional contido no artigo 550 do CC/1916, diante da regra do artigo 2.028 do Código Civil de 2002 Improcedência. Embora a ausência de regularização do imóvel (ou da matrícula/loteamento), não constitua causa impeditiva para o reconhecimento da prescrição aquisitiva (forma originária de aquisição da propriedade), restou, aqui, desatendido o lapso temporal legal (art. 550 do CC/1916) Autores que não comprovaram o exercício da posse vintenária (tampouco a dos antecessores) - Prazo que, a evidência, não pode se completar no curso da ação Sentença mantida Recurso improvido, com observação.   

0003243-13.2010.8.26.0224 – Apelação – Rel.: Alexandre Marcondes - Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado, 25/02/2014. TJSP

Ementa: USUCAPIÃO Ação de usucapião especial Indeferimento da inicial afastado. Titulares do domínio indicados Matrícula apresentada Individualização devidamente realizada por meio de planta assinada por profissional habilitado. Modalidade de usucapião que não exige demonstração de justo título e boa-fé. Irregularidade do loteamento onde o imóvel se insere Irrelevância. Sentença anulada Regular prosseguimento do feito RECURSO PROVIDO

0010413-79.2010.8.26.0048 - Apelação - Rel.: Ana Lucia Romanhole Martucci - Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado, 20/02/2014. TJSP

Ementa: USUCAPIÃO POSSE-TRABALHO. Sentença de improcedência sob o fundamento de irregularidade do fracionamento do solo que deu origem à área usucapienda. Descabimento. Irregularidade que não obsta o reconhecimento da prescrição aquisitiva, salvo marcada fraude à lei. Precedentes da jurisprudência. Requisitos legais, para a modalidade de usucapião, cumpridos. Posse com ânimo de dono, ininterrupta e sem oposição. Inteligência do art. 1.238, parágrafo único do Código Civil. Decurso da prescrição aquisitiva. Concordância dos confrontantes e ausência de impugnação das Fazendas Públicas. Sentença reformada. Recurso provido.

0000200-50.2012.8.26.0563 – Apelação – Rel.: Alexandre Marcondes -Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado, 25/02/2014. TJSP

Ementa: USUCAPIÃO ORDINÁRIA Indeferimento da inicial Imóvel com área de terra inferior ao módulo rural Vedação do artigo 65 do Estatuto da Terra Inaplicabilidade Ausência de vedação expressa no Estatuto da Terra no que se refere à aquisição originária Precedentes Sentença anulada RECURSO PROVIDO.

0009986-65.2006.8.26.0099 -  Apelação – Rel.: Roberto Maia - Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado, 04/02/2014. TJSP

Ementa: USUCAPIÃO. IMÓVEL COM ÁREA INFERIOR À DO MÓDULO RURAL. IRRELEVÂNCIA PARA ESTE PROCESSO. A proibição de se dividir um imóvel rural em áreas de dimensão inferior à do módulo rural (artigo 65 do Estatuto da Terra) deve ser observada para fins de parcelamento do solo, não se aplicando à usucapião, que é modo originário de aquisição da propriedade. Precedentes do TJSP. Como o MP-apelante não impugnou o preenchimento dos demais requisitos da usucapião, operou-se a preclusão, tornando inviável o reexame dessa matéria. Mantida, portanto, a sentença de procedência. Recurso não provido. (grifos nossos)     

Diante dos expostos, fica claro que a ação de usucapião é instrumento importante para regularização de imóveis. Seu caráter originário de aquisição de domínio faz com que as situações passadas e irregulares deem lugar a um imóvel livre de ônus, totalmente integrado a urbanidade e as cidades.

A ação de Usucapião passou por inúmeras pequenas reformas com o intuito de dar mais efetividade aos procedimentos. Tal instrumento tem um alto poder regularizador dos imóveis, podemos dizer que é a ultima das medidas possíveis. Caso não ocorra a possibilidade de obtenção por este meio, dificilmente outra forma será capaz de transferir a propriedade ao interessado.

A ação é classificada como procedimento especial, em vista da antiga existência da audiência preliminar de justificação de posse. Depois desta, prosseguiria normalmente o feito, pelo rito ordinário. 

A finalidade da audiência era a de provar a posse prolongada e assim verificar se o pedido era juridicamente viável. Com a denegação ocorria extinção do processo por falta de condição da ação.

