Da duplicata simulada
Análise jurisprudencial e doutrinária acerca do crime de duplicata simulada, previsto no artigo 172, caput, do Código Penal.
O delito de duplicata simulada está previsto no artigo 172, caput, do Código Penal, e consiste em “emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado”. Prevê, em seu preceito secundário, a pena de detenção de dois a quatro anos, além de multa.
A norma penal em estudo tutela o patrimônio e as relações de comércio. Neste raciocínio, ensina Luiz Régis PRADO que o bem jurídico tutelado é “o patrimônio, especialmente as relações econômicas advindas do comércio mercantil, com o escopo de resguardar a credibilidade dos títulos comerciais”1. Em sentido oposto, Fernando CAPEZ leciona que o objeto jurídico do tipo penal é a propriedade e a boa-fé2.
Sujeito ativo do crime de duplicata simulada é a pessoa física que expede a duplicata. Cezar Roberto BITENCOURT acrescenta que “Sujeito ativo serão, em regra, os diretores, gerentes ou administradores de empresas, associações ou sociedades que praticarem a ação tipificada, sendo insuficiente a condição de sócio, diretor ou gerente. Sujeito ativo, na primeira figura, é quem expede ou aceita duplicata fictícia ou falsa, isto é, que não corresponda a compra e venda efetiva”3. Menciona ainda que “Tratando-se de pessoa jurídica, serão penalmente responsáveis seus diretores, administradores ou gerentes, desde que tenham conhecimento da fraude e participem da decisão”4.
A jurisprudência aduz, nesta linha de raciocínio, que é indispensável a existência de provas conclusivas quanto à autoria delitiva, ônus este que cabe à acusação (rectius Ministério Público) demonstrar. A propósito: “Autoria duvidosa – Indispensabilidade de prova que indicasse o réu como responsável pela emissão dos títulos – ausência de prova conclusiva – ônus que competia à acusação. (...) 3. A absolvição se impõe, com base no art. 386, inc. VI, do Código de Processo Penal, quando inexistente prova conclusiva atestando que o réu foi o responsável pela emissão dos títulos sema correspondente relação comercial”5.
O sacado que aceita o título executivo, sabendo que é simulado, em unidade de desígnios com o emitente, incorre no crime em questão, na condição de co-autor, nos termos do artigo 29 do Código Penal. No mesmo diapasão, se o endossatário e o avalista aderirem à conduta delituosa, responderão penalmente pelo crime. “O avalista e o endossatário não estão previsto na modalidade típica reitora (expedir). Contudo, se o avalista ou o endossatário eram cientes de que a duplicata era simulada e participaram da atividade fraudulenta, (...) há co-participação delitiva (da expedição e do aceite)”6.
Por sua vez, o sujeito passivo da infração penal de emissão de duplicata simulada é aquele que desconta e/ou aceita a duplicata ou o sacado de boa-fé. Cesar Dario Mariano da SILVA corrobora o entendimento alegando que “o sujeito passivo será quem desconta a duplicata e, também, o sacado que age de boa-fé”7.
Pois bem. O tipo objetivo nada mais é do que “emitir fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado”.
Em que pese posicionamentos diversos8, emitir significa por em circulação, expedir. Regis PRADO informa que “a conduta incriminada consubstancia-se na emissão (...) compreendido pelo verbo reitor do tipo, emitir, como a colocação do título em circulação”9. Corroborando com esse doutrinador, eis o seguinte aresto: “A adequação típica encontra-se substanciada pela efetiva colocação das duplicatas fraudulentas em circulação, em razão do endosso procedido às empresas de factoring, e o efetivo recebimento dos adiantamentos correspondentes”10.
Fatura, duplicata e/ou nota de venda é a materialização do crime. Nas palavras de Álvaro Mayrink da COSTA “Fatura ou nota de venda é a relação das mercadorias vendidas com a discriminação de sua quantidade, qualidade, espécie, tipos etc.”11. Já “A duplicata é um título de crédito circulante, sempre à ordem, que conterá obrigatoriamente os requisitos legais (...); é título causal, que só pode ser emitido para a cobrança do preço de mercadorias vendidas ou de serviços prestados (...)”12.
