Direito intertemporal e os dogmas jurídicos: uma análise pela Filosofia do Direito

Direito intertemporal e os dogmas jurídicos: uma análise pela Filosofia do Direito

Discute alguns dogmas jurídicos como a segurança jurídica, a coisa julgada e o ato jurídico no Direito intertemporal, a partir de uma análise da Filosofia do Direito.

O Direito Intertemporal na doutrina

A doutrina internacional dispensa grande cuidado ao direito intertemporal desde longa data. A posição utilizada por esses juristas tem sido repetida na história pelos doutrinadores mais recentes com poucas inovações.

Limongi França realizou no Brasil um elegante e detalhado estudo sobre as fontes doutrinárias do Direito Intertemporal, destacando como principais expoentes internacionais: Merlin, Blondeau, Demolombe, Duguit, Laurent, Paul Roubier (Direito Transitório), Savigny, Lassalle (Teoria Sistemática dos Direitos Adquiridos), Gabba (Teoria da Retroatividade da lei).

No Brasil a intrincada questão do direito intertemporal foi tratada por: Reinaldo Porchat (Da Retroatividade das Leis civis, de 1909), Paulo Lacerda (Manual do Código Civil, 1918), Carlos Maximiliano (Direito Intertemporal, 1955), Pontes de Miranda (Direito Intertemporal do Direito Privado, 1934), entre outros.

Segundo Limongi França o tema figura em trabalhos que abordam a teoria da (ir)retroatividade das leis, mas são poucas as monografias sobre o tema na literatura nacional. Os autores se dividem entre os que defendem a Teoria das situações jurídicas e a Teoria do direito adquirido.

Eduardo Espindola em seu trabalho sobre a Lei de Introdução do Código Civil, apresenta um resumo das principais posições sobre o direito intertemporal, destacando a posição de doutrinadores alemãs, italianos e franceses: Dernburg, Stofi, Ferrara, Vareilles-Sommières, Affolter, Faggella1.

Aplicação da lei no tempo

O Direito Intertemporal também é chamado de Direito Transitório, pois é o direito que tem vigência no lapso temporal de uma lei anterior e outra posterior. Assim não é apenas um direito com data certa de nascimento e morte, mas um direito que promove a ligação entre os lapsos temporais das vigências de outras leis, permitindo a passagem de uma à outra.

Só se pode pensar em um direito variando no tempo e a necessidade de mudança a partir de uma lei transitória, à medida que se parte de um sistema jurídico que está extremamente positivado e dependente da normatização escrita para seu funcionamento. No sistema de direito da “common law” a necessidade de regulamentação escrita é menor, e com isso o direito é alterado à medida que a sociedade também se transforma, não sendo assim necessário um direito de transição.

O sistema jurídico do ocidente adota a presunção de que somente deve existir uma lei, que trate sobre uma determinada matéria de direito sobre um aspecto específico, para evitar com isso o conflito de normas no tempo. Quando isso acontece costuma ser solucionado através da hermenêutica jurídica, a partir de suas várias técnicas de interpretação.

O Estado centralizado que detém o monopólio das leis é que realiza a unificação da legislação. O direito é limitado quanto ao tempo pelas transformações da sociedade, por outro lado sua sistematização é controlada pelo Estado, ao regular as transições entre duas normas com validade diferente. O controle do tempo da lei é facilitado por outra presunção, que as leis valem em um espaço determinado. Essas presunções de um espaço e de um tempo para o direito, são presunções necessárias para o funcionamento do direito tal como conhecemos. Os juristas muitas vezes não atentam para o fato dessas limitações ao direito serem meras presunções e não elementos constitutivos do direito.

É aceito via de regra a posição de que o direito é limitado a um espaço e tempo. É nesse sentido que se posiciona um jurista paradigmático como Kelsen. “Visto que a conduta humana, assim como suas condições e efeitos passam-se em espaço e tempo, precisa o espaço, assim como o tempo em que acontecem os tipos legais estipulados pela norma, ser definidos como conteúdo da norma. A validade das normas gerais que regulam a conduta humana...... é uma validade temporal-espacial.... Que a norma vale, sempre significa que ela vale para algum espaço e por um tempo....”2.