Os motivos da supressão dessa fase são claros, aqueles que pretendiam ingressar em juízo dificilmente não provavam a posse, e nenhuma medida liminar era necessária com tal informação ao juiz. Para a final sentença declaratória é necessário uma cognição completa do exposto.

Com a nova redação do art. 942 do CPC, omitiu-se a audiência de justificação prévia, de forma a aboli-la do procedimento em questão. Dessa forma, extinguiu-se o único ato que diferenciava este procedimento do ordinário. Como consequência o procedimento de usucapião, apesar de estar previsto no Livro IV do CPC, referente aos Procedimentos Especiais, passa a ser de fato, um procedimento ordinário.

Para se ajuizar a ação de usucapião é necessário que, ao peticionar, o autor descreva, em todas as suas minúcias o imóvel usucapiendo (área, confrontações, nome dos confinantes, etc.). Deverá anexar planta do imóvel feita por engenheiro ou arquiteto (não é suficiente simples croquis), bem como, a certidão de registro do imóvel (mesmo não sendo exigida por lei, sua demonstração é bastante usual). Atualmente, é indicado instruir com georeferenciamento.

Deverá mencionar o tempo de exercício da posse conforme os prazos, bem como as características necessárias para o reconhecimento do usucapião (“animus domini”, posse mansa, pacífica e ininterrupta, etc)

Requerer todas as citações e intimações que a lei exigir, Fazendas Públicas, Ministério Público, confrontantes e interessados, estes formam então um litisconsórcio necessário no lado passivo da demanda. É condição essencial para a ação de usucapião, sob pena de nulidade absoluta, a citação daquele em cujo nome estiver transcrito o imóvel. Os eventuais interessados poderiam ser quaisquer outras pessoas que tenham interesse no litígio, como se fosse uma intimação geral, tendo em vista o caráter universal da demanda. Em atenção ao inciso I do § 1º do art. 10 do Código de Processo Civil, é necessário ainda a citação dos cônjuges dos réus, pois a usucapião trata de direitos reais imobiliários.

O foro competente para a ação de usucapião, por força do art. 95 do CPC é o da situação do imóvel. Uma atenção deve-se ter aqui, caso a União, autarquias ou empresas públicas federais sejam parte na demanda ou demonstrem interesse no imóvel. Por força de norma constitucional (art. 109, I), a competência não mais será da Justiça Estadual, mas sim, da Justiça Federal.

É quase pacífico na doutrina o caráter meramente declaratório da sentença de usucapião. O direito de propriedade sobre o imóvel usucapido existe independente da sentença, desde o momento em que estiverem presentes os requisitos exigidos por lei. Dessa forma, a sentença tem efeito ex tunc. Com o trânsito em julgado da sentença o juiz expede o mandado de registro do domínio.

A ação de usucapião talvez esteja entre os únicos instrumentos judiciais que possibilitam a obtenção de um registro imobiliário, quando não restam alternativas para transferência de propriedade e a situação fática se estenda por tempo longo e hábil, o prazo possibilite o ingresso da ação.

A legalidade urbana possibilita uma melhoria na segurança da posse, aumento do nível de organização da área, valorização dos imóveis, e nos beneficiários, melhoria da qualidade de vida, sentimento de cidadania, acesso a serviços e programas estatais.

O que se busca com a regularização fundiária é, sem dúvida, transformar a irregularidade na ocupação do solo em domínio e posse legítimos, a fim de cumprirem sua função social, como preconiza a Constituição Brasileira. Neste processo, o grande desafio dos Agentes Públicos e do Judiciário, é dar eficácia a projetos de regularização.

Referências

AGHIARIAN, Hercules. Curso de direito imobiliário. 6. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998

CARVALHO, Afrânio. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

CENEVIVA, Walter. Lei de Registros Públicos Comentada. São Paulo: Saraiva, 2001.

DINIZ, Maria Helena.  Curso de Direito Civil Brasileiro. vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2005.

RODRIGUES, Silvio. Direito civil, vol. 5: direito das coisas. 28ª ed. atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10-1-2002).  São Paulo: Saraiva, 2009..

SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito imobiliário: teoria e prática. 6. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

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André Uhrig Melo
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