Mas em quais situações emitir fatura, duplicata ou nota de venda é crime? Enquanto a doutrina se diverge quanto às hipóteses, a jurisprudência tem-se mostrado firme e forte em relação à corrente que segue. Vejamos.
Somente pode ser considerado crime a conduta quando há emissão de fatura, duplicata ou nota de venda que não corresponda à mercadoria vendida, em quantidade ou qualidade, ou ao serviço prestado. Isto é, a conduta para ser delituosa deve ser precedida de um negócio real, ou seja, deve ter preexistido uma relação jurídica, e que a duplicata, fatura ou nota, seja diversa, em quantidade ou qualidade ou do serviço prestado, diverso do verdadeiro.
Sobre o assunto, Celso DELMANTO e outros advertem que “modificamos nosso entendimento. Isto porque, ao desenvolvermos o tema da garantia da reserva legal (CR, art. 5º, XXXIV) e da proibição da interpretação extensiva e da analogia in malan partem em matéria penal, nos novos comentários ao art. 1º do CP (...) apesar da flagrante ilogicidade do caput do art. 172 e da sua incoerência em relação ao seu parágrafo único, consideramos que não tipifica o crime deste art. 172 a emissão de duplicata não fundada em efetiva compra e venda, enquanto não corrigido pelo legislador esse lapso, não obstante possa a conduta, no caso de desconto bancário, ser tipificada no art. 171 do CP. Por melhores que sejam as intenções de buscar suprir os já freqüentes lapsos do legislador, há que se respeitar, antes de tudo, sob pena de se abrir perigoso precedente, garantias constitucionais da maior importância para a preservação do Estado Democrático de Direito, como o da reserva legal”13.
Também, é o entendimento de Rogério Sanches CUNHA: “é pressuposto do crime um negócio real, concretizado, existente, simulando-se o tipo, a quantidade ou a qualidade da mercadoria negociada ou do serviço prestado (não mais se pune – e nem se pode confundir – a duplicata quando fria, mas somente quando simulada). Essa é também a conclusão de Fábio Ulhoa: ‘a duplicata fria não é mais o mesmo que duplicata simulada e o saque daquela (fria) deixou de ser crime’, e finaliza: ‘a emissão de duplicata não fundada em efetiva compra e venda mercantil, é, portanto hoje, e desde 28 de dezembro de 1990, data da entrada em vigor da Lei 8.137, conduta penalmente atípica’ (O saque de duplicata fria não é mais crime. São Paulo: Tribuna de Direito, fev. de 1996, p. 09)”14.
Fernando CAPEZ mais uma vez leciona que “o tipo penal exige que tenha havido a efetiva venda de mercadoria, devendo, portanto, haver um negócio subjacente. Na ausência deste, o crime será outro (arts. 171 e 299 do CP, art. 1º, III, da Lei n. 8137/90)”15.
Por outro lado, autores como Cesar Dario Mariano da SILVA16 e Damásio Evangelista de JESUS17 entendem que pode haver crime sem a correspondente compra e venda. Corroborando com essa tese, vem a massiva jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais Estaduais:
DUPLICATA SIMULADA – VENDA INEXISTENTE – (...) A Lei n. 8.137 (...) não expungiu do cenário jurídico, como fato glosado no campo penal, a emissão de fatura, duplicata ou nota que não corresponda a uma venda ou prestação de serviços efetivamente realizados, conduta que se mostra tão punível quanto aquela que encerrem simulação relativamente a qualidade ou quantidade dos produtos comercializados18.
(...) A nova redação do artigo 172 do Código Penal, dada pela Lei nº 8.137/90, não excluiu do tipo o ato de emitir duplicata que não corresponda a uma venda de mercadoria ou prestação de serviço efetivamente realizadas. Precedente da Suprema Corte.(...)19
(...) A emissão de nota fiscal, fatura e respectiva duplicata quando não tenha ocorrido compra e venda mercantil ou prestação de serviços (arts. 1º e 20, respectivamente, da Lei 5.474/68) caracteriza o crime previsto no art. 172 do Código Penal, de natureza formal e que não reclama comprovação de prejuízo ou obtenção de qualquer vantagem ilícita (...)20.
