A divergência: contramão do Direito
As divergências entre Câmaras Julgadoras do Tribunal de Justiça causam intranquilidade e insegurança da própria Justiça, propiciando, dia após dia, uma verdadeira descrença. Essa descrença é, sem dúvida, um fator que contribui negativamente no sistema carcerário, com danosos efeitos.
Acabamos de comemorar a virada de um novo ano, nova direção no comando do País marcando o início do domínio feminino com a posse da primeira mulher brasileira como presidente ou presidenta, dependendo da vontade pessoal. Entretanto, mais que tudo isso, é a marca do início da segunda década do terceiro milênio, que, segundo a crendice popular, sempre aponta para um futuro promissor, de mudança e de novas expectativas.
Contudo, sem querer pregar o negativismo, é preciso que se reflita profundamente e, com os pés bem fixados no chão, não nos deixemos levar pelas aparências ou falsas promessas; assim, em que pese todas as comemorações, devemos não nos esquecer da realidade presente, aquela que tudo deforma, levando ao engano e transformando o que é naquilo que não é.
E nessa linha, por exemplo, não devemos nos iludir e achar que tudo está e que se manterá perfeito, visto que não passa de uma triste miragem. E exemplo vivo desse quadro é o nosso Poder Judiciário, pois que a justiça é sempre transfigurada, causando, não raramente, intranqüilidade e insegurança. E essa realidade já foi objeto de observância do Mestre ROBERTO LYRA, quando asseverou: “A Justiça só terá tranqüilidade e segurança para punir, quando as penas que ela aplica não forem mais criminosas que o crime”.
E para melhor embasar e fixar a preocupação existente, reinante, bradando por justiça em todas as suas dimensões, oportuna aqui reproduzir, do iluminado Mestre DAMÁSIO E. DE JESUS, a seguinte lição: “Hoje, mantida ainda a venda, pretende-se conferir à estátua de Themis a imagem de uma Justiça que, cega, concede a cada um o que é seu sem conhecer o litigante. Imparcial, não distingue o sábio do analfabeto; o detentor do poder do desamparado; o forte do fraco; o maltrapilho do abastado. A todos, aplica o reto Direito. Mas não é essa justiça que eu vejo. Vivo perante uma Justiça que ouve falar de injustiças, mas, por ser cega, não as vê; que, sufocada pelo excesso da demanda, demora para resolver coisas grandes e pequenas; condenando-se pela sua própria limitação. Uma Justiça que, pobre e debilitada pela falta de recursos, não tem condições materiais de atualizar-se. Uma Justiça que quer julgar, mas não pode. Essa não é a minha Justiça. Minha Justiça não é cega. É uma Lady de olhos abertos, ágil, acessível, altiva, democrática e efetiva. Tirando-lhe a venda, eu a liberto para que possa ver. Por não ser necessário ser cego para fazer justiça, minha Justiça enxerga e, com olhos bons e despertos, é justa, prudente e imparcial. Ela vê a impunidade, a pobreza, o choro, o sofrimento, a tortura, os gritos de dor e a desesperança dos necessitados que lhe batem à porta. E conhece, com seus olhos espertos, de onde partem os gritos e as lamúrias, o lugar das injustiças, onde mora o desespero. Mas não só vê e conhece. Age. A minha, é uma Justiça que reclama, chora, grita e sofre. Uma Justiça que se emociona. E de seus olhos vertem lágrimas. Não por ser cega, mas pela angústia de não poder ser mais justa” - (Texto extraído de Manual de PRISÃO E SOLTURA sob a Ótica Constitucional, de José Herval Sampaio Júnior e Pedro Rodrigues Caldas Neto, Editora Método, São Paulo, 2007).
Bem, efetuados os rabiscos, embora a referência acerca da visão do pronunciamento auspicioso de DAMÁSIO E. DE JESUS, que ameniza em parte a singeleza do ponto ora abordado pelo autor, não há que restar dúvida, diante da coragem dos que ousarem ler essa matéria, quanto à preocupação existente, pois que sempre presente a utilização de camuflagem para impor o direito.
Um ponto que se destaca, esse em nível de Segunda Instância, notadamente com ênfase no Estado de São Paulo, é a divergência gritante que experimentamos nos julgamentos, em especial os da seara criminal. Algumas câmaras, e isso é flagrante, atropelam o direito e julgam segundo o seu conceito ideológico, desprezando decisões superiores sumuladas. É sabido que ao julgamento sempre haverá de observar e aplicar o livre convencimento fundamentado; entretanto, ao descartar a adoção de súmula superior por mero capricho, não se pode evitar a pregação de intranqüilidade e insegurança, já que o efeito causa, mais que mero descontentamento, um tumulto generalizado, não só para os advogados, mas para todos aqueles que dependem do pronunciamento estatal.
