Poder de investigação criminal direta do Ministério Público: apontamentos sobre uma controvérsia interpretativa

Poder de investigação criminal direta do Ministério Público: apontamentos sobre uma controvérsia interpretativa

Análise da questão dos poderes de investigação criminal direta do Ministério Público, a partir da doutrina e da jurisprudência que tratam da controvérsia.

1. Introdução

O Supremo Tribunal Federal, alterando o entendimento que vinha adotando, tem decidido no sentido de que o Ministério Público pode, em algumas hipóteses, promover atos de investigação criminal para embasamento da denúncia sem que haja violação da norma constitucional, como ocorreu no Habeas Corpus nº. 91.661/PE, em abril de 2009, dentre outras decisões no mesmo sentido (HC 87.610, HC 89.837, HC 94.173, todos apreciados em outubro de 2009). A questão é controversa em nosso ordenamento, e em julgamentos anteriores o mesmo Tribunal já havia decidido que investigações diretas por parte do Ministério Público, em âmbito criminal, ofendem o rol de competências preceituado pela Constituição Federal(como exemplo tem-se o RHC 81.326/DF, julgado em 2003); portanto, houve uma mudança de posicionamento da Corte em relação ao tema.

A questão deve ser analisada pelo Plenário do STF em breve, por meio do Habeas Corpus nº. 84.548/SP, impetrado pelo empresário Sérgio Gomes da Silva[1], acusado de ser o mandante do homicídio do ex-prefeito de Santo André (SP), Celso Daniel, ocorrido em 2002. Além disso, tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição nº. 37 de 2011, que pretende acrescentar o §10 ao Artigo 144 do texto constitucional e atribuir expressamente a competência privativa às polícias federal e civis a apuração direta das infrações penais. O presente artigo pretende fazer uma breve exposição da questão, trazendo argumentos encontrados na doutrina e em nossa jurisprudência.    

2. Supremo Tribunal Federal: mudança de posicionamento sobre o tema e o Habeas Corpus nº. 84.548/SP

As decisões do Supremo Tribunal Federal vinham sendo pela impossibilidade de o Parquet conduzir as investigações criminais, cabendo tal atribuição, em regra, às polícias civis e à Polícia Federal. É o que traz Tourinho Filho em sua obra:

O STF, ao julgar o RHC 81.326/DF, Relator o eminente Ministro Nelson Jobim, cujo voto foi acolhido pela colenda Turma, ponderou:

“...A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (art. 129, VIII). A norma constitucional não contemplou a possibilidade do Parquet realizar e presidir inquérito policial” (DJ, 1º-8-2003, Ementário n. 2117-42).

[…] Se a Constituição Federal, no art. 129, I, confere ao Ministério Público a função de promover privativamente a ação penal pública, é intuitivo que esse poder não envolve, como se pretendeu argumentar, o de proceder às investigações para o exercício da persecutio criminis in judicio. (TOURINHO FILHO, 2012, p. 417)

Tal era o posicionamento do Tribunal. Porém, julgados recentes da Corte têm adotado outra tese. Em julgamento do Habeas Corpus n.º 91.661/PE, a Ministra Ellen Grace, aplicando o princípio hermenêutico dos “poderes implícitos”, reconheceu ser possível e compatível com o texto constitucional a promoção da investigação criminal pelo Parquet, tendo a Ministra relatora sido acompanhada pela unanimidade da Segunda Turma[2]:

Ora, é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos “poderes implícitos”, segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim – promoção da ação penal pública – foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que “peças de informação” embasem a denúncia.

A questão deverá ser analisada pelo Plenário do Tribunal, no julgamento do Habeas Corpus nº. 84.548/SP. O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, votou pela impossibilidade de se admitir a investigação promovida pelo Parquet, o que seria competência, no caso, da polícia civil. Caberia ao Ministério Público o controle externo da atividade policial, não sendo possível fazer uma interpretação ampliativa do art. 129 da Constituição sem colocar as normas constitucionais em conflito, decidindo o relator, por fim, pelo trancamento da ação penal baseada em investigação do Ministério Público.

