O Princípio da Indisponibilidade frente ao Anteprojeto do Código de Processo Penal
O anteprojeto de reforma do CPP se aprovado nos moldes atuais abolirá do nosso ordenamento jurídico o Princípio da Indisponibilidade. Dessa forma, o artigo visa esclarecer os acadêmicos e profissionais da área jurídica sobre essa modificação que mudará a estrutura do processo como conhecemos hoje.
Considerações Iniciais
O Princípio da Indisponibilidade não é apenas uma norma abstrata e utópica no nosso Código de Processo Penal (CPP) e sim uma norma expressa, positivada em vários dispositivos do Código (DECRETO-LEI N. 3689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941), dentre eles podemos citar os artigos 17, 28, 42, 576. Contudo, o anteprojeto de reforma do CPP se aprovado nos moldes atuais abolirá do nosso ordenamento tal princípio.
Para melhor explicar os pressupostos desse princípio citarei a definição dada por três autores de extrema importância no âmbito de processo penal, que juntos nos darão uma definição bastante clara do que seja a indisponibilidade no processo penal:
Do princípio da obrigatoriedade decorre o da indisponibilidade do processo, que vigora inclusive na fase de inquérito policial. Uma vez instaurado este, não pode ser mais paralisado indefinidamente ou arquivado. A lei processual prevê prazos para a conclusão do inquérito no artigo 10 do CPP (10 dias se o indiciado estiver preso e 30 dias quando estiver solto) e proíbe a autoridade mandar arquivar os autos (art. 17 CPP). Mesmo quando o membro do Ministério Público requer o arquivamento de um inquérito policial, a decisão é submetida ao Juiz, como fiscal do princípio da indisponibilidade, que, discordando das razões invocadas, deve remeter os autos ao chefe da Instituição (art.28). Além disso, se proíbe que o Ministério Público desista da ação penal já instaurada (art. 42 do CPP) ou do recurso interposto (art. 576 do CPP), e o juiz pode condenar o réu mesmo na hipótese de pedido de absolvição por parte do Ministério Público (art. 385).
O princípio da indisponibilidade não cabe na ação penal privada (renúncia, desistência, perdão, perempção etc.) e a ação penal pública depende de representação permite a retratação antes do oferecimento da denúncia (art.25 do CPP). (MIRABETE, 2007, p. 28-29).
No que diz respeito à ação pública, por exemplo, várias destas regras decorrem do próprio princípio da obrigatoriedade. É o que ocorre com o chamado princípio da indisponibilidade, traduzido na impossibilidade de o Ministério Público dispor da ação penal a que era inicialmente obrigado. Parece-nos, em tais, hipóteses, que a apontada regra não vai além de consequência fundamental do princípio da obrigatoriedade, que estaria irremediavelmente atingido se se permitisse ao Ministério Público, obrigado a propor a ação penal, dela desistir após sua propositura. A única distinção que se pode observar entre a obrigatoriedade e indisponibilidade seria em relação ao momento processual do respectivo exercício sendo o primeiro aplicável antes da ação penal e o segundo a partir dela. (PACELLI, 2006, p. 105-106).
Disponibilidade é a liberdade que as pessoas têm de exercer ou não seus direitos. No direito processual civil é quase absoluta esta disponibilidade, já que as únicas limitações decorrem da natureza indisponível de certos direitos materiais. Por razão inversa, prevalece no processo criminal o princípio da indisponibilidade ou da obrigatoriedade. O crime é uma lesão irreparável ao interesse coletivo, decorrendo daí o dever de o Estado aplicar as regras jurídico-punitivas. Desse modo, a autoridade policial não pode se recusar a proceder às investigações preliminares (CPP, art. 42) nem arquivar inquérito policial (CPP, art. 17), do mesmo modo que o Ministério Público não pode desistir da ação penal (CPP, 42) nem do recurso interposto (CPP, art. 576). É a regra da irretratabilidade. A Constituição, contudo, admite um abrandamento dessa regra, como já falado, permitindo transação em infrações penais de diminuta potencialidade lesiva (CF, art. 98, I, c/c a Lei n. 9.099/95, art. 76).
Outros temperamentos à regra da indisponibilidade no processo penal ocorrem também: a) nos crimes de ação penal privada, em que o ius accusationis fica a cargo do ofendido, que poderá ou não exercê-lo como melhor lhe aprouver; b) nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, nos quais a atividade dos órgãos oficiais fica condicionada à manifestação de vontade do ofendido; c) nos crimes de ação penal pública condicionada à requisição do ministro da justiça. (CAPEZ, 2002, p. 21).
