A valoração do afeto como elemento constitutivo das novas relações familiares

A valoração do afeto como elemento constitutivo das novas relações familiares

Busca demonstrar o afeto não apenas como elemento constitutivo das "novas relações" familiares, mas, sobretudo, como bem jurídico tutelado em diversos diplomas legais, o que o legitima como indenizável.

A vigente alteração conceitual da família de que trata o texto constitucional, é por via reflexa, resultado das alterações sociais.

A “família moderna” forjada em novo modelo, mais urbano e globalizado, tendo como fator preponderante o vertiginoso desenvolvimento tecnológico dos meios de comunicação que alteraram profundamente a sociedade, seus valores e seus conceitos; sem deixar, entretanto, de traduzir a sua essência nuclear, pois, é partir dela que se constroem os valores morais, não deixando de ser ainda um fenômeno sociológico e, sobretudo jurídico (VENOSA, 2006).

Pode-se observar pela trajetória da humanidade, que as grandes transformações sociais partem do núcleo familiar, ou pelo menos, nela se apóiam.

No estado primitivo da civilização, “o grupo familiar não se assentava em relações individuais” (VENOSA, 2006:3), vez que o costume da época era baseado na endogamia, motivo pelo qual, conhecia-se a mãe e desconhecia-se o pai, fundado o núcleo familiar matriarcal.

Este modelo que a principio nos soa como promiscuo, foi, conforme nos ensina Caio Mário da Silva Pereira (2003:17) a estrutura familiar de todos os povos deste período, que norteavam suas relações a partir da figura materna de onde emanava todo o poder da tribo.

Num segundo momento, ainda no período primitivo, as constantes guerras reduziram a população feminina, permitindo-se aos homens relacionarem-se com mulheres de outras tribos, motivo pelo qual, os historiadores fixam “esse fenômeno como a primeira manifestação contra o incesto” (VENOSA, 2006), estabelecendo-se desde então as relações sociais exogâmicas [1].

Desde então, pode-se verificar no curso da história, o movimento do homem rumo as relações individuais e exclusivas, ainda que em algumas sociedade resista o modelo poligâmico, a regra da sociedade moderna são as relações sócio-familiares monogâmicas.

Desta forma, parece-nos correto afirmar que a monogamia desempenhou um importante papel no impulso social, quando a família assume o núcleo social visando basicamente a proteção da prole, ensejando o exercício do poder paterno e estabelecendo-a como fator econômico de produção, situação que só se modifica com a Revolução Industrial, “quando a família deixa de ter as características de unidade produtiva, assumindo o papel de instituição na qual desenvolvem-se os valores morais, éticos, afetivos e de assistência mutua entre seus componentes” (BASSERT-ZANNONI, 1995:5 apud VENOSA, 2006:4).

Outras modificações sociais refletiram-se na formação das famílias.

A revolução sexual proporcionada pela utilização da pílula, o divórcio, a entrada da mulher no mercado de trabalho e finalmente sua completa emancipação por conta da igualdade constitucional entre os sexos (Art. 5º, I CB/88), passou a exigir da família um nova justificativa para sua perpetuação.

Já não se faz necessário a formação familiar buscando a proteção entre tribos, não cabe mais a formação chancelada pelo matrimônio possibilitando tão somente a procriação e perpetuação da espécie, tão pouco como garantia de produção e sustento.

As novas famílias do século XXI formam-se através de um novo e velho vinculo, que acompanha o ser o humano e o difere das outras espécies, a capacidade de amar e ser amado, ou como queira chamar o afeto.

A substituição da família constituída pelo casamento dá lugar a formação de novas entidades norteada pelo afeto como “aproximação espontânea, cultivada reciprocamente” (CASTRO, 2007:6), as quais o legislador confere tutela sob a denominação de “união estável”, “família monoparental”, “igualdade entre os filhos” e “dissolução do casamento”.

A liberdade na constituição da “nova família” traz para este ramo do direito o afeto como bem jurídico, pois, como nos diz Maria Berenice Dias (2006.) “o amor esta par ao direito de família assim como o acordo de vontade está para o direito dos contratos”.

Esta nova formação familiar reclama do Poder Judiciário um posicionamento, não apenas do reconhecimento das relações que se constituem a partir deste “novo” elemento, mas também, para atender ao reclame daqueles que deste, não foram providos e reclamam por uma reparação, pois, ainda que sem esta intenção, o legislador prevê no abandono moral a caracterização da ausência de afeto.

