A evolução do conceito de serviço público
Análise da evolução histórica da noção de serviço público, bem como de suas mutações mais recentes
O conceito de serviço público não é estático. Sofre transformações no tempo e no espaço, de acordo com a dinâmica do contexto social, político e econômico em que se insere. Assim, a noção de serviço público deve ser interpretada de acordo com o modelo de Estado que se adota, estruturado em função do nível de intervenção estatal na atividade econômica. Não se pode, por isso, conceber um conceito único de serviço público, pois essa interpretação histórica se faz sempre imprescindível, de modo que cabe a cada sociedade a construção de um conceito adequado, tendo em vista o modelo de Estado vigente. Todavia, é correto admitir a existência de um ponto comum ao desenvolvimento do conceito de serviço público em todos os contextos históricos. Esse ponto comum é o fato de caracterizar-se a prestação de serviço público sempre que o Estado assuma obrigatoriamente, direta ou indiretamente, a incumbência de satisfazer determinadas necessidades coletivas.
Vejamos: no Estado Liberal a
intervenção estatal na economia e na esfera dos
particulares é a mínima possível, resumindo-se
às ditas atividades típicas de Estado, quais sejam, a
garantia de segurança, liberdade e propriedade, o que se
consubstanciava basicamente na atividade de poder de polícia.
Já com o advento do Estado Social, a noção de
serviço público se amplia para abranger uma gama muito
maior de atividades destinadas a satisfazer as necessidades da
coletividade, incluindo atividades comerciais e industriais.
Abandonando os princípios liberais, o Estado intervencionista
titulariza atividades antes prestadas pelos particulares no Estado
Liberal. Desse modo, o Estado passa a intervir no domínio
econômico assumindo o papel de Estado empresário e
Estado investidor. Nesse período é que começa a
se delinear um conceito de serviço público, com o
surgimento das primeiras escolas do serviço público. A
Escola Francesa, de Leon DUGUIT (1859-1928), elabora a definição
de serviço público sob uma base sociológica,
como sendo as atividades prestadas pelo Estado visando o atendimento
de finalidades sociais. Posteriormente a Escola do Serviço
Público, de Gaston JÈZE, introduz a necessidade de um
regime jurídico próprio para o atendimento das
necessidades coletivas pelo Estado. Porém, o grande número
de atividades assumidas pelo Estado Social mostrou-se excessivamente
oneroso para a máquina pública, ao ponto de torná-la
ineficiente para prestação de alguns serviços.
Tornou-se imperativo, assim, que o Estado deixasse de prestá-los
diretamente, e passasse a delegar a prestação de
determinados serviços públicos aos particulares, sem,
contudo, perder a titularidade dessa prestação. Desse
modo, configura-se o Estado Regulador.
Crise na noção de
serviço público
No entanto, nem todos os serviços
públicos, por sua própria natureza, eram passíveis
de serem delegados à iniciativa privada. Essa característica
corroborou para uma mutabilidade da concepção de
serviço público ao longo dos períodos históricos
e trouxe o que se convencionou chamar de crise na noção
de serviço público [1].
Alguns critérios foram estabelecidos pela doutrina a fim de
trazer elementos à definição do termo: o
elemento material, pelo qual serviço público é
toda prestação de utilidade pública, destinada a
satisfazer interesses coletivos; elemento formal, pelo qual os
serviços públicos submetem-se a um regime jurídico
que contempla princípios específicos, e o elemento
subjetivo, pelo qual serviço público seria aquele
prestado direta ou indiretamente pelo Estado. A crise da noção
de serviço público, assim, se estabelece diante da
falta de uniformidade da presença desses elementos na
identificação das atividades consideradas como serviço
público, bem como da admissão de certos serviços
ao regime da iniciativa privada [2].
Serviços Públicos na
Constituição Federal de 1988
No direito brasileiro a prestação de serviços públicos compete ao Estado, direta ou indiretamente, sob o regime de concessão ou permissão, conforme dispõe o art. 175 da Constituição Federal de 1988, que também atribui a cada ente da Federação a incumbência da prestação de um serviço público específico, como, por exemplo, o art. 21, que prevê ser de competência da União a exploração dos serviços de telecomunicações. Assim, é o próprio Estado quem estabelece qual atividade será considerada serviço público, de maneira que, na ausência de previsão normativa, livre será a exploração do serviço ou atividade pela iniciativa privada. Uma vez que a Constituição eleja uma atividade à categoria de serviço público e indique sua titularidade, não há margem para interpretações divergentes. A doutrina entende possível, inclusive, que o próprio legislador ordinário caracterize uma determinada atividade econômica como serviço público [3]. Por outro lado, alguns autores entendem que haverá serviço público sempre que a iniciativa privada não possa atender adequadamente às necessidades coletivas [4]. Da análise do regramento constitucional relativo ao tema, torna-se possível, portanto, identificar serviços públicos privativos e serviços públicos não privativos do Estado. Serviços públicos privativos são aqueles já enumerados pela Constituição como sendo competentes para sua prestação, diretamente ou mediante delegação aos particulares (concessão, permissão ou autorização), a União, o Estado-membro ou o Município. De outro lado, serviços públicos não privativos são aqueles cuja prestação é livre ao setor privado, sem a obrigatoriedade de concessão ou permissão, e exemplos clássicos são saúde e educação. Cumpre destacar a classificação doutrinária de serviço público, que ao lado de atividade econômica em sentido estrito, é tido como atividade econômica em sentido amplo [5]. Por esse enfoque, serviço público é espécie de atividade econômica, destinada a atender finalidades sociais.