Em suma, o princípio da indisponibilidade, significa que em se tratando de ação penal pública, depois de interposta, nenhum dos componentes do processo poderá dispô-la, ou seja, “o processo deverá seguir”. Entretanto, o anteprojeto de reforma do CPP, na Exposição dos Motivos subscreve:
“...retirou-se, e nem poderia ser diferente, o controle judicial do arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação. No particular, merece ser registrado que a modificação reconduz o juiz à sua independência, na medida em que se afasta a possibilidade de o Ministério Público, na aplicação do art. 28 do atual Código, exercer juízo de superioridade hierárquica em relação ao magistrado. O controle do arquivamento passa a se realizar no âmbito exclusivo do Ministério Público, atribuindo-se à vítima legitimidade para o questionamento acerca da correção do arquivamento. O critério escolhido segue a lógica constitucional do controle de ação penal pública, consoante o disposto no art. 5°, LIX, relativamente à inércia ou omissão do Ministério Público no ajuizamento tempestivo da pretensão penal. Decerto que não se trata do mesmo critério, mas é de se notar a distinção de situações: a) no arquivamento, quando no prazo, não há omissão ou morosidade do órgão público, daí porque, cabendo ao Ministério Público a titularidade da ação penal, deve o juízo acusatório, em última instância, permanecer em suas mãos; b) na ação penal subsidiária, de iniciativa privada, a legitimidade da vítima repousa na inércia do órgão ministerial, a autorizar a fiscalização por meio da submissão do caso ao Judiciário.” (BRASIL, 2009, p. 16-17, grifo nosso).
Ou seja, o anteprojeto já na Exposição de Motivos esclarece que o princípio da indisponibilidade será extinto do Código, pelo menos enquanto princípio.
1. Os Artigos
Vários serão os artigos que passarão por modificações devido à exclusão do princípio da indisponibilidade. Desse modo, escolhi quatro artigos do CPP, que analisarei contrapondo-os com artigos do anteprojeto.
ART. 17 CPP: “A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito.” (BRASIL, 2011, p. 628).
ANTEPROJETO: O anteprojeto não faz vedação expressa ao arquivamento dos autos de inquérito pela autoridade policial.
ART. 28 CPP: Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa de inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então o juiz estará obrigado a atender. (BRASIL, 2011, p.629).
ART. 35, IV, do ANTEPROJETO: “Ao receber os autos do inquérito, o Ministério Público poderá:
IV – determinar o arquivamento da investigação. ” (BRASIL, 2009, p. 33).
Observação: Inclusive a SEÇÃO VII - Do Arquivamento, estabelece quatro artigos (art. 37, 38, 39, 40) referentes ao arquivamento dos autos do inquérito pelo Ministério Público, o que para o nosso CPP é totalmente errôneo. Devido ao Princípio da Indisponibilidade.
ART. 42 CPP: “O Ministério Público não poderá desistir da ação penal.” (BRASIL, 2009, p.630).
ART. 50, do ANTEPROJETO: “O Ministério Público não poderá desistir da ação penal, sem prejuízo do disposto no art. 45, parágrafo único, e no art. 46.” (BRASIL, 2009, p. 35).
Nessa fase do processo penal, a norma da indisponibilidade é relativizada. Dessa forma, o anteprojeto propõe que em regra depois do inquérito policial, se o Ministério Público não arquivar os autos, então deverá ir adiante com o procedimento penal. Contudo, no mesmo artigo prevê que há exceções que estão previstas nos artigos:
45, parágrafo único, do ANTEPROJETO: “Nas ações penais condicionadas à representação, no caso de morte da vítima, a ação penal poderá ser intentada a juízo discricionário do Ministério Público.” (BRASIL, 2009, p. 34).
46 do ANTEPROJETO: Será pública, condicionada à representação, a ação penal nos crimes de falência e nos crimes contra o patrimônio, material ou imaterial, quando dirigidas exclusivamente contra bens jurídicos do particular e quando praticados sem violência ou grave ameaça contra a pessoa.
§1° A representação é a autorização para o início da persecução penal, dispensando quaisquer formalidades, podendo dela se retratar a vítima até o oferecimento da denúncia.
§2° Nos crimes de que trata o caput deste artigo, em que a lesão causada seja de menor expressão econômica, ainda que já proposta a ação, a conciliação entre o autor do fato e a vítima implicará a extinção da punibilidade, desde que comprovada em juízo a recomposição civil do dano.
§3° Concluídas as investigações nos crimes de ação penal condicionada, a vítima será intimada para, no prazo de 30 (trinta) dias, ratificar a representação, sob pena de decadência. (BRASIL, 2009, p. 34).
ART. 576, do CPP: “O Ministério Público não pode desistir de recurso que haja interposto.” (BRASIL, 2009, p. 673).
ANTEPROJETO: Não há vedação expressa.
2. Considerações Finais
O princípio da indisponibilidade, caso aprovado o Anteprojeto do Código de Processo Penal será retirado do nosso ordenamento jurídico. E com isso se evitará muito desperdício de tempo, de dinheiro e injustiças como o que pode ocorrer quando o juiz condena e reconhece agravantes, mesmo quando nenhum deles tenham sido alegados no decorrer do processo, e o Ministério Público tenha opinado pela absolvição do réu (art. 385 CPP). Esse dispositivo será alterado pelo artigo 409 do Anteprojeto que prevê que o juiz poderá proferir sentença condenatória, desde que nos estritos limites da denúncia, não podendo, porém, reconhecer agravantes não alegados. Dessa forma, o Anteprojeto, se aprovado, fortalecerá o Estado Democrático de Direito Brasileiro e os seus fundamentos constitucionais.
BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Anteprojeto do Código de Processo Penal (2009). Anteprojeto do Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/anteprojeto_do_cpp_-_senado_federal.pdf >. Brasília: Senado Federal, 2009. Acesso em: 20 fev. 2012.
BRASIL, Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. In: Vade Mecum compacto. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 628-673.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 18.ed. São Paulo: Atlas, 2007.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 6.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006