Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais

Processo e hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais

Aborda os diversos direcionamentos sobre a nova concepção do processo, a partir da constatação do fenômeno da constitucionalização do direito penal brasileiro, apresentando a nova hermenêutica jurídica em detrimento aos procedimentos referente ao devido processo legal.

INTRODUÇÃO

O processo penal brasileiro que sempre foi estudado como um meio para obtenção da justa e correta aplicação do direito material em litígio, inicia o novo século XXI com a pretensão e convicção de que não é mais possível desenvolver qualquer pesquisa dogmática diferente do conteúdo constitucional.

Mesmo no plano exclusivamente teórico toda investigação que se queira fazer ao nível de uma teoria processual estará sujeita não só ao insucesso de seus resultados, mas ao inevitável questionamento acerca da pertinência de seus objetivos e posicionamentos, quando não realizada em detrimento com o ordenamento constitucional.

Nessa nova era de mudanças na aplicação do direito, em suas diversas áreas, há que se analisar e pesquisar o processo direcionando todo o seu contexto aos direitos fundamentais e a nova hermenêutica constitucional.

Percebem-se de maneira clara as mudanças que a teoria dos direitos fundamentais e da nova hermenêutica constitucional causa na atual sistemática de aplicação do direito.

O direito vive num processo de constante mudança, adequando-se às necessidades das pessoas, devendo seguir os passos da sociedade de acordo os seus anseios, proporcionando a melhor maneira de colocar em harmonia os conflitos existentes em seu contexto, de estruturar as relações sociais e as relações entre particulares e o poder público, e por fim dar soluções e posicionamentos à própria mudança natural da sociedade, servindo como fator influenciado e influenciador das relações sócias.

Destacamos a problematização, em suas diversificadas direções possíveis, da norma constitucional que estabelece ser “admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não intentada no prazo legal”. Pelo motivo de semelhante ação penal de iniciativa privada ter sido inserida no Título dos direitos e garantias fundamentais, ao lado de inúmeras garantias processuais e procedimentais atribuídas essencialmente ao réu, ao menos no que diz respeito ao processo de natureza penal.

Cumpre identificar a justificação da inserção de uma ação penal como garantia individual fundamental; identificar a legitimidade para a iniciativa particular; identificar, no âmbito procedimental, o caráter essencial da intervenção estatal penal, no plano de uma justificação racional, conforme o modelo jurídico adotado.

Destarte a primeira parte do trabalho cuidará de justificar, no contexto de um Estado Democrático de Direito, a existência de uma garantia individual representada pela exigência de tutela penal de determinados direitos e suas conseqüências no âmbito de uma teoria do processo penal, onde terá duas definições temáticas distintas.

Quanto à segunda parte se destinará à aplicação do modelo processual penal assim configurado, no campo de sua mais específica realidade.

A GARANTIA CONSTITUCIONAL DA TUTELA PENAL

No que tange uma ordem constitucional fundado e caracterizada na instituição de amplas garantias e direitos individuais, positivados e direcionados como fundamentais, como é o caso do Estado brasileiro, cumpre aprofundar sobre o modelo de definição do poder político e das liberdades públicas, para que se obtenha conhecimento sobre o tipo de processo público proposto para solucionar determinadas pretensões.

Na perspectiva do Direito, o que deduzimos de Estado, enquanto organização política do poder pode e deve ser examinada e cobrada segundo a justificação desse poder que lhe é atribuída, para que se saiba de seu objetivo e finalidade.Faz-se necessário, portanto, na caracterização do Estado Democrático de Direito a identificação de sua origem e de sua finalidade.

Para que se possa falar em Estado de Direito, é preciso a referência, como valor fundamental, à realização dos direitos fundamentais; para que seja democrático, tanto em sua origem como em sua forma de exercício do poder,há de se fazer necessariamente presente a manifestação popular.

Há outras perspectivas para a caracterização do Estado de Direito, como é o caso de CANOTILHO, BONAVIDES e HABERMAS, que vêem no Estado de Direito um conceito constitucionalmente caracterizado, enquanto forma de racionalização de uma estrutura estadual-constitucional.

No tocante a Ação e processo penal no quadro das garantias fundamentais, é evidente que muito se fez, entretanto, parece-nos que ainda há muito a ser feito sob outra perspectiva: a da justificação racional de uma ação e de um processo que são postos como garantia fundamental dos membros do corpo social, não só como um instrumento contra o Estado, mas como agente da persecução penal.

Posto isso, embora se saiba que toda modalidade de intervenção judicial não deixa de ser a explicitação e a aplicação de uma sanção já escolhida no chamado direito material, parece-nos possível mostrar um panorama da intervenção penal estatal em bases também procedimentais.

Cabe enfatizar que toda incriminação penal, seja qual for o tipo de sua persecução em juízo, há de traduzir uma infração de natureza grave a bens juridicamente protegidos.