Se o problema da compatibilidade das leis em um mesmo tempo é questão de se definir qual norma é válida, a necessidade de alteração de uma lei anterior, para outra posterior, muitas vezes está ligada à questão da eficácia da norma. Isso não quer dizer que a norma anterior não tem mais eficácia e precisa ser alterada, mas que não se quer mais as consequências da eficácia daquela norma.

O direito intertemporal trás para o direito a discussão da sucessão das leis no tempo através de um movimento cíclico, em que há pelo menos três momentos em que a lei é aplicada de maneiras diferentes. Porém o movimento não se fecha em si mesmo e avança para um outro momento, que também indica para uma futura transformação.

O direito que busca por conceito a conservação e a standizarção das condutas humanas, padece do seu próprio mal, pois ao se consolidar como norma escrita tem de permitir um mecanismo de transformação para se renovar e assim consolidar outro paradigma. Típico de sociedades em que a tradição não é elemento principal da união social, a necessidade de transformação está presente em todos os campos, não poucas vezes como forma de assegurar as estruturas vigentes. Assim mudança legal não implica em uma mudança na sociedade, pois é possível a mudança legislativa apenas para que a situação jurídica seja semelhante a que existia com a velha lei, mas que através dessa última não seja mais possível, pois a sociedade se modificou.

Para assegurar uma mudança que não leve a quebra total de muitas das regras, é necessário criar mecanismos de transição, como é o direito intertemporal. Porém nem todas as situações pautadas pelo direito precisam desse interregno legal, pois em muitas a catástrofe é desejada. Em outras palavras, há situações em que a mudança legal visa causar uma mudança brusca na sociedade, exercendo não apenas o papel de consolidação, mas prescritivo que também é próprio do direito.

Estabelecendo mudanças um novo direito é inserido na ordem jurídica vigente e precisa ser respeitado como se tivesse sido o único a ser aplicado naquela sociedade. Assim a lei nova estabelecida não causa apenas uma crise, mas sim uma catástrofe, pois essa deixa de ser controlada pela sociedade, e produz a mudança de funcionamento do sistema jurídico. Nesse caso o princípio estabelecido pelo direito é o da irretroatividade da lei, pois o que se visa é a implementação de uma nova forma de funcionar o sistema legal.

No caso do direito intertemporal o que se visa é evitar a catástrofe, introduzindo um elemento para que esta se torne apenas uma crise, e que esta seja prontamente absorvida, permitindo que a alteração jurídica não cause “tsunames” no âmbito social, político e econômico. Não é de se estranhar que esse mecanismo seja apenas aplicado para algumas questões legais com mais frequência e não para outras. Questões políticas, econômicas e principalmente tributárias que exigem mudanças rápidas legais, para modificação das situações sociais, dificilmente precisam do mecanismo do direito intertemporal. Questões cíveis como as que tratam da propriedade e família, geralmente são mais propícias a terem regras que incidem o direito intertemporal.

Para diversos autores o direito intertemporal estabelece como regra o que é exceção, ou seja, estabelece como regra a retroatividade da lei permitindo que a lei antiga venha a ser válida, mesmo tendo perdido a eficácia. Apenas com uma análise rápida da situação nos leva a outra conclusão. Trata-se não da retroatividade da lei velha, mas do estabelecimento de uma nova regra que tem validade irretroativa, para estabelecer situação prevista por lei antiga. Assim não há uma lei que permita que o velho direito vigore, mas sim uma nova lei que cubra igual situação jurídica da lei anterior, porém somente por um período de tempo determinado.