Mas para melhor fixar o ponto, a fim de não causar generalização, basta tomar como exemplo o caso de condenado por roubo qualificado, cuja pena, hipoteticamente, seja de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de reclusão em regime inicialmente fechado. Para completar a informação, na presente hipótese, o magistrado aplicou a pena-base no mínimo legal, que é de 4 (quatro) anos, agravando-a com 1/3 (um terço), finalizando, pois, na reprimenda acima destacada; de se ressalvar que as condições previstas no Art. 59 do Código Penal são favoráveis ao réu.
Embora respeitoso o convencimento do magistrado de primeiro grau, facilmente perceptível que o Magistrado deveria adotar o regime inicial na forma do que estabelece o Art. 33, § 2º. , letra b, do Código Penal, isto é, o regime semiaberto. Não obstante consignado no verbete anotado, em nome do “livre convencimento” (excesso de poder discricionário), assim não adotou, obrigando o defensor a interpor recurso de apelação no sentido de “corrigir” o regime imposto.
Antes de prosseguir, a título de mera informação, em maio de 2010 o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 440, consagrando que:
“Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata”. Pois bem, interposto e processado o recurso de apelação, de rigor, o mesmo é distribuído a uma das 16 (dezesseis) Câmaras de Direito Criminal para o devido julgamento. Garantia de reforma quanto ao regime adotado, nas exatas condições declinadas? Bem... Exatamente neste exato momento processual ocorre o que entendemos como “divergência”, pois mesmo que o Código Penal assinale que o regime a ser observado seja o “semiaberto”, já de ser aplicável na origem, algumas câmaras, apesar da vigência da Súmula 440, simplesmente ignoram o pacífico entendimento superior e confirmam a sentença de Primeiro Grau nos seus exatos termos, impondo ao defensor, por honra e respeito ao que de direito, a missão de impetrar recurso de Habeas Corpus ao Superior Tribunal de Justiça, contribuindo para o elevado número de recursos à Corte Superior, quando, na realidade, isso poderia ser desnecessário, inclusive em Segundo Grau se o objetivo do recurso de apelação versasse apenas e tão somente sobre a questão, ou seja, a correta definição do regime inicial a ser observado.
Poder-se-ia alegar, em tese, que adotando a Súmula 440, estar-se-ia a promover o engessamento de magistrados e desembargadores, pois que ofenderia o princípio do livre convencimento motivado. Entretanto, “concessa venia”, de se discordar de tal posicionamento, já que a justiça não pode estar vinculada a vaidades ou a ideologias; ao contrário, a justiça haverá sempre de traduzir um sentimento de justo, contendo a sentença uma destinação fundamental, perene e duradoura.
Por questão ética e respeitosa deixamos aqui de nominar quais as câmaras que adotam posição contrária aos avanços de decisões superiores, mais técnicas e humanas, justamente quando iniciamos a segunda década do terceiro milênio; porém, uma simples consulta poderá definir aos que se interessar conhecer o que assinalado, bastando dispensar alguns minutos para a devida pesquisa.
De se destacar que o objetivo da presente matéria, até bem simples no seu conteúdo, embora retrate uma situação real, é a de apenas alertar sobre o avanço tecnológico que se alcança em muitos níveis, mas em total descompasso com medidas medievais que ainda insistem em conviver no seio do direito, onde o pensamento retrógrado alimenta a intranqüilidade e a insegurança da Justiça, gerando, pela vaidade e ideologia, um acúmulo de recursos não necessários.
Enfim, a divergência patente leva-nos a afirmar que nem tudo caminha no sentido do progresso, pois que se camufla entre sábias decisões, como a que se verifica na Súmula nº 440, do Superior Tribunal de Justiça, que apenas observou sobre a necessidade de se cumprir o óbvio, ou seja, a exata letra da lei (Art. 33, § 2º, do Código Penal), sem que isso cause qualquer engessamento do magistrado “a quo” ou do tribunal.
E não poderia concluir sem destacar, de PIERO CALAMANDREI, que ”A primeira coisa, talvez a mais relevante, seja entender que um processo é muito mais do que um conjunto de papéis autuados e ordenados; processo é uma vida, é um drama, é a última esperança para quem procura a Justiça”.
Mas que Justiça, de se indagar. Evidente que não a da divergência, mas algo próximo da Justiça do Mestre DAMÁSIO, “não por ser cega, mas pela angústia de não poder ser mais justa”.