Em relação à Ação pública e a ação de iniciativa do particular, vimos que a Constituição da República, assegura uma ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, conforme art. 5º LIX. Ficando claro que no olhar Constitucional o que deve ter maior relevância no tocante a ação penal pública é a garantia fundamental, caracterizando, assim, a existência de uma tutela penal protetora de direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira.

No entanto, o constituinte de 1988 foi desatento no que se refere à regulação de diversos institutos jurídicos existentes à época da elaboração de nossa Constituição da República. Pois do mesmo modo, a referência feita na Constituição à expressão privada, utilizada para denominar a ação penal cabível no caso de inércia do Ministério Público, não foi mais que uma remissão ao disposto no art. 29 do nosso Código de Processo Penal.

Visto que, por razões obscuras, escolheu-se a classificação de uma ação penal privada, como se cuidasse efetivamente de semelhante modalidade de persecução. De modo geral, a doutrina brasileira acostumou-se à classificação posta no Código de Processo Penal, ao ponto de não se incomodar com a submissão constitucional ao texto ordinário então vigente.

Segundo PACELLI, “a ação penal deve ser pública e privativa do ministério público, sem a interferência do particular na formação de sua opinio delicto, por diversas razões, principalmente por ser exigência constitucional instituída como garantia fundamental individual, consoante art. 5º LIX, e art. 129, I, da Constituição da república”.

A ação penal privada, portanto, necessita de uma justificativa mais ampla, que não se limite à afirmação da disponibilidade do bem jurídico, pois a intervenção judicial penal não pode estar subordinada a um interesse exclusivamente particular.

PRINCÍPIOS E INTERPRETAÇÕES NO PROCESSO PENAL E TUTELA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Nesse sentido, segundo ALEXY, “há diversas indagações a respeito da teoria e da filosofia do direito, a principal residiria no problema proposto por Ronald DWORKIN, no qual se questiona a respeito da existência de uma única resposta correta para cada caso judicial. A partir de uma distinção fundamental entre regras e princípios jurídico, ou seja, enquanto as regras seriam aplicáveis segundo a respectiva validade, no sentido de tudo ou nada, os princípios, ao contrário, seriam dimensionados pelo peso que cada um pode apresentar em cada caso concreto”.

Dessa forma, a aplicação do Direito na hipótese de conflito entre princípios não se resolveria pelo reconhecimento de validade de um e de invalidade do outro, pelos tradicionais critérios da hierarquia, da especialidade e da cronologia das normas, mas por um exame de adequabilidade, orientado pelo maior ou menor peso de cada um para a solução específica do caso.

Consequentemente tanto as regras quanto os princípios instituem normas jurídicas; entretanto, eventual contradição entre regras se resolve pelo exame de sua validade do grau hierárquico normativo; enquanto entre princípios, pela ponderação segundo a totalidade e segundo a integridade dos princípios e regras jurídicas do Direito.

Constata-se que é uma questão inevitável em se tratando de ordenamentos constitucionais das sociedades modernas cujos projetos de vida e de desenvolvimento se funda na concepção de um Estado Democrático de Direito. O reconhecimento e a instituição de proteção a direitos fundamentais incluem necessariamente a afirmação da tutela das diferenças individuais e das diferenças entre os variados interesses coletivos que se manifestam na organização de uma sociedade cada vez mais complexa.

Em relação à estrutura constitucional do processo penal, é reconhecida a importância do Direito Constitucional para os estudos do processo penal. Mesmo quando determinadas matérias são tratadas ainda com hesitações em relação à extensão da aplicabilidade de algumas normas constitucionais, constata-se que o processo penal brasileiro estrutura-se a partir do devido processo constitucional.

No tocante a inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente, observa-se que dentre inúmeras garantias individuais arroladas na constituição, a inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente (art. 5º, LVI) e o direito ao silêncio (art. 5º, LXIII) apresentam também uma característica dúplice, no sentido de atuarem no plano do direito processual e também no plano do direito material.

Porém ocorrem diversos posicionamentos nesse sentido, pois sob o aspecto de sua natureza constitucional, o problema não se resolve visto que existem princípios e também regras na Constituição da República.

Destarte relatar que a questão da ilicitude da prova nem sempre se justifica pela sua inidoneidade probatória.

Há, no entanto, uma certeza sobre a qual não existe nenhuma dúvida a respeito de que a prova obtida ilicitamente pode e deve ser valorada para a comprovação da inocência. Para nós como verdadeira norma da inadmissibilidade das provas ilícitas mostra-se como verdadeiro princípio extraído do devido processo legal, visto que é direcionado à proteção de direitos fundamentais.

Nesse contexto, convém salientar que a ilicitude pode ocorrer, seja porque o meio de prova não ostenta capacidade de produção de certeza judicial, como no caso do “detector de mentira”, como também pode se justificar pela rejeição, não do meio de prova, mas da maneira de sua obtenção, tem o mesmo valor de convencimento. Porém, poderá ser ilícita, se clandestina e violadora de direitos, ou podendo ser lícita dependendo do caso concreto.