Dogmas jurídicos no Direito Intertemporal

O Direito intertemporal como todo e qualquer direito, estabelece para seu funcionamento dentro dos parâmetros, uma série de dogmas para que as leis sejam aplicadas em conformidade com o efeito pretendido. Não se trata de princípios que regem as normas, mas sim de instrumentos de imutabilidade e conservação, que não permitem a discussão de uma dada situação fática. A função dos princípios e dos dogmas é diametralmente oposta. Pois enquanto os princípios permitem a mudança sem que se mudem as normas, os dogmas permitem que mesmo com a mudança das normas seja assegurado um mesmo padrão de funcionamento do sistema jurídico.

Dogmas jurídicos assim como os princípios podem ser entendidos como reguladores do sistema jurídico, ou seja, como calibradores do sistema. Como calibrador entende-se o elemento que não tem função específica normativa dentro do sistema, não validam uma norma ou conjunto delas, mas sim introduzem valores sociais, que possibilitam que haja um intercruzamento das normas legais sem seguir o critério de hierarquia das normas jurídicas. Esse é o entendimento adotado por Tércio Sampaio, para quem os calibradores permitem um sistema jurídico de competências cruzadas, e é um meio muito eficaz dentro do sistema jurídico, pois dificilmente passa pelo conteúdo da norma, sendo difícil sua identificação3.

Dentre os dogmas do direito presente no ordenamento jurídico, a doutrina elege como principais dogmas do direito intertemporal: a coisa julgada, ato jurídico perfeito e o direito adquirido. Esses são protegidos por norma constitucional (art. 5 XXXVI), pela Lei de Introdução ao Código Civil (art. 6); e aplicados para todo o sistema jurídico. Com esses dogmas o que se visa proteger é a “segurança jurídica”.

Consideramos essas figuras tradicionalmente presentes no direito como dogma, pois são mecanismos de conservação da situação fática existente. Eles não têm definição legal expressa, mas isso não impede que haja um grande consenso entre os juristas e doutrinadores do papel que desempenham. O efeito desejado com sua aplicação é a estabilização de determinadas situações, que pela própria situação do direito atual, seriam mutáveis. Trata-se de uma estabilidade introduzida e imposta pelo próprio sistema, para que o sistema que é mutável, não se altere.

O que os juristas têm observado é que esses “construtos jurídicos” em muitos casos, produzem situações de tamanha injustiça frente a um caso real, que passaram a defender a relativização em certos casos dessas figuras. Em outras palavras: em alguns casos há tamanha injustiça, quando o juiz aplica os dogmas tendo-os como tábua mestra, que se afasta toda uma tradição de não discussão dessas figuras. Isso ocorre quando o órgão de decisão oficial do Estado, contrariamente ao que foi treinado, se atenta para sua função de resolver a lide visando a paz social e não só o fim do processo.

Isso não significa que essas figuras perderem o seu caráter de dogma, pois são vistos em regra desse modo, para o bom funcionamento do sistema como o conhecemos. A posição de dogma não se torna frágil com a possibilidade de admissão da exceção, mas pelo contrário reafirma a regra dessas figuras não serem colocadas em discussão por grande parte das pessoas que lidam com o direito.

A coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido são dogmas presentes na legislação brasileira em diversos momentos, porém foram alçados conjuntamente a institutos de proteção, à direitos individuais e coletivos. A doutrina apresenta um grande número obras sobre esses dogmas jurídicos, ao qual geralmente denominam de institutos. Não cabe repetir aqui o que a doutrina tradicional aponta sobre esses três dogmas, devido a essa diferença de posicionamento. Para a definição tradicional abundam trabalhos, que podem ser facilmente consultados.

A coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, como institutos apresentam uma conotação de imutabilidade e indiscutibilidade. Ao apontá-los como dogmas ressalta-se a arbitrariedade dessa imutabilidade. Reafirmando o dogma do direito dogmático, evidencia-se o caráter ideológico mascarado pela aparente neutralidade do conceito de instituto.