Prosseguindo. O tipo subjetivo é o dolo (genérico, segundo a doutrina clássica), isto é, a vontade e a ciência de querer emitir a fatura, nota de venda ou duplicata. Segundo Celso DELMANTO e outros, “A boa fé exclui o dolo e não há forma culposa do delito”21 e ainda cita precedente no sentido de que “Ausente prova nítida e indiscutível da intenção de emitir duplicata simulada, com a única finalidade de obter crédito junto ao banco, não se configura o delito (TACrSP, RT 770/583)”22.
A consumação do crime de duplicata simulada ocorre no momento em que é colocado em circulação. “A consumação do delito previsto no art. 172 do CP, crime formal e unissubsistente, dá-se com a simples e efetiva colocação da duplicada em circulação, independentemente do prejuízo”23. Exceto posicionamentos minoritários24, o delito em análise não admite tentativa.
Urge frisar ainda que a falta de assinatura do emitente na duplicata caracteriza a atipicidade delitiva. “A existência de duplicata – cujo similar não é a nota promissória, mas a letra de câmbio – pode existir sem o aceite, mas não sem o saque, que só a assinatura do devedor-emitente materializa: logo, não realiza o crime do art. 172 CPen. (cf. L. 8.137/90) a remessa ao sacado de duplicata não assinada pelo sacador”25.
Também, note-se que “se a conduta do agente tiver como escopo suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, poderá caracterizar crime contra a ordem tributária (art. 1º, II, e III, da Lei 8137/1990)”26.
Além disso, para caracterizar o delito, como crime que deixa vestígio, é necessária a juntada/apresentação da duplicata simulada e que ela não corresponda à correta venda de mercadoria ou prestação de serviços27. Em sentido contrário, já se decidiu que a apresentação das duplicatas não é imprescindível a comprovação da materialidade do delito, desde que haja prova robusta de sua existência28.
Por fim, a pena aplicada ao crime de duplicata simulada, prevista no caput do art. 172 do Código Penal é de detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, aplicada cumulativamente com multa. A ação penal, por sua vez, em regra, é pública incondicionada, salvo nos casos previstos no artigo 182 do Código Penal (em prejuízo do cônjuge desquitado ou separado judicialmente, irmão legitimo ou ilegítimo, tio ou sobrinho, com quem o agente coabita, exceto se igual ou maior de 60 anos), hipóteses em que a ação penal será pública, condicionada à representação.
Ainda, com relação à pena, regra geral, não é cabível a suspensão condicional da pena, exceto nas hipóteses em que haja incidência de causas gerais de diminuição de pena, que deverão “ser consideradas para determinação da pena mínima cominada ao delito para fins de aplicação da suspensão condicional do processo”29. Da mesma forma, em sentido oposto, “O concurso material afasta a competência do juizado especial criminal, caso às penas somadas ultrapassem o mínimo de 2 (dois) anos, não havendo como o réu ser beneficiado com a suspensão condicional do processo”30.
Portanto, buscou-se trazer à baila o estudo doutrinário e jurisprudencial acerca do crime de duplicata simulada, prevista no caput, do artigo 172 do Código Penal. Como se viu, há muita divergência sobre o assunto, principalmente quanto à existência de crime no caso de duplicata fria, possibilidade de ocorrência do crime na forma tentada e necessidade de circulação da duplicata para caracterizar o delito, carecendo de uma análise detalhada por parte dos julgadores e demais estudiosos do direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Vol. 3
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em www.stj.jus.br/scon/ acesso em 14.06.2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em www.stf.jus.br acesso em 16.06.2011.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Disponível em www.tjpr.jus.br acesso em 16.06.2011.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004. vol. 2.
COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal: parte especial. 5. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
CUNHA, Rogério Sanches. Código Penal. 3. Ed. Salvador: Jus Podivum, 2010.
