O ônus da prova no direito do consumidor à luz dos princípios da igualdade e do acesso à justiça
Trata da intrincada questão do ônus da prova no direito do consumidor, procurando solucionar as suas mais recorrentes polêmicas à luz dos princípios da igualdade e do acesso à justiça.
A igualdade, princípio de quilate constitucional,
compreende, como é cediço, dois enfoques, o da
igualdade formal e o da igualdade material, sendo que, por este
último, deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os
desiguais, na medida da sua desigualdade.
Assim, verifica-se que o princípio da igualdade
se manifesta no CDC e nos demais diplomas pertinentes à tutela
do consumidor como tratamento desigual aos desiguais (viés da
isonomia).
Mais
especificamente, tais diplomas legislativos visam, mediante normas
protetivas, garantir aos litigantes desiguais a paridade da qual
ordinariamente não gozariam (ex: inversão do ônus
da prova e coisa julgada secundum eventum probationis).
Já o acesso à justiça, deve ser
visto como o acesso universal à adequada prestação
jurisdicional, conforme leitura que deve ser feita do disposto no
art. 5º, XXXV, da CF, e, mais especificamente, conforme o
disposto no art. 83, do CDC.
Daí a necessidade de se falar também, já
que o enfoque é a análise do ônus da prova, no
devido processo legal, nas suas matizes processual e substancial.
O devido processo legal processual é gênero
do qual decorrem as diversas espécies de princípios do
direito processual (contraditório, juiz natural, ampla defesa
etc.) que visam garantir aos litigantes um processo e uma sentença
justa [1].
Já no sentido substancial, o devido processo legal consiste na possibilidade de controle, nos processos, por parte do Poder Judiciário, dos atos legislativos e administrativos, avaliados, sob o enfoque das possíveis ofensas aos direitos fundamentais [2].
O devido processo legal, como é cediço, constitui princípio de fundamental importância em todos os ramos do direito, inclusive no direito do consumidor. Aliás, no direito do consumidor, identifica-se a intensidade particular deste postulado, na medida em que se trata de microssistema normativo, integrado por princípios e regras próprias, tanto do ponto de vista processual (ex: inversão do ônus da prova), quanto do ponto de vista substancial (ex: interpretação contratual em favor do consumidor).
Tomada será adiante, sob estes princípios
a regra de ônus da prova no direito do consumidor, inclusive
com a especialidade da previsão quanto à sua inversão
ope judicis (art. 6º, VIII, do CDC).
Os requisitos para inversão do ônus da prova no direito do consumidor, sempre com o intuito de facilitar a defesa em juízo de seus direitos, são a hipossuficiência do consumidor e a verossimilhança das alegações (art. 6º, VIII, CDC).
A
alegação verossímil é aquela que possui
aparência de ser verdadeira (que neste caso não depende
de prova inequívoca, como no caso do art. 273, caput,
do CPC).
A
hipossuficiência aqui se refere à capacidade para
produzir a prova, que neste caso é a chamada hipossuficiência
técnica (maior dificuldade para a produção da
prova – distanciamento dos elementos, ausência de informações
etc.).
Não
se cogita aqui da hipossuficiência econômica, viés
do acesso à justiça para o qual há muito já
trouxe solução a Lei 1.060, de 1950 (assistência
judiciária).
Finalmente, é proposital a utilização por nós da palavra “e” entre hipossuficiência e verossimilhança das alegações, pois conduziria ao absurdo de impor a inversão do ônus da prova em casos de alegação manifestamente inverossímil, tão-somente por conta da hipossuficiência do consumidor demandante [3], o que possibilitaria sentença baseada em alegação inverossímil, absurdo ao qual não pode o direito conduzir [4].
Quanto à discricionariedade para a aferição de tais requisitos, nos posicionamos no sentido de que, sendo estes “conceitos normativos indeterminados”, cabe ao juiz preenche-los com carga valorativa a ser buscada na própria ordem jurídica e nas regras de experiência comum.