É inerente ao Direito acompanhar a dinâmica própria das relações sociais que dele reclamam uma constante reflexão sobre seus diferentes âmbitos de atuação, “sendo licito afirmar, portanto, que sua interpretação e aplicação estão sujeitas a uma constante metamorfose, fruto das transformações que emergem do convívio social e das forças que atuam na formação dos valores que ordenam essas relações” (BRANCO, 2006:15).

É hora do Estado voltar os olhos para essa nova realidade e responder a tais questões, pois a ele incumbe conhecer todas as situações e sobre estas “dizer o Direito”, pois, apesar de toda inovação trazida pelo legislador ordinário, ainda assim, este não obteve êxito no seu intento, pois, não alcançou os novos modelos frutos das referidas transformações, a exemplo das famílias anaparentais e das famílias homoafetivas.

O afeto vem reclamando a atenção do judiciário, mas percebe-se que em algumas situações, o legislador já se encontra adiantado ao tutelar em diversos instrumentos normativos o afeto como elemento constitutivo das relações familiares.

É fato que vivemos em um Estado afetuoso, onde a Lei Maior institui logo em seu preâmbulo a formação de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida (...). (BRASIL, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988) (grifos nossos).

No mesmo sentido, em outra ocasião o texto constitucional determina o afeto como pedra de toque das relações familiares ao instituir que:

Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.

Também no nosso Diploma Civil (Lei. 10.406/2002) têm-se a valoração jurídica no afeto, vez que dentre os impedimentos para o casamento figura o parentesco por afinidade, considerando-o inclusive, como laço indissolúvel em vista do fim da relação.

Art. 1.595. Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade.

(...)

§ 2o Na linha reta, a afinidade não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável.

BRASIL. LEI 10.406 DE 2002. Institui o Código Civil. (grifos nossos).

Outro momento do nosso sistema legal a ser considerado na demonstração da tutela jurídica do afeto, fica por conta das modificações decorrentes da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90), que também prevê em vários momentos a afetividade como pressuposto para formação familiar, a exemplo da possibilidade de colocação família substituta, quando deve-se observar

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.

§ 1º Sempre que possível, a criança ou adolescente deverá ser previamente ouvido e a sua opinião devidamente considerada.

§ 2º Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes da medida. (grifos nossos).

O Código Penal Brasileiro na mesma esteira destaca no Titulo VII “Dos crimes contra a família”, elegendo capítulo especifico para tratar “Dos crimes contra a assistência familiar” onde prevê cominação de pena para as condutas de abandono material e intelectual- art. 244 e s., in verbis:

Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.

Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.

Art. 245 - Entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo:

Pena - detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

§ 1º - A pena é de 1 (um) a 4 (quatro) anos de reclusão, se o agente pratica delito para obter lucro, ou se o menor é enviado para o exterior.

§ 2º - Incorre, também, na pena do parágrafo anterior quem, embora excluído o perigo moral ou material, auxilia a efetivação de ato destinado ao envio de menor para o exterior, com o fito de obter lucro.

Abandono intelectual

Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar:

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.

Ora, é cristalino que ao descrever tais condutas como tipo penal e a elas cominar uma punição, o legislador pune aqueles que agiram em desconformidade com as condutas afetuosas que regem as relações familiares.

Pode-se, portanto afirmar que quem deixa de prover materialmente e intelectualmente a um ente familiar, inevitavelmente já o abandonou moralmente, pois o abandono material é conseqüente do abandono sentimental.

Quem desta forma age, incorre em uma conduta de desamor e para esta há um punição( quer seja a detenção, reclusão ou multa), o que nos permite questionar: Não estaria desta forma o legislador punindo as condutas nuas de afeto?

Recentemente o Judiciário foi provocado a manifestar-se sobre o abandono moral e não são mais raros os casos em que filhos recorrem ao Estado para assegurar o direito que a Constituição lhe confere, ao determinar no §7º do art. 226 a “paternidade responsável” como correlato ao principio da dignidade humana, balaustre o ordenamento jurídico brasileiro, que garante-lhes entre outros, o “direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227 CB/88) (grifos nossos).

Em se tratando de relações familiares por óbvio que não se pode partir de um pressuposto único, ou de qualquer espécie de modelo. Cada caso deve ser analisado individualmente, pois assim como as famílias os litígios dela decorrentes, são plurais.

Expor uma criança ao abandono moral, a nosso ver, configura a crueldade e a opressão de que tratar o artigo retro citado.

