DNA e bafômetro em face do princípio da inviolabilidade da vida privada
Tanto no caso do DNA quanto no bafômetro, o Estado deve guiar-se com a devida prudência, evitando qualquer situação constrangedora para as partes, na busca sempre pacífica de uma solução justa para a lide.
A
sociedade contemporânea vem experimentando nos últimos tempos todas as vicissitudes decorrentes da evolução científica que manifesta-se nos mais variados ramos das ciências. Destaca-se, todavia, a portentosa evolução oriunda das ciências biológicas; incluindo-se o aparecimento de vacinas, novas técnicas de engenharia genética, doações e transplantes de órgãos, exames de identificações etc. Porém, estas transformações provocam uma série de alterações e reflexos na sociedade em geral, sendo fundamental a interferência do direito, auxiliado por algumas ciências humanísticas como bioética, para tentar dirimir alguns impasses decorrentes deste ciclo evolutivo.
Ex vi, a atuação do legislador se faz de suma importância e recentemente com a edição de algumas leis, cita-se de passagem a Lei 9434/97 (lei que regula doações transplantes de órgãos), Lei 10054/00 (lei que regula processo de identificação criminal) dentre outras, podemos vislumbrar a necessidade e urgência de que alguns assuntos clamam por maior atenção e apreço. Ocorre porém, e isto é de natural entendimento em razão da grande evolução experimentada, que alguns assuntos como DNA e Bafômetro, carecem de uma atuação mais específica do legislador, para tentar solucionar toda divergência existente entre os preclaros magistrados de nosso país, visto que por se tratar de tema muito atual, a doutrina ainda caminha em passos lentos na busca de um posicionamento mais contundente. Tentam fugir deste quadro, autores como: William Douglas Resinente dos Santos, Abouch Valenty Krymchantowski, Flávio Gramado Duque, que tratam com muito cientificismo o assunto, merecendo todo respeito e nosso reconhecimento.
Tanto DNA quanto Bafômetro, são assuntos que atingem diretamente um princípio constitucional dos mais importantes de nossa Carta Magna, qual seja, o Princípio da Inviolabilidade da Intimidade e da Vida Privada, onde doravante será comentado de forma sucinta.
Nas didáticas lições do eminente professor Alexandre de Moraes, citando os doutos conhecimentos do professor Manuel Gonçalves Ferreira Filho, menciona-se o grande liame que paira entre as definições de intimidade e vida privada; elencando no rol da primeira aquelas relações mais íntimas das pessoas, acima de tudo subjetivas, como p.ex., relações de amizade, parentesco etc. Leciona ainda, que a definição de vida privada é muito mais abrangente, englobando a intimidade e todos os demais relacionamentos do homem para com outro homem. O insigne professor José Afonso da Silva, lembrando o emérito professor italiano René Ariel Dotti, comenta que a intimidade se caracteriza como a esfera secreta da vida do indivíduo no qual este tem o poder de evitar os demais.
Estes dois princípios, por serem de grande relevância dentro de uma sociedade como a nossa, acima de tudo liberal e democrática, foram delineados no art. 5º da nossa Lei Maior, mais precisamente no inciso X, quando reza: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrentes de sua violação. Como se pode notar, o legislador disciplinou alguns assuntos, que pela gana de sua importância, considera ilegal sua violação. Pelo menos dois destes temas passarei a discorrer de forma sucinta, devido sua complexidade técnica.
1. DNA
Amiúde, como freqüentemente ocorre em direito, duas correntes divergem acerca da obrigatoriedade ou não do exame de DNA. Como bem lembrado pelo notáveis professores cariocas William D. Resinente, A. Krymchantowsi e Flávio G. Duque, já comentado anteriormente, a obrigatoriedade ou não do exame passou a ser discutida com a evolução da engenharia genética, porém toda esta evolução contribuiu para resolver questões que outrora geravam uma incógnita. Caso típico do reconhecimento de paternidade. Atualmente, com todas as técnicas criadas, já se pode dizer com quase 100 % de certeza se determinada criança é ou não filho daquele determinado pai ou mãe; condição esta que no passado não era possível em face dos exames sanguíneos que somente poderiam excluir a paternidade alegada.
O tema se torna essencialmente relevante, por estar intimamente ligado ao Direito Civil, mais precisamente ao Direito de Família. Trata-se de assunto eminentemente de conotação constitucional, na medida que se de um lado pode ferir o Princípio da Inviolabilidade da Vida Privada (do suposto pai), por outro lado, poderá ferir um dos fundamentos delineados em nossa Lei Maior, ou seja, a dignidade da pessoa humana (do Filho), vez que todos tem direito de saber quem são seus verdadeiros pais. A dignidade da pessoa humana esta descrita em nossa Constituição no art. 1º, II no Título I.