Quanto ao momento processual adequado para que o juiz determine a inversão do ônus da prova, há de se notar que a regra comum (art. 333, do CPC) é objetiva, ou seja, não depende da análise de critérios subjetivos pelo juiz, ao contrário da regra do art. 6º, VIII, do CDC.
Assim sendo, em respeito ao princípio do contraditório, para evitar que as partes sejam surpreendidas com a decisão final que englobaria a decisão sobre rumos anteriores do procedimento, devem ser estas previamente informadas acerca da eventual inversão do ônus da prova.
Neste sentido já há
decisão do STJ (REsp 442.854, rel. Min. Nancy Andrighi, DJ
07.04.2003) e providencial edição do enunciado 91 da
Súmula do TJ-RJ, segundo o qual: “A inversão do
ônus da prova, prevista na legislação
consumerista, não pode ser determinada na sentença”
(DJ 17.11.2005). A justificativa da referida corte
estadual, com a qual concordamos plenamente, é a de que “a
inversão do ônus da prova, em favor do consumidor, não
é legal mas judicial, pelo que o fornecedor seria
surpreendido, se se considerasse a sentença como momento
processual da inversão, em afronta ao princípio do
contraditório”.
Não se nega que o ônus da prova seja regra de julgamento (a ser aplicada no momento da sentença), entretanto, do ponto de vista do fornecedor, deve o juiz ao menos expressar, antes da instrução, qual a regra que aplicará ao final, para orientar o seu comportamento probatório [5].
Portanto, o momento adequado para
o juiz determinar a inversão do ônus da prova é o
chamado “despacho saneador”.
A inversão do ônus da
prova deve ser realizada ex officio, pois se trata de norma de
ordem pública, além de dever ser aplicada da forma mais
ampla possível, sendo que, caso a lei quisesse impor
requerimento, o teria feito expressamente, o que, ainda por cima,
seria disposição constitucionalmente muito
questionável.
Com relação ao custo
da prova, como acima já citado, aplicam-se, além da
regra do art. 33, do CPC, as disposições da Lei 1.060,
de 1950, nada tendo a ver esta questão com a inversão
dos ônus da prova.
Em conclusão, podemos
afirmar que a regra de inversão do ônus da prova
prevista no art. 6º, VIII, do CDC, visa atender ao acesso à
justiça pela aplicação do princípio da
isonomia, procurando conferir ao desigual (consumidor
hipossuficiente) tratamento privilegiado a ponto de igualar suas
forças com as do fornecedor no âmbito do processo, com
vistas a conferir adequada e efetiva tutela de seus direitos, na mais
moderna e ampla concepção da garantia de acesso à
justiça.
[1] Nelson Nery Jr., Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, p. 60.
[2] Ibidem, p. 67.[3] Neste sentido: Antônio Gidi, Aspectos da inversão do ônus da prova no Código do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor 13/34.
[4] Neste sentido, confira-se a seguinte decisão do TJ-SP:“DANO MATERIAL - INDENIZAÇÃO - NÃO CABIMENTO - ÔNUS DA PROVA - INVERSÃO - INAPL1CABILIDADE - ART. 6o, INC. VIU, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR - REQUISITOS NÃO CONFIGURADOS - APRESENTAÇÃO, PELO AUTOR, DE DIVERSAS VERSÕES DO FATO - PROVA ORAL CONTRADITÓRIA - ELEMENTOS DOS AUTOS - ALEGAÇÕES NÃO DOTADAS DE VEROSSIMILHANÇA-RECURSO NÃO PROVIDO” (Apelação 1226116800, rel. Des. José Roberto Bedaque, j. 05/08/2008)
[5] Neste sentido: Paulo Hoffman, Inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa do Consumidor – critério de julgamento (sob a ótica do juiz) e critério de procedimento (para o fornecedor), Aspectos processuais do Código de Defesa do Consumidor, p. 223/241.