Da ação publiciana sob uma perspectiva histórica
Busca a compreensão histórica do instituto jurídico da ação publiciana, sendo necessário para isso um retorno ao Direito Romano.
INTRODUÇÃO
Estudar o Direito na História é uma forma de pesquisa consagrada pela Escola Histórica, que tem por fundador Friedrich Carl von Savigny. Há duas espécies de história do direito: interna e externa [1]. Resumidamente, aquela consiste na apreensão dos institutos jurídicos em sua evolução no decorrer do tempo, enquanto esta é o estudo dos fatos sociais e suas influências no Direito. Este artigo propõe um estudo de história interna do direito, no qual se buscará as raízes históricas do instituto da ação publiciana.
Para realizar esta tarefa será necessário um retorno ao Direito Romano. Este compreende um período de doze séculos (há divergências), um verdadeiro laboratório jurídico, desde a fundação da Cidade Roma, em 753 a.C., até a morte do imperador Justiniano, em 565 d.C.
Havia vários sistemas jurídicos na antiguidade, mas o Romano se destaca pelo seu brilhantismo, sobretudo no Direito Privado. O Corpus Juris Civiles, planejado e levado a efeito pelo Imperador Justiniano, é o monumento histórico que simboliza a grandiosidade jurídica dos Romanos.
No mais, é importante salientar que, considerando que não existe conhecimento cientifico asséptico, neste artigo não existe nenhuma intenção de se chegar à verdade pura, mas apenas de traçar um ponto de vista, uma convicção jurídica norteada pelo estudo histórico do Direito [2].
1. O JUS CIVILE E O DIREITO PRETORIANOEm Roma os pretores eram magistrados que exerciam funções relativamente semelhantes às do juiz de hoje. Detinham o poder do império (imperium), sendo investidos na jurisdição (jurisdictio). Por meio dos edictos eles apresentavam uma espécie de plataforma, um conjunto de declarações que expunha aos administrados os projetos que pretendiam desenvolver.
A figura do pretor, como sujeito coletivo, teve grande importância na era republicana de Roma – esta compreendeu um período de aproximadamente quinhentos anos.
Como eram imbuídos do instrumento da equidade, foi sendo construído, com o tempo, um direito pretoriano, diferente do jus civile, na medida em que era mais liberal, humano, desapegado do formalismo estrito e mais atento ao caso concreto.
Sendo o direito pretoriano prático e casuístico, não empreendedor de grandes classificações sistemáticas globais, torna-se difícil extrair um conceito romano sobre determinado instituto. Não obstante, as fontes romanas fornecem elementos, para que se estruture, consoante o espírito da romanidade, algumas concepções.
A respeito do direito das coisas, pode-se dizer que a propriedade no mundo romano ocupava posição central no sistema, girando-lhe ao redor toda ordem jurídica e econômica. Ela era um direito enquanto a posse era um fato.
Inicialmente a propriedade era absoluta, sendo permitido ao proprietário dispor livremente sobre seu bem. Mas essa concepção evoluiu no decorrer do tempo, sofrendo influências do cristianismo, e a noção materialista se humanizou, passando a ser vista como um bem que acarreta ao titular direitos, mas também deveres e obrigações morais.
Havia três tipos de propriedade. A quiritária (dominium ex jure quiritium), que exigia a cidadania romana do dono e era defendida pela rei vindicatio. A provincial, que consistia na propriedade das terras provinciais, também protegida por ações. Por último a pretoriana, não reconhecida pelo jus civile, mas protegida pelos pretores por meio da exceção da coisa vendida e entregue (exceptio rei venditae et traditae) e pela ação publiciana.
O jus civile, era rígido e exigia formalismo para o comércio de bens imóveis. Por outro lado o rápido desenvolvimento do comércio demandava flexibilidade jurídica.
A transferência solene da propriedade era uma exigência rígida do jus civile. Nesse sentido, no caso de transferência mediante simples tradição, perante o jus civile, o vendedor continuava sendo proprietário, enquanto o adquirente passava a ser mero possuidor (tinha apenas relação de fato com a coisa), mesmo tendo pagado devidamente. Somente após o usucapião adquiriria a propriedade.
O pretor, armando-se da equidade, visando trazer justiça para as relações jurídicas reais, criou o meio de defesa processual da exceptio rei venditae et traditae (exceção da coisa vendida e entregue), que paralisava a eventual pretensão de má-fé do alienante de reaver a posse, protegendo o comprador que efetuou o devido pagamento.
Posteriormente esta defesa foi estendida para os casos em que a coisa entregue ao comprador pela simples tradição, caísse, porventura, em mãos de terceiros. Nesse caso, como dito, conforme o jus civile, o comprador não tinha direito reconhecido, no qual pudesse se basear para reaver a coisa. O pretor chamado Quinto Publicius, no afã de solucionar esse problema com justeza, criou a actio publiciana, que exigia a devolução da coisa ao comprador.