No entanto, o Ministro Sepúlveda Pertence abriu divergência, discordando em tal ponto do Relator, denegando o trancamento da ação penal. O Ministro reconheceu o poder de suplementar atos de informação do Ministério Público, titular da ação penal, embora não tenha os poderes de coerção que são conferidos, no andamento do inquérito, à autoridade policial. O Ministro Cezar Peluso pediu vista dos autos do Habeas Corpus, que ainda deve ter a apreciação de toda Corte e, considerando-se os julgados recentes como o que foi mencionado acima, além de outros que podem ser apontados (HC 87.610, HC 89.837, HC 94.173, todos de outubro de 2009) é possível que o Supremo consolide sua mudança de posicionamento e confirme a tese de que os poderes de investigação criminal do Ministério Público estão de acordo com a Constituição Federal.

 3. Problemas apontados pela doutrina

Para o ilustre jurista José Afonso da Silva, o texto da Constituição Federal não deixa dúvidas em relação ao fato de que o Ministério Público não tem poderes de investigação quando se trata de matéria criminal: “a Constituição Federal dá resposta precisa e definitiva no sentido de que o Ministério Público não tem competência para realizar investigação criminal direta.” (SILVA, 2011, p. 1155). Para o autor, comparado com os ordenamentos de outros países, “o regime da matéria no Brasil é próprio, peculiar e único, porque define os campos de atuação do Ministério Público e da Polícia Judiciária com precisão.” (SILVA, 2011, p. 1161).

Afonso da Silva critica a aplicação do princípio dos “poderes implícitos” em tal caso, o que levaria a uma hermenêutica inadequada por dois motivos: primeiro que a aplicação de tal entendimento só cabe quando a Constituição não se ocupa da matéria, porém na presente questão a Constituição não se omitiu, atribuindo poderes explícitos, só que a outra instituição: “a Constituição conferiu à Polícia Civil Estadual e à Polícia Federal a função de Polícia Judiciária e a de apuração das infrações penais (art. 144, §§ 1º e 4º, CF/1988)” (SILVA, 2011, p.1160); em segundo lugar, não há que se falar em “poderes implícitos”, pois estes partem do pressuposto de que, se a Constituição preceitua um fim a ser alcançado, presumem-se garantidos os meios para atingi-lo, mas no caso não há relação de meio/fim: “O fim (finalidade, objetivo) da investigação penal não é a ação penal, mas a apuração da autoria do delito, de suas causas e suas circunstâncias.” (SILVA, 2011, p. 1161).

Em relação ao argumento de que a investigação ministerial seria mais eficaz do que a policial e imune aos riscos de corrupção, abusos etc., Afonso da Silva cita Luís Roberto Barroso:

Pois bem: não se deve ter a ilusão de que o desempenho, pelo Ministério Público, do papel que hoje cabe à polícia, manteria o Parquet imune aos mesmos riscos de arbitrariedade, abusos, violência e contágio. (BARROSO, L. R. apud SILVA, 2011, p. 1156)

Conclui o jurista, em seu parecer, pela inadmissibilidade de interpretação da norma constitucional de forma a atribuir ao Ministério Público funções de investigação em matéria criminal:

[…] membro do Ministério Público não tem legitimidade constitucional para presidir o inquérito com objetivo direto ou indireto de apuração da infração penal, pois a apuração da infração penal, exceto as militares, é função da Polícia Judiciária, sob a presidência do delegado de polícia. (SILVA, 2011, p. 1170).

De acordo com o professor Guilherme de Souza Nucci, atribuir os poderes de investigação criminal diretamente ao Ministério Público seria permitir a existência, em nosso ordenamento, de uma instituição “superpoderosa”:

Enfim, ao Ministério Público cabe, tomando ciência da prática de um delito, requisitar a instauração da investigação pelo polícia judiciária, controlar todo o desenvolvimento da persecução investigatória, requisitar diligências e, ao final, formar sua opinião, optando por denunciar ou não eventual pessoa apontada como autora. O que não lhe é constitucionalmente assegurado é produzir, sozinho, a investigação [...]. O sistema processual penal foi elaborado para apresentar-se equilibrado e harmônico, não devendo existir qualquer instituição superpoderosa. Note-se que, quando a polícia judiciária elabora e conduz a investigação criminal, é supervisionada pelo Ministério Público e pelo Juiz de Direito. Este, ao conduzir a instrução criminal, tem a supervisão das partes - Ministério Público e advogados. (NUCCI, 2007, p. 68)