A definição legal é dada pela Lei de Introdução do Código Civil nos parágrafos 1, 2, 3; do artigo 6. A coisa julgada apresenta também regulação mais detalhada no Código de Processo Civil. O ato jurídico perfeito e o direito adquirido são dogmas que a própria doutrina não apresenta conceitos seguros para diferenciação. Isso é potencializado pela conceituação aberta dada pelo próprio legislador.

Coisa Julgada. A coisa julgada é um calibrador de estabilização do sistema, pois permite que uma questão jurídica que foi analisada pelo poder judiciário, não venha a ser revista em momento posterior. Devido a sua importância para o direito este é um dos mecanismos, que está expressamente regulado pela lei. O Código de Processo Civil explicita o funcionamento da coisa julgada, nos artigos 467 a 472. A doutrina e a legislação fazem distinção entre coisa julgada formal e material, que variam conforme o momento do processo em que a questão não pode ser mais discutida. Quando a questão não é mais discutida em recurso ordinário ou extraordinário denomina-se coisa julgada material, quando ainda é possível discussão, denomina-se coisa julgada formal. Trata-se pois de graus de imutabilidade da questão. Pode-se entender que essa diferenciação é baseada na graduação dos dogmas, devido aos seus efeitos.

O legislador estabelece um ponto dentro do processo judicial que não é mais possível discutir as mesmas questões. Trata-se de uma tentativa de preservar em alguns casos, situações jurídicas já constituídas. Sem esse limite as questões poderiam ser discutidas infinitamente sem que se chegasse aos mais altos órgãos do poder judiciário. Por ser um instrumento muito forte, que impede o direito de apreciação pelo poder judiciário, o legislador faz ressalvas de situações que esse instrumento de limitação e estabilização não é aplicado (art. 469 CPC, art. 485 CPC, caso de inconstitucionalidade da coisa julgada, etc.).

Ato jurídico Perfeito. Definido legalmente como o ato consumado segundo lei vigente ao tempo em que se efetuou, é um instrumento de estabilização de situações jurídicas, em especial de negócios jurídicos realizado entre partes. É também mais um dos casos em que a lei atual não é aplicada, preferindo o legislador como exceção, proteger o que já tinha se realizado no âmbito dos negócios dentro daquela legislação específica.

Pode-se entender negócio jurídico, pois o código civil altera a posição da teoria dos atos jurídicos, para a teoria dos negócios jurídicos, com a uniformização dos direitos das obrigações.

Direito Adquirido. Definido legalmente na LICC art.6 §3 como: “direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”. Assim permite o legislador que uma vez adquiridos, os direitos possam ser exercitados, mesmo sob a vigência de uma lei que modificou ou extinguiu aquele direito. Não se confunde com a expectativa de direito, que é o decurso de prazo em que o titular do direito está adquirindo o direito, mas ainda não o adquiriu e portanto, não pode exercê-lo de imediato. Em outras palavras, se o direito não se alterar o titular do direito protegido, adquire com o decurso do tempo o direito estabelecido, porém enquanto não o adquiriu plenamente há expectativa de direito. O direito adquirido se refere a: a) direitos atuais, que se podem atualmente exercer, b) direitos a termo, c) direitos condicionais4.

Há duas principais teorias sobre o direito adquirido: teoria subjetiva ou clássica e a teoria das situações jurídicas. Esta última defende que o direito para vir a ser adquirido por seu titular, deve vir pautado por critérios objetivos, definidos em lei.

Problemas causados pela aceitação dos dogmas

Os dogmas jurídicos são aceitos amplamente pela comunidade jurídica sem serem colocados em dúvida quanto a sua existência ou mesmo importância, formando uma cultura jurídica que os pressupõe. O caráter de dogma é ressaltado pelas definições amplas e pouco precisas, e pela afirmação constante doutrinária e legal, de que devem ser respeitados em nome da segurança jurídica. Este é o fundamento principal do dogma da coisa julgada, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito. Pode-se denominar a segurança jurídica como o grande dogma que tem como instrumentos para sua efetivação sub-dogmas.