DELMANTO, Celso. e outros. Código Penal Comentado. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
PRADO, Luiz Régis. Comentários ao Código Penal. 5. Ed. São Paulo: RT, 2010.
SILVA, Cesar Dario Mariano da. Manual de Direito Penal: parte especial. Bauru/SP: Edipro, 2000. Vol. 2.
Notas
1. PRADO, Luiz Régis. Comentários ao Código Penal. 5. Ed. São Paulo: RT, 2010. p. 593, item 1.
2. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2004. vol. 2. p. 515.
3. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial. 5. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Vol. 3. p. 252.
4. BITENCOURT, C. R. idem. P. 253.
5. TJPR. ApCrim. 337.405-8. Rel. Lauro Augusto Fabrício de Melo. 5ª C. Crim. Julg. 29.03.2007. DJ. 7343. Acórdão 4185.
6. COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito Penal: parte especial. 5. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. P. 964.
7. SILVA, Cesar Dario Mariano da. Manual de Direito Penal: parte especial. Bauru/SP: Edipro, 2000. Vol. 2. p. 191.
8. Fernando CAPEZ entende que “O núcleo do tipo consubstancia-se no verbo emitir, isto é, produzir, preencher, criar o documento. (...) A atual redação contenta-se com a mera produção ou criação do título. Até porque a fatura e a nota de venda não podem ser colocadas em circulação” (ob. Cit. p. 515)..
9. PRADO, Luiz Regis. Ob. Cit. p. 593. item 3.
10. TJPR. ApCrim 0575879-6. Rel. Edvino Bochnia. 3ª CCrim, Julg. 03.09.2009. DJ 230. Acórdão 9569.
11. COSTA, A. M. da. Ob. Cit. p. 962/963.
12. Ibidem.
13. DELMANTO, Celso. e outros. Código Penal Comentado. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. P.640.
14. CUNHA, Rogério Sanches. Código Penal. 3. Ed. Salvador: Jus Podivum, 2010. P. 353.
15. CAPEZ, F. ob. Cit. p. 515.
16. SILVA, C. D M da. Ob. Cit. p. 192.
17. JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 10. Ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 629.
18. STF. HC. 72538/RS. Rel. Marco Aurélio. T2. Julg. 27.06.1995. DJ 18.08.1995, p. 24898.
19. STJ. REsp 443929/SP. Rel. Paulo Gallotti. T6. Julg. 16.12.2004. DJ. 25.06.2007, p. 307.
20. TJPR. ApCrim. 0617529-3. Rel. Luiz Cezar Nicolau. Julg. 21.01.2010. 4ª C.Crim. DJ 322. Ac. 10458.
21. DELMANTO, Celso e outros. Ob. Cit. p. 640.
22. DELMANTO, C. idem. P. 641.
23. STJ. RHC. 16053/SP. Rel. Paulo Medina. T6. Julg. 02.08.2005. DJ 12.09.2005, p. 368.
24. Cezar Roberto BITENCOURT adverte que “(...) não afastamos, a priori, a possibilidade da ocorrência da tentativa, já que se trata de crime fracionável, cujo iter criminis pode, eventualmente, ser interrompido, por circunstâncias alheias à vontade do agente” (ob. Cit. p. 255).
25. STF. RHC. 79784/GO. Rel. Sepúlveda Pertence. T1. Julg. 14.12.1999. DJ. 03.03.2000, p. 99.
26. PRADO, L.R. ob. Cit. p. 594.
27. TACrimSP. HC. 441296-5/SP. Julg. 10.06.2003. Bol. ASSP 2350/2933.
28. TJPR. ApCrim. 0257517-7. Rel. Ronald Juarez Moro. 4ª C. Crim. Julg. 31.08.2006. DJ. 7204. Acórdão 2720.
29. STJ. HC. 89517/RS. Rel. Napoleão Nunes Maia Filho. T5. Julg. 24.11.2008. Dje 19.12.2008.
30. TJPR. ApCrim 0589164-9. Rel. Maria José de Toledo Marcondes Teixeira. 5ª C. Crim. Julg. 22.10.2009. DJ. 263. Acórdão 10841.