Esta ação era uma actio ficticiae, que no Direito Romano consistia naquelas em que o magistrado supunha existente um elemento necessário para a ação de jus civile. A ação publiciana era uma actio ficticiae porque supunha o usucapião da coisa [3].
2. A AÇÃO PUBLICIANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRONo Direito brasileiro a ação publiciana, apesar de ter a mesma finalidade, difere-se da do Direito Romano na medida em que não supõe fictamente a existência da usucapião. A ação publiciana atualmente exige três pré-requisitos: que tenha decorrido o tempo suficiente para ensejar a usucapião, que não haja ação de usucapião pendente e que haja perda do exercício da posse direta pelo autor em decorrência do esbulho.
Ela se fundamenta no Código Civil de 2002 nos artigos 1.228, que garante ao proprietário o direito de reaver a posse e 1.238, que dispõe sobre a aquisição originária da coisa por meio da usucapião. Por mais que ela não apareça expressamente na letra da lei, é permitida.
De forma clara, pode ingressar com a ação publiciana o possuidor que já preencheu os requisitos da usucapião, mas ainda não requereu judicialmente a declaração desta e foi esbulhado em sua posse. É uma espécie de reivindicatória sem título, que visa reaver a posse perdida e garantir a usucapião, sendo uma ação de natureza declaratória e com efeitos inter partes. A sentença não serve de título para registrar o bem no Cartório de Registro de Imóveis, sendo necessária a ação de usucapião.
No entendimento do magistrado José Wellington B. da Costa Neto [4], é pacífica a doutrina em admitir que o usucapiente, que ainda não teve declarado seu direito dominial, pleiteie por meio da ação publiciana o reconhecimento da usucapião e a posse do bem para si.
A doutrina ensina: “quem tem justo
título, apto, em tese, para a aquisição do domínio, pela
prescrição aquisitiva, pode intentar a ação publiciana, para
exigir a posse, de que carece, para completar seu direito de
propriedade. Pede-se a posse hábil para gerar a prescrição
aquisitiva, que o investirá em pleno domínio da coisa ou do
imóvel.” [5]
3.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo do pressuposto de que “a lei é algo que representa uma realidade cultural e histórica que se situa na progressão do tempo”,6 foi possível descobrir a origem da Ação Publiciana, por meio do estudo da história interna do direito.
Pelo que se pôde compreender, o instituto surgiu no Direito Romano, na era republicana, pelo pretor Quinto Publicius, recebendo a ação nome derivado do sobrenome de seu criador.
Impossível conter comentários a respeito da importância do estudo do Direito Romano para a compreensão e fundamentação dos institutos de Direito Civil atuais, que decorrem, em sua maioria, de lá. As concepções jurídicas romanas percorreram os séculos e se alastraram pelos continentes influenciando o Direito dos Estados modernos.
Ademais, nota-se que a ação publiciana cabível no Direito brasileiro não é idêntica à do Direito Romano. Lá consistia em uma actio ficticiae, como foi explicado, supunha a existência da usucapião. Aqui, este é um pré-requisito.
Pouco estudada e utilizada no sistema
jurídico pátrio, com rala jurisprudência, a ação publiciana é
uma construção doutrinária plausível e coerente com o Direito
vigente.
Bibliografia
COSTA
NETO, José Wellington B.. Artigo: A
exceção de usucapião nas ações possessórias.
Disponível em: <http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/178.htm>,
acessado em 18/11/08.
CRETELLA
Júnior, José. Curso de Direito Romano. 19ª edição. Rio de
Janeiro: Forense, 1995.
MACHADO,
Antônio Carlos. Apontamentos do professor de Direito Romano da
Universidade de Fortaleza. Disponível em:
<http://www.geocities.com/a_c_machado/DireitoRomano-Unidade-VIII-parte-I.pdf>,
acessado em: 1º/11/2008.
REALE,
Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2003.
SCIASCIA,
Gaetano. Sinopse de Direito Romano, São Paulo, 1955.
SILVA,
De Plácido. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, Forense.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, Henrique, Manual de Direito Penal Brasileiro, 5ª ed., São Paulo: RT.
Notas
[1] Conforme concepção de Miguel Reale.
[2] A respeito: “a ilusão científica de ‘objetividade’ não passou de um elemento sedativo e anestésico que hoje não tem mais utilidade; toda ciência é ideológica porque todo saber é ideológico”, in ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, Henrique, Manual de Direito Penal Brasileiro, 5ª ed., São Paulo: RT, pg. 63.[3] CRETELLA Júnior, José. Curso de Direito Romano. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1995. pg. 188.
[4] COSTA NETO, José Wellington B., Artigo: A exceção de usucapião nas ações possessórias. Disponível em: <http://www.epm.sp.gov.br/SiteEPM/Artigos/178.htm>, acessado em 18/11/08.[5] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, Forense, p. 61.
[6] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 282.