A Segurança Jurídica é também uma forma de estabilização das situações jurídicas e dos direitos. Com esse dogma garante-se que o mundo jurídico que é altamente mutável, para alguns casos, seja considerado como um mundo com certa estabilidade e previsibilidade.

Com esta previsibilidade forjada pelo mundo jurídico, os operadores do direito e as pessoas que se valem desses direito, têm uma margem para decidir ou fazer suas escolhas, a partir de um universo mais restrito de possibilidades, do que aquele realmente existente. Antes de ser uma realidade, a segurança jurídica é um dogma que se estabelece para redução de complexidade.

Não se pode perder de vista que a segurança jurídica é um construto do direito e pode funcionar apenas no âmbito jurídico. Isso porque o direito visa regrar o mundo, e este não é, nem nunca foi imutável ou estável.

No Direito intertemporal os dogmas ficam mais evidentes como dogmas, se comparado a um direito que tem aplicabilidade não restrita a um intervalo temporal delimitado e que não visa fazer a transição de uma dada situação jurídica para outra. São os dogmas de estabilização que permitem a alteração de um direito para outro, sem que haja uma catástrofe, mas apenas crises absorvidas pelo sistema jurídico.

Os dogmas que permitem que o direito intertemporal tenha o padrão de funcionamento atual, podem não ser necessários em outros padrões de funcionamento do direito. A não observância dos dogmas jurídicos não causaria insegurança jurídica, mas apenas iria estabelecer um direito diverso. Esses dogmas apenas são necessários para a manutenção desse padrão de direito vigente na atualidade, que muitas vezes privilegia os ritos processuais, deixando de lado questões dita subjetivas como a justiça, a igualdade de tratamento entre as pessoas, o bem viver, a busca de uma sociedade melhor, etc..

Considerações Finais

Se a coisa julgada, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, e principalmente a Segurança jurídica; são construtos jurídicos ligados a um direito com ideologia precisa, surge a pergunta do porque são seguidos e acatados por quase toda comunidade jurídica. Levanta-se aqui como hipótese que os dogmas são acatados por fé e por uma cultura jurídica que é formada a partir da educação dos juristas. Por fé, pois o que leva as pessoas respeitarem o direito é a fé de que ele garante uma sociedade melhor do que sem ele. Por cultura jurídica, pois as pessoas que lidam com o direito, foram educadas em escolas de direito que desde a mais tenra lição de introdução ao estudo do direito, já trouxeram esses dogmas como parte da própria essência do Direito. Assim um conceito que é político e histórico, torna-se a-histórico, despolitizado; ou nas palavras da outra parte: neutros e científicos.

Retirando o histórico dos conceitos o direito perde sua história e possibilita a invenção de tradições, consolidando estruturas novas como antigas e garantindo assim uma maior respeitabilidade. Os dogmas aqui tratados não datam de mais de dois séculos, sendo fruto da positivação do direito. Porém ao adquirirem o caráter de instituições, os dogmas construtos aleatórios e políticos, tornam-se figuras de longa tradição e que devem ser respeitadas, pois se presume que não há direito sem eles. Há quem justifique esses dogmas no direito romano, sem se ater que este direito, é outro construto do século XIX. Sem a história o conceito vira dogma, mito.

Não é estranho que para a estabilização do tempo no Direito, se retire dos conceitos jurídicos o próprio tempo, apagando sua história profana e construindo em seu lugar “instituições” que sobrevivem em um tempo mítico.

O Direito Intertemporal um dos problemas teóricos do direito ocidental, pois evidencia os dogmas no qual estão pautados o Direito. Para justificar a necessidade de estabilização de um direito mutável, instável e de constantes e rápidas transformações; é preciso evidenciar os dogmas dos quais o direito é dependente. Revelar a necessidade de petrificação do éter, requer um grande malabarismo teórico que muitas vezes a doutrina não consegue dar conta, deixando a mostra às vísceras que tanto queria ocultar. Como quase todo ser híbrido, o direito intertemporal coloca em discussão as regras aceitas como universais, os dogmas tidos como absolutos. Isso porque precisa para sua própria conceituação e legitimação, explicar do que é feito.

