Como a Administração Pública contribui para a lentidão do Poder Judiciário
A Administração Pública é um dos maiores responsáveis pela morosidade do Poder Judiciário, tanto por não cumprir espontaneamente suas obrigações quanto por utilizar-se de litigância excessiva.
Tornou-se lugar-comum a reclamação contra a demora na tramitação
dos processos judiciais. E não se pode negar a sua pertinência: na
Justiça Federal, por exemplo, é comum que a citação seja feita
mais de um ano depois do protocolo da petição inicial. Também não
são raras as apelações que demoram vários anos para serem
julgadas pelos tribunais.
Diversas medidas de caráter legislativo já foram
tomadas com o intuito de amenizar esse problema, desde a criação
dos Juizados Especiais até as recentes reformas do processo civil e
do processo penal. A Justiça tem procurado modernizar-se, inclusive
em termos administrativos, com a adoção, por exemplo, do “processo
eletrônico”. Ainda há um longo caminho a percorrer, mas os
resultados já começam a aparecer, como mostram as estatísticas, no
sentido da expressiva diminuição de processos nos tribunais
superiores.
Há, porém, outras causas dessa lentidão judicial.
Essas causas são bem conhecidas dos operadores do Direito, mas ainda
não foram suficientemente bem consideradas e pouco ou nada tem sido
feito a esse respeito. São elas: a constante negativa dos órgãos
administrativos em prover espontaneamente os direitos dos
administrados; e a também constante utilização de recursos
judiciais pela advocacia pública, mesmo que sejam, evidentemente,
inviáveis.
A primeira situação consiste em se negar
administrativamente ao demandante (servidor ou particular) uma
providência que os tribunais há muito já pacificaram como seu
direito. Exemplo relativamente comum é o pagamento de verbas
atrasadas sem se considerar a correção monetária ou os juros de
mora. Também é extremamente comum que pessoas prejudicadas por atos
ou omissões da Administração Pública não consigam receber
administrativamente a indenização, mesmo que os fatos já estejam
demonstrados de modo que forme a certeza de qualquer julgador. A esse
respeito, vide o magistério de Marçal Justen Filho:
“O Estado tem o dever de promover
espontaneamente a liquidação do dano. Configurados os pressupostos
de sua responsabilização civil, a remessa do interessado à via
judicial configurará uma segunda infração pelo Estado a seus
deveres. A primeira infração se consumou quando o Estado deu
oportunidade à concretização do dano. A segunda ocorre quando se
recusa a arcar com a responsabilidade daí derivada” (Curso de
Direito Administrativo, 2008, p. 967).
As consequências desse comportamento ilícito são
bastante óbvias: a desmoralização do processo administrativo como
instância, menos formal e mais célere, de resolução de
controvérsias; e o abarrotamento do Poder Judiciário com demandas
que já poderiam ter sido resolvidas. Chega a ser surreal a
quantidade de processos envolvendo servidores públicos na Justiça
Federal, uma vez que, em boa parte deles, não há séria
controvérsia judicial. Portanto, bastaria à Administração Pública
verificar a questão probatória (certeza a respeito do fato objeto
do litígio) e a questão jurídica (matéria pacificada nos
tribunais superiores). É evidente que as decisões judiciais somente
são obrigatórias para as partes (autor e réu) do processo (com
exceção das ações de controle concentrado de constitucionalidade
e das súmulas vinculantes). Porém, decidir de forma contrária à
jurisprudência pacífica é, simplesmente, protelar o recebimento do
benefício pelo demandado, que, mais cedo ou mais tarde, terá o
direito assegurado pelo Poder Judiciário. Trata-se, no mínimo, de
visível ofensa ao princípio constitucional da eficiência.
A atuação da advocacia pública é pautada,
geralmente, por uma incansável defesa da entidade pública
representada. A princípio, é isso que se espera de qualquer
advogado em defesa de seu cliente. Essa ideia, porém, é levada a um
ponto que vai muito além dos limites da razoabilidade.
Primeiramente, é comum que atuação do advogado
público seja uma continuação do esquema referido anteriormente, ou
seja, sua função é defender decisões administrativas que, muitas
vezes, são indefensáveis sob qualquer ponto de vista juridicamente
razoável. Muitas vezes, essa conduta, em termos processuais, beira a
litigância de má-fé.
Em segundo lugar, é raro verificar-se uma
verdadeira ponderação a respeito da viabilidade dos recursos.
Costuma-se interpretar como “dever de ofício” a obrigação de
utilizar todos os recursos disponíveis, mesmo que sejam
manifestamente impertinentes, protelatórios e inviáveis. Em casos
extremos, chega-se a recorrer de decisões proferidas contra a parte
adversa, de decisões favoráveis à entidade pública e até de
decisões que não foram ainda proferidas! O pensamento de fundo
neurótico implícito em todos esses casos é o mesmo e pode ser
resumido na seguinte frase: “Sabe-se que esse recurso é inviável;
contudo, imaginemos que alguém, ao realizar, futuramente, uma
fiscalização, descubra que não foram utilizados todos os recursos
colocados à nossa disposição? Poderíamos ser
responsabilizados!”.
As duas causas analisadas têm uma raiz comum, que pode ser denominada de “controlefobia”, ou seja, pavor irracional [1], comum entre servidores públicos, de alguém ser responsabilizado por algum ato que possa ser interpretado como contrário aos interesses da entidade a que pertence [2]. Não se trata apenas de um fenômeno jurídico, mas da cultura e da psicologia interna da Administração Pública, para o qual a psiquiatria moderna, infelizmente, ainda não descobriu a cura...
Referências[1] Não é exagero afirmar-se que o medo é o sentimento predominante na Administração Pública, uma vez que a imensa maioria de seus integrantes opta por uma carreira estatal principalmente em vista da estabilidade, ou seja, a “garantia” contra as incertezas.
[2] Em psicologia, há um termo semelhante: “mastigofobia”, que é o pavor irracional da punição.