Já sob a perspectiva da aplicabilidade da norma de vedação das provas ilícitas fora do processo ou além de sua função de garantia processual, o princípio apresenta conteúdo tipicamente de direito material, prestando-se a tutela de direitos fundamentais igualmente arrolados no art. 5º da Constituição da República. E na função desse direcionamento a ele atribuída pensamos ser possível oferecer uma contribuição à hermenêutica do processo penal constitucional, no plano de um modelo de procedimento público destinado à proteção dos direitos fundamentais.

Em relação ao princípio do direito ao silêncio, é um direito constitucional, conforme art. 5º LXIII, da Constituição da República. Se observada em relação a tradição histórica da exigência de verdade e, posteriormente, na fase pós-absolutista, a conquista da condição de parte processual pelo acusado, não passa de mero objeto do processo penal, onde a resposta se reduziria a uma forma de tutela de sua integridade física, ameaçada por uma confissão mediante tortura.

Em virtude aos tempos mais recentes, verificar-se-á que o direito de permanecer calado, estrutura-se sobre o princípio da inocência, em virtude de que o que se busca em conseqüência direta é a obtenção de ônus probatório à acusação. Por isso, o direito ao silêncio apresenta-se não só como afirmação de uma situação de inocência mas também como controle da idoneidade da prova, fazendo valer a imperiosa necessidade da consolidação de um modelo processual penal garantista, pautado na afirmação do princípio do contraditório e da ampla defesa.

É necessário que o bem jurídico tutelado pela norma penal tenha caráter constitucional, em decorrência da própria observância dos princípios constitucionais estruturantes. Com efeito, se ditos princípios são o quadro de referência normativa, e ao mesmo tempo, critério regulativo da atividade punitiva do Estado, com eficácia normativa limitadora e ordenadora, não se pode mencionar que, para a tutela de um bem jurídico infraconstitucional, seja sacrificado em detrimento de um bem jurídico tutelado pela Constituição.

O legislador, toda vez que toma medida desta natureza, rompe com o princípio estruturante do Estado de Direito, e, por conseqüência, com a ordenação do sistema jurídico, pois somente por intermédio da Constituição será possível compreender um bem jurídico como fundamental. Se não há o crivo de proteção constitucional, não pode ser o bem jurídico considerado fundamental a ponto de justificar uma intervenção na liberdade individual constitucionalmente assegurada.

CONCLUSÃO

Em se tratando de um Estado Democrático de Direito, definido como ordem normativa onde se positivam constitucionalmente os direitos fundamentais, a existência de uma garantia individual representada pela exigência de uma tutela penal, provocaria inúmeros questionamentos referentes a dogmática processual penal, a cerca do papel do Estado na intervenção penal, da participação do particular no processo penal, em virtude da dúplice justificação da atuação do Ministério Público e da configuração teórica da ação e da iniciativa processual penal.

Vale ressaltar da existência de diversos pontos de divergências, principalmente nas questões relacionadas à perspectiva garantista do processo penal, no que diz respeito à elaboração de um processo de natureza pública. Como também das possíveis tensões existentes entre princípios constitucionais compostos da mesma positividade, no campo da hermenêutica.

Entretanto, deveriam ocorrer critérios mais objetivos para se determinar o campo de aplicabilidade de determinadas normas constitucionais, que melhor fossem aplicadas para que não houvesse mais disparidade nesse contexto.

Se fazendo necessária a consolidação de um modelo processual penal garantista, respaldado na afirmação do princípio do contraditório e da ampla defesa, a exigência ao amplo conhecimento da questão penal, devendo se obstar a não cometer excesso, consolidando a proteção dos direitos fundamentais, no âmbito de um Estado democrático de Direito.

No entanto, o reconhecimento a instituição de proteção a direitos fundamentais deve haver necessariamente a afirmação da tutela das diferenças individuais e das diferenças entre os mais variados interesses coletivos, em prol de uma sociedade cada vez mais complexa, não devendo ser executada de forma linear.

Outrossim, a elaboração de determinadas normas constitucionais deve se basear em uma idéia ou em um sistema mais transparente e de maior densidade abstrata, de maneira a permitir a renovação e permanente atualização de seu conteúdo.

Por fim, concluo, enfatizando, que na atualidade não é mais possível desenvolver qualquer pesquisa dogmática, relacionada à ciência do processo penal brasileiro, sem que haja um referencial constitucional. Pois mesmo que seja no plano exclusivamente teórico deverá existir um específico sistema normativo para que possa ter valor constitucional.

REFERÊNCIA

PACELLI, Eugênio de Oliveira. Processo e Hermenêutica na Tutela Penal dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.

Sobre o(a) autor(a)
José Sandro Figueiredo Lira
JOSÉ SANDRO FIGUEIREDO LIRA BACHAREL EM DIREITO - FACULDADE - AGES 2010.
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