Um novo direito pode ser estabelecido sem que se sigam esses dogmas, possivelmente com a criação de outros. É possível também a aplicação do direito sem que se siga, total ou parcialmente, esses dogmas. Mesmo ao aplicar o bom senso na utilização dos dogmas, o jurista reafirma o dogma quando quer buscar uma situação mais justa, isso porque o “bom senso” é geralmente conservador.

O direito não padece do mal dos dogmas, mas sim de uma síndrome dogmática; e a “cura” não está na extirpação do mal, mas sim no diagnóstico e explicitação do seu mecanismo. Esse “tratamento” pode levar também a morte do direito tal como o conhecemos, porém a morte faz parte do ciclo da vida, e pode apontar para o nascimento de um novo direito.

O que se evidencia nesse texto é que os dogmas não fazem parte do direito no seu conteúdo, mas na forma com que esse conteúdo é utilizado pelos que lidam com o direito. Na “lida jurídica” os dogmas estabilizam o direito tornado-o menos suscetível às mudanças. Mais do que calibradores, são mecanismos de contenção, que como comportas de um dique, têm sua força e sua fraqueza.

São os dogmas que definem o direito positivo, pois esses dogmas são sua essência. Assim as normas se tornam meros coadjuvantes dos dogmas, pois muitas vezes seu conteúdo ou sua mensagem, tem sua influência no sistema jurídico controlada pelos mitos. Os dogmas jurídicos são mais potentes do que a norma, pois como mito, introduzem o irracional e a maleabilidade de adaptação, que são menores quando o que se está em questão são as normas e seu estudo.

Os mitos jurídicos são tarefa até difícil para cadeiras como a Filosofia do Direito, que procuram afastar o método do direito positivo de não discutir verdadeiramente seus conceitos. A linguagem da Filosofia do Direito pode captar as normas, mas lhe foge totalmente o mito. Não podemos esquecer que foi a Filosofia que para se estabelecer, teve de expulsar os mitos e deuses de seu domínio, inaugurando a racionalidade ocidental.

Não é demais lembrar por essa altura, as palavras de Pugliesi, ao relembrar os passos de Júpiter, o deus dos deuses do Olimpo. “....Júpiter sempre recorreu aos demais deuses, tanto para julgar, quanto para punir e se suas decisões eram irrecorríveis, nem por isso deixou de socorrer-se dos conselhos de Minerva e, não por acaso uniu-se, em primeiras núpcias, a Métis, a Prudência”5.


Bibliografia

ESPINDOLA, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. 3 ed, Rio de Janeiro, Renovar, 1999.

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. São Paulo, Atlas, 1994.

_____. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 3 ed, Rio de Janeiro, Forense, 1999.

FRANÇA, R. Limongi. Direito Intertemporal em matéria civil: subsídios para uma doutrina brasileira. Dissertação de catreda. São Paulo, 1967.

LLAGUNO, Elaine Guadanucci. O mito da coisa julgada. Dissertação de mestrado em Direito Processual Civil. Puc-SP, 2003.

MAXIMILIANO, Carlos. Direito Intertemporal ou Teoria da Irretroatividade das leis. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1946..

PUGLIESI, Márcio. Por uma teoria Geral do Direito: conflito, estratégia e negociação. São Paulo, Nous, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. (trad. José Duarte). Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986.

SANTOS, Antonio Jeová. Direito Intertemporal e o novo Código Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003.

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo, Malheiros, 2005


Notas

1 ESPINDOLA, Eduardo. A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. p, 238-263

2 KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. p, 183

3 FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica.

4 ESPINDOLA, Eduardo. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. p, 271.

5 PUGLIESI, Márcio. Por uma teoria geral do Direito. p, 30.

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Gisele Mascarelli Salgado
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