A descriminalização do grafite (Lei n. 12.408/2011) e a tipicidade conglobante

A descriminalização do grafite (Lei n. 12.408/2011) e a tipicidade conglobante

No presente, os indivíduos que se dedicam ao grafite são considerados por muitos como verdadeiros artistas, que desenvolvem a atividade nos mais variados espaços urbanos (muros, viadutos, edifícios etc).

A Lei n. 12.408, de 25 de maio de 2011, alterou a redação do artigo 65, da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, acrescentando um novo parágrafo no dispositivo, buscando “descriminalizar” o ato de grafitar.

A novel disposição estabelece que: “não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional” (artigo 65, parágrafo segundo, da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998).

Grafite, que deriva do italiano grafitto, usualmente é conceituado como “inscrição ou desenho de épocas antigas, toscamente riscado à ponta ou a carvão, em rochas, paredes, vasos etc.”; enquanto que pichação possui “caráter político, escrito em muro de via pública” (HOLANDA FERREIRA, Aurélio de Albuquerque de. Novo dicionário da língua portuguesa, 1ª ed. 14ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 696 e 1.083).

Com a devida vênia, a definição proposta para o grafite não parece ser consentânea com a atual realidade social. No presente, os indivíduos que se dedicam ao grafite são considerados por muitos como verdadeiros artistas, que desenvolvem a atividade nos mais variados espaços urbanos (muros, viadutos, edifícios etc.).

Historicamente, o grafite é fruto de um movimento de contracultura parisiense de 1968, em que seus adeptos inscreveram em diversos muros daquela cidade mensagens de cunho político. A partir do predito movimento, o ato de grafitar ganhou notoriedade, e foi difundido nos seios das comunidades espalhadas pelos quatro cantos do globo.

Há tempos, a sociedade civil se divide na forma como encaram o tema. Uma primeira parcela considerável da opinião pública entende que o grafite nada mais é do que representação artística; e há um segundo segmento social que pugna pela punição penal dos chamados “grafiteiros”.

A Constituição Federal diz constituir ao patrimônio cultural brasileiro as criações artísticas (artigo 216, inciso III), merecendo especial proteção do Poder Público.

Por outro lado, igualmente, o meio ambiente mereceu destaque protecionista. A Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, no inciso I de seu artigo 3º, define meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Tradicionalmente, o meio ambiente é classificado em: natural, artificial, cultural, e do trabalho. O meio ambiente artificial “é compreendido pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos equipamentos públicos (espaço urbano aberto)” (FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 21).

A Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, veio regulamentar o artigo 225, parágrafo terceiro, da Constituição Federal, cujo comando é de que: “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

Do preciso magistério de FIORILLO depreendemos que: “a preservação da função social da cidade (art. 182 da CF) passa a ter disciplina criminal ambiental (arts. 63 e 64 da Lei n. 9.605/98), da mesma forma que o meio ambiente cultural aglutina, a partir da Lei n. 9.605, importante aliado no plano das sanções penais (arts. 62 e 65), tudo em harmonia com a tutela do direito ambiental constitucional voltada à proteção de brasileiros e estrangeiros residentes no País” (Ob. cit., p. 380).

Assim sendo, o artigo 65, da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, tem como objetividade jurídica tutelada o meio ambiente artificial, ou seja, o espaço urbano aberto (patrimônio público) e o espaço urbano fechado (edificações particulares).

A Lei n. 12.408, de 25 de maio de 2011, buscou “descriminalizar” o grafite quando praticado com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística.

A principal indagação que surge é a de que quais serão as consequências penais da expressão “não constitui crime”, utilizada pelo legislador. A conduta, sob as condições do parágrafo segundo do artigo 65, configuraria fato atípico ou o agente estaria amparado por uma causa excludente da antijuridicidade?

Seria inconcebível que o legislador por meio de uma norma permissiva tolerasse a pratica de determinada conduta, e por outra norma proibitiva prevê-se alguma punição. Os tipos penais não podem ser vistos como verdadeiros ermitões, vez que as normas jurídicas devem conviver e coexistir harmonicamente. Definitivamente, as normas penais não devem ser encaradas como um conjunto de vedações arbitrárias, pelo contrário, devem exprimir aos cidadãos máxima segurança jurídica.

Parece lógico que se a norma penal permite ao agente que pratique o grafite com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, não seria válido que qualquer outra norma de nosso ordenamento jurídico preveja qualquer tipo de censura pela prática da predita conduta.

Segundo a célebre lição de ZAFFARONI “o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa” (ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal: primeiro volume – parte geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 396).

A partir desta compreensão, casos que eram solucionados pela análise da antijuridicidade, passaram a serem resolvidos pela tipicidade, que deixa de ser meramente legal, e passa a ser conglobante. Há verdadeira antecipação da solução penal para diversos casos, vez que o juízo de tipicidade é prévio ao de juridicidade da conduta. Esta fórmula parece estar em maior sintonia com os princípios democráticos que norteiam a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ora, nada mais abominável do que sujeitar alguém que pratica uma conduta permitida pelo ordenamento jurídico a responder criminalmente, sob o pretexto de um necessário juízo de juridicidade.

A expressão empregada pelo legislador de que “não constitui crime”, de modo algum pode ser analisada somente sob o aspecto da antijuridicidade. Preferível para o caso em testilha, a solução pela atipicidade (legal e conglobante) da conduta do agente que pratica o grafite com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística.

Para que a conduta do agente seja considerada atípica faz-se necessário que haja o “objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística”. Torna-se de todo necessário este especial fim do agente para que seja amparado pela norma penal permissiva. Caso o elemento subjetivo da conduta seja diverso, ou seja, dolo de dano (degradação do meio ambiente artificial), o agente poderá responder pelo crime previsto no caput do artigo 65.

Além disso, para que ocorra o caso de atipicidade em estudo, a norma permissiva prevê a existência alternativa de dois elementos normativos, a depender da titularidade do bem (objeto material da conduta).

No caso do edifício ou muro ser um bem privado, deve haver o consentimento do proprietário, locatário ou arrendatário. Por se tratar de norma penal benéfica, por analogia, deve-se admitir o consentimento de outras figuras congêneres como a do usufrutuário.

Por outro lado, no caso de próprios ou equipamentos públicos, deve existir “a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional”, sob pena de ser caracterizado o delito previsto no caput do artigo 65.

À luz do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, e do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, a Lei n. 12.408, de 25 de maio de 2011, que entrou em vigor na data de sua publicação, por se tratar de lei penal que beneficia o agente (lex mitior), deve ser aplicada aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença penal condenatória transitada em julgado (retroatividade da lei mais benigna). Ressalta-se que, segundo o caput do artigo 2º, do Código Penal, a Lei n. 12.408, de 25 de maio de 2011, fez cessar os efeitos penais das sentenças condenatórias, mas não os seus efeitos civis.

No Brasil e em diversos países, cada vez mais o grafite passa a ter status de patrimônio artístico, que em regra é fruto cultural de grandes conglomerados urbanos. A Lei n. 12.408, de 25 de maio de 2011, sensível a este fenômeno social, houve por bem “descriminalizar” a conduta, fato que inegavelmente favorecerá o fomento desta prática artística.

BIBLIOGRAFIA

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

HOLANDA FERREIRA, Aurélio de Albuquerque de. Novo dicionário da língua portuguesa, 1ª ed. 14ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

ZAFFARONI, Eugênio Raul et al. Direito penal brasileiro: primeiro volume – teoria geral do direito penal. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal: primeiro volume – parte geral. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

Sobre o(a) autor(a)
David Pimentel Barbosa de Siena
Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialização em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura e mestrado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC...
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