4. Proposta de Emenda à Constituição nº. 37 de 2011 e o caráter garantista da separação funcional

A Proposta de Emenda à Constituição nº. 37, apresentada em 8 de junho de 2011 pretende acrescentar ao Art. 144 do texto normativo constitucional, que trata das competências atribuídas às polícias, o §10, com a seguinte redação:

A apuração das infrações penais de que tratam os §§ 1º e 4º deste artigo incumbem privativamente às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal, respectivamente.

De autoria do Deputado Federal Lourival Mendes, a Proposta busca resolver a polêmica interpretativa do sistema de competências trazido pela Constituição, principalmente diante da teoria dos “poderes implícitos”, que recentemente vem sendo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, e acrescentar ao texto a previsão explícita de que a investigação criminal direta cabe privativamente à polícia judiciária, não podendo ser conduzida e realizada diretamente pelo Ministério Público.

Para o parlamentar, conforme o mesmo expõe na justificativa da PEC nº37,  “a investigação criminal conduzida pela polícia judiciária (...) tem se revelado em uma verdadeira garantia ao direito fundamental do investigado no âmbito do devido processo legal”. Citando o jurista maranhense Alberto José Tavares Vieira da Silva, seu conterrâneo, Lourival Mendes ressalta a importância de tal separação funcional e o caráter garantista de uma atuação independente e integrada entre o Ministério Público e as polícias, no exercício de suas atribuições.

5. Conclusão

Diante do exposto, conclui-se pelo caráter inconstitucional da investigação criminal realizada diretamente pelo Ministério Público. Além de contrariar o sistema de competências estabelecido pelo constituinte no texto de 1988, entende-se que a Constituição Federal, ao distribuir as atribuições entre as polícias e o Ministério Público, em matéria criminal, buscou, através da independência funcional entre a investigação e a acusação, estabelecer uma garantia para o réu e assegurar, de forma efetiva, o devido processo legal. É o que entende o professor Guilherme de Souza Nucci:

Logo, a permitir-se que o Ministério Público, por mais bem intencionado que esteja, produza de per si investigação criminal, isolado de qualquer fiscalização, sem a participação do indiciado, que nem ouvido deveria ser, significaria quebrar a harmônica e garantista investigação de uma infração penal. (NUCCI, 2007, p. 68, 69)

Como foi demonstrado, não é cabível a aplicação da teoria dos “poderes implícitos” no presente caso, pois tal interpretação acarretaria uma ofensa ao texto constitucional. Resta aguardar a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, que deve se tornar uma grande referência jurisprudencial sobre o tema, ao menos enquanto não for aprovada a Proposta de Emenda à Constituição nº. 37 de 2011, que pretende afastar definitivamente a possibilidade de investigação criminal direta pelo Parquet.


Referências

BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Proposta de Emenda à Constituição nº. 37, de 2011, apresentada pelo Deputado Federal Lourival Mendes e outros. Acrescenta o §10 ao Art. 144 da Constituição Federal para definir a competência para a investigação criminal pelas polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal.

BRASIL, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, promulgada em 5 de outubro de 1988.

BRASIL, DECRETO-LEI Nº. 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Código de Processo Penal.

BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tribunal Pleno, HC 84548, rel. Min. Marco Aurélio.

BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Voto da Ministra Ellen Gracie no HC 91.661/PE, julgado em 02 de abril de 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2007. 6ª edição.

SILVA, José Afonso da. Em face da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público pode realizar e/ou presidir a investigação criminal, diretamente? in “Direito Constitucional: organização dos poderes da República”. Clèmerson Merlin Clève, Luíz Roberto Barroso (organizadores). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. (Coleção Doutrinas essenciais, v. 4).

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, volume 2. São Paulo: Saraiva, 2012. 34 ed. rev. de acordo com a Lei nº. 12.403/2011.

[1]   “http://m.stf.jus.br/portal/noticia/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=77941”, consultado em 14/05/2012.

[2]   “http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=104441”, consultado em 07/05/2012.

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Orlando Neto
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