Defensores da obrigatoriedade do exame, que são corrente minoritária, entendem que muito acima do interesse do acusado (suposto pai), esta o direito do suposto filho em saber com veracidade seu verdadeiro pai. Todo este embasamento teórico, diga-se de passagem, sustenta-se no Capítulo VII da Constituição Federal que trata da família, da criança, do idoso e adolescente. Previsão específica, encontra-se na Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); a título de exemplo, cita-se o art. 22 da lei, estabelecendo que: aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Argumentam os defensores desta corrente, que o interesse do pretenso filho não se reveste somente num interesse de cunho patrimonial, mas sim num interesse moral em face ao art. 227, caput e § 6º da CF. Adeptos deste entendimento no Supremo, podemos mencionar os Ministros Sepúlveda Pertence, Ministro Francisco Rezek, Ministro Ilmar Galvão. Relato, todavia, que atualmente o Supremo compõe-se de 10 (dez) Ministros: Marco Aurélio, Ilmar Galvão, Moreira Alves, Sydney Sanches, Sepúlveda Pertence, Celso de Mello, Carlos Velloso, Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Ellen Gracie.
Favoráveis pela não obrigatoriedade, que por sua vez são maioria, buscam argumento no já ventilado Princípio da Inviolabilidade da Vida Privada, contido no art. 5º, X da CF, como também no princípio onde ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo. O saudoso professor Hélio Tornaghi, no romantismo de seus ensinamentos, transcreve que as bases romanas do princípio nemo tenetur detegere (ninguém deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo), foram acolhidos pelo legislador pátrio em algumas passagens do artigo 5º de nossa Constituição Federal. Esta corrente busca ainda argumento no Princípio da Legalidade, onde ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Apóiam-se também no art. 343 § 2º e 339 do CPC, versando que no caso de ser recusada execução de ordem judicial, acarretará confissão ficta dos fatos. Defensores desta corrente no Supremo, são os Ministros Moreira Alves, Néri da Silveira, Sidney Sanches e Marco Aurélio.
Muito embora respeitando os argumentos dos autores William Douglas Resinente dos Santos, Abouch Valenty Krymchantowski, Flávio Gramado Duque, tal como o notório conhecimento de Ministros como Sepúlveda Pertence, é com, data magna vênia, que acredito não ser dos mais razoáveis seus argumentos. Seria um tanto quanto anacrônico, defendermos posicionamento favorável pela obrigatoriedade, com a possível condução à força do acusado, em face aos preceitos e garantias constitucionais que atualmente nos resguardam. Tal entendimento seria incompatível com o atual estágio de desenvolvimento e liberdade do ser humano. Defensores desta corrente, buscam uma hermenêutica que no passado tanto se mostrou sem solução pelo autoritarismo das decisões. Por tais razões, creio ser merecedora de aplausos a corrente majoritária, que tenta aliar os direitos tanto do filho quanto do suposto pai acusado, mercê de que gera ao segundo, possibilidade de se defender dos fatos alegados pelo primeiro, podendo assim provar ser ou não o pai, sem violar qualquer garantia ou direito que nossa constituição reserva. Contudo, caso o suposto pai se negue a fazer o exame, tem o filho um direito supremo resguardado pela nossa constituição, que é a busca de sua moral, de sua dignidade e o direito de saber quem é seu verdadeiro pai. Para tanto, deve-se tomar por analogia nosso Estatuto Civil Adjetivo (CPC), ora já mencionado, presumindo-se real a paternidade, sujeitando aquele que se furtar do exame, todo ônus judicial que um verdadeiro pai carrega, até o momento que o mesmo queira reverter a acusação e provar, por meio do exame, a acuação que até então fora presumida.
Por fim, como sucedâneo da minha mais modesta opinião, creio fielmente que a presunção ficta dos fatos não fere em hipótese alguma os princípios processuais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, uma vez que o suposto pai, que por presunção ficta dos fatos passa a carregar o ônus de verdadeiro pai, obteve no deslinde da relação processual, toda possibilidade de provar através do exame, que a acusação que lhe fora feita era inverídica. A não realização do exame, deveu-se restritamente por sua vontade, vez que preferiu pela não realização.