Relevante modificação na
tratativa constitucional dos serviços públicos foi
trazida pela EC nº 19 de 1998 que instituiu um novo modelo de
gestão na Administração Pública, a
chamada “Reforma Administrativa”. Embora não tenha
alterado o art. 175, a EC 19 veio introduzir práticas
gerenciais no âmbito da Administração Pública,
implantando novos conceitos na noção clássica de
serviço público, como eficiência na sua
prestação, presteza e agilidade, revertendo o foco para
o usuário do serviço, o chamado usuário cidadão.
As
mutações no conceito de serviços públicos
Como visto, são as mudanças no modelo de Estado que determinam a concepção de serviço público em cada sociedade e em cada período. O Estado Brasileiro nas últimas décadas vem se reestruturando e reformulando sua forma de intervenção no domínio econômico. Tais mudanças têm reflexos diretos na noção de serviço público, que foi construída basicamente no contexto do Estado Social, afetando a concepção clássica trazida do direito francês. Desse modo, a partir de meados da década de 90, quando da implementação do plano de “Reforma do Estado”, foram adotadas diversas medidas visando a reformulação do aparelho estatal (no plano constitucional instituídas por meio da EC nº 19/98), dentre as quais notadamente as que tinham por objetivo o encolhimento da máquina estatal. O Estado encontrava-se em um contexto de crise fiscal, pelo número excessivo de atribuições assumidas. Desencadeou-se assim amplo programa de privatizações, a fim de atribuir à iniciativa privada a prestação de serviços públicos que poderiam por esta ser prestados de forma mais eficiente. Nasce também a figura das agências reguladoras com a incumbência de fiscalizar as atividades deixadas a cargo do setor privado.
Nesse
cenário, o surgimento do Estado Regulador e o processo de
privatizações trouxeram à tona os debates em
torno da noção de serviço público. As
privatizações inserem o elemento da competição
entre as empresas concessionárias de serviços públicos,
ensejando a aplicação do direito da concorrência.
Passa a se falar, assim, na figura do consumidor, em contraposição
ao usuário de serviços públicos. Diante disso,
questiona-se como compatibilizar essas mudanças ao regime
jurídico e aos princípios aplicáveis aos
serviços públicos, e quais os reflexos dessas mudanças
sobre o regime jurídico dos serviços públicos.
Com o Estado se retirando da participação direta na
prestação de serviços essenciais à
sociedade, o conceito de serviço público pode vir a se
restringir [6].
Por outro lado, alguns elementos vêm se incorporando à
noção de serviço público, como a sua
elevação ao nível de direito fundamental e sua
configuração como instrumento de concretização
do princípio da dignidade da pessoa humana. A Carta de
Direitos Fundamentais da União Européia inova a
concepção de serviço público ao assegurar
a todos o “acesso aos serviços de interesse econômico
geral” [7],
garantindo o direito da coletividade ao recebimento de prestações
por parte do Estado, quer se confira ou não a elas a
denominação de serviço público. O Tratado
de Nice diverge do conceito clássico de serviço público
ao estabelecer o conceito de “serviço público
universal”, no sentido de que serviço público é
algo que circula no mercado, sendo sua prestação aberta
à livre iniciativa como a exploração de qualquer
outro produto ou serviço, mas com a garantia de um regime
jurídico de serviço público. De acordo com essa
concepção, não há a necessidade de
delegação da prestação do serviço
através de concessão ou permissão, sendo esta
atividade livre aos particulares, o que significa a retirada do
Estado de sua prestação, corroborando com os processos
de reforma do Estado iniciados em vários países já
a partir da década de 1980. Depreende-se, dessa forma, que,
juntamente com as mudanças nos modelos de Estado, o Direito
Comunitário vem sendo um fator de incorporação
de novos conceitos para serviço público. Certo é
que o conceito de serviço público não permanece
imutável, mas vem se reformulando constantemente em face
dessas mudanças. Deve-se atentar, no entanto, para que os
valores protegidos pelo regime jurídico e pelos princípios
afetos ao serviço público não sejam preteridos
em função de interesses econômicos ou de grupos
específicos. Independentemente do grau de participação
estatal na prestação dos serviços públicos,
tais valores devem sempre nortear sua concepção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 14 ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2004.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos Serviços Públicos e sua Transformação. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.) Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 39-71.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações nos Serviços Públicos. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n.1, fev/mar/abr 2005. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-1-FEVEREIRO-2005-DIOGO%20NETO.pdf. Acesso em 12 nov. 2007.
SANTOS, José Anacleto Abduch. Contratos de Concessão de Serviços Públicos – Equilíbrio Econômico Financeiro. Curitiba: Juruá, 2007.
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2004. p. 98.
[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações nos Serviços Públicos. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n.1, fev/mar/abr 2005. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-1-FEVEREIRO-2005-DIOGO%20NETO.pdf. Acesso em 12 nov. 2007. [3] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Teoria dos Serviços Públicos e sua Transformação. In: SUNDFELD, Carlos Ari (coord.) Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 47-48.[4] Idem.
[5] GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 98.[6] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Op. cit. p. 44.
[7] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit. p. 2.