Para comprovar o bom senso da não obrigatoriedade, lanço alguns recentes acórdãos :
Recurso especial. Processual civil e civil. Recurso especial. Fundamentação deficiente. Divergência jurisprudencial. Investigação ode paternidade. Exame de DNA. Réu. Recusa. Presunção de paternidade.Não se conhece o recurso especial em que se revela ausente a indicação, com a necessária exatidão, do dispositivo legal tido por violado ou que teve negada sua aplicação.Na hipótese de dissídio notório e evidenciando a leitura da ementa do acórdão paradigma a existência da divergência jurisprudencial, deve-se abrandar os rigores legais exigidos para a demonstração do dissídio, permitindo o conhecimento do recurso especial pela letra "c", do art. 105, III, da Constituição Federal. Ante o princípio da garantia da paternidade responsável, revela-se imprescindível, no caso, a realização do exame de DNA, sendo que a recusa do réu de submeter-se a tal exame gera a presunção da paternidade. (STJ RESP256161-DJ 18/02/02, pg 00411).
CIVIL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PROVA. I - A recusa do investigado em submeter-se ao exame DNA, marcado pelo juízo por 10 (dez) vezes, ao longo de quatro anos, aliada à comprovação de relacionamento sexual entre o investigado e a mãe do autor impúbere, gera a presunção de veracidade das alegações postas na exordial. II - Desconsiderando o v. acórdão recorrido tais circunstâncias, discrepou da jurisprudência remansosa deste Superior Tribunal. III - Recurso especial conhecido e provido. (STJ RESP141689 – DJ 07/08/00, pg 00 104)
2. Bafômetro
Situação análoga, mas com pequenas diferenças, é o caso da obrigatoriedade ou não do exame do bafômetro naquelas pessoas que por motivos veementes pairarem dúvida. O liame que une os dois assuntos pauta-se na esfera de atingir ou não princípios constitucionais, ora já tratados, da inviolabilidade da vida privada e da intimidade, como também do nemo tenetur se detegere, onde ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Por se tratar de um assunto eminentemente de Direito Penal, o tema ganhou relevância com a edição da Lei 9503/97 que instituiu o Código Nacional de Trânsito, prevendo como crime a condução de veículo em situação de embriaguez. Observa-se por tais fatos, como no caso do exame de DNA, em relação ao bafômetro também existem dúvidas e divergências acerca de ser ou não obrigatório a realização do teste.
Parece-me plausível a tese que defende pela não obrigatoriedade, pois seria mesmo ilógico, obrigarmos mediante força física, que alguém fosse submetido ao teste do bafômetro. Logo, como bem leciona a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o interesse público deve sempre prevalecer sobre o interesse individual; e assim a coletividade, o Estado acima de tudo, tem o dever de punir quem se conduz de forma ilícita e não autorizada em lei, como no caso de quem conduz veículo estando alcoolizado. Como bem lembra os autores William Douglas Resinente dos Santos, Abouch Valenty Krymchantowski, Flávio Gramado Duque, nada impede que sejam ainda aplicadas algumas medidas de cunho administrativo a quem se recusar em fazer o exame, como p.ex. perda de carteira de motorista.
Como última ressalta, por entender pela não obrigatoriedade do exame, mas também por não achar justo que aquele que se conduz de forma ilícita venha se furtar da justiça, defendo opinião que no caso do suspeito se negar a realizar o exame, deverão ser buscados outros meios de exames, como p.ex: exame clínico feito por um perito. Este procedimento possibilitará uma averiguação com maior prudência e acima de tudo cautela. Aquele que de forma injustificada se negou em realizar o exame, legitimará o Estado, para que se possível for, aplique a devida punição.
Por fim, tanto no caso do DNA quanto no bafômetro, o Estado deve guiar-se com a devida prudência, evitando qualquer situação constrangedora para as partes, na busca sempre pacífica de uma solução justa para a lide, sem com isso atingir-lhes os direitos que nossa Constituição resguarda.
Referências Bibliográficas
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14 ed. São Paulo : Atlas, 2002.
FILHO, Manoel G. Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 25 ed. São Paulo : Saraiva, 1999.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7 ed. São Paulo : Atlas, 2000.
RESINENTE, W. D. , KRYMCHANTOWSK, A . V., DUQUE, F. G. Medicina Legal à luz do Direito Penal e Processual Penal. 3 ed. Rio de Janeiro : Impetus, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 19 ed. São Paulo, Saraiva, 2001.
TORNAGHI, Hélio. Direito Processual Penal . São Paulo : 1995.
Código de Processo Penal. 34 ed Saraiva, 2001.
Código de Processo Civil. 32 ed. Saraiva, 2002.