A fim de confirmar nossa posição, basta que se faça uma pesquisa nos centros de recuperação de menores infratores, para que se possa constatar que, via de regra, estes são oriundos de núcleos familiares desajustados, onde o afeto lhe é relegado, ou totalmente inexistente.

Pioneiro no trato deste assunto, Piaget (1962:3) nos ensina que

é incontestável que o afeto desempenha um papel essencial no funcionamento da inteligência. Sem afeto não haveria interesse, nem necessidade, nem motivação; e conseqüentemente, perguntas ou problemas nunca seriam colocados e não haveria inteligência. A afetividade é uma condição necessária na constituição da inteligência.

O aspecto afetivo tem importante contribuição na formação intelectual do individuo podendo “acelerar ou diminuir o ritmo de desenvolvimento” (SOUZA,”?”), implicando na relação com o outro, constituindo fonte de todos os tipos de inteligência: “cinestésico-corporal, verbal, interpessoal, visual, semântica, musical, social e religiosa” (idem).

O afeto é principio norteador da auto-estima, portanto elemento essencial para o pleno desenvolvimento da psique humana, cabendo aos pais zelar por sua plena formação.

Enfim, resta demonstrado que não se pode mais olvidar que o afeto constitui elemento formador das novas relações familiares, e que, a nosso ver, devem as ações que o deneguem ou o releguem trazendo dor moral ao individuo atingindo-lhe a dignidades, devem ser refreadas pelo aplicador do direito, e mais, devem ser indenizáveis quando comprovado o dano causados ao sofredor.

Não se pode esperar por certo, que o Judiciário assuma o papel de remediador de relações afetivas desfeitas, ou maculadas pelo ódio ou pelo desejo de vingança que resta em algumas delas, mas, sem sombra de dúvida, deve este agir com implacável legalidade contra aqueles que descumprem o seu sagrado dever de pai, de mãe ou de companheiro, deixando de zelar e amar aqueles a quem vida lhes deu como filho, consorte ou cúmplice.

Resta comprovado, portanto, que o Direito tutelou o afeto como bem jurídico, e que neste vem-se pautando as novas relações familiares. Logo, diante da ausência de afeto e do comprovado dano moral por este ocasionado, é devida a reparação, pois via de regra o abandono afetivo e moral ver-se acompanhado do desleixo material contra quem se deveria proteger e amar.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação: citação em documentos: apresentação. Rio de Janeiro, 2002.

______. NBR 14724: informação e documentação: trabalhos acadêmicos - apresentação. Rio de Janeiro, 2005.

______. NBR 6023: informação e documentação: referências – elaboração. Rio de Janeiro, 2002.

______. NBR 6028: informação e documentação: resumo: apresentação. Rio de Janeiro, 2003.

BRANCO, Bernardo castelo. Dano moral no direito de família. Editora Método. São Paulo: 2006.

BRASIL, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. <Acesso em: 06. abr. 2008>.

BRASIL. Código Civil (2002). Novo Código Civil: Lei n.10.406, de 10-1-2002. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 15. ed. atual. vol.V.São Paulo: Saraiva 1997.

BRASIL. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm. <Acesso em: 06. abr. 2008>.

BRASIL. DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Código Penal.disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm. <Acesso em: 06. abr. 2008>.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 4. ed. rev. atual. E ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.

MELO, Nehemias Domingos de. Abandono moral. Fundamentos da responsabilidade civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 583, 10 fev. 2005. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6247. <Acesso em: 06.abr. 2008>.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v.5

PIAGET, Jean. The relation of affetivity to intelligence in the mental development of the child. [transl. by Pitsa Hartocollis]. In Bulletin of the Menninger clinic. - 1962, vol. 26, no 3. Three lectures presented as a series to the Menninger school of psychiatry March, 6, 13 and 22, 1961. Publicação original em língua inglesa, 1962. Disponível em: http://www.ufrgs.br/faced/slomp/edu01136/piaget-a.htm <acesso em 08.abr.2008>.

SOUZA, Maria do Rosário Silva. A questão afetiva se bem atendida ajudará seu filho para que tenha êxito na escola. Disponível em: http://www.saudevidaonline.com.br/artigo53.htm <acesso 0o. abr.2008>.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 4. ed. vol. V. São Paulo: Atlas, 2006.

[1] adj. e s. m., indígena que se liga com mulher de tribo diversa da sua.Fonte: Língua portuguesa on line. Disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/dlpo.aspx <acesso em 07.abr.2008>.

Sobre o(a) autor(a)
Francimary de Deus
Estudante do 9º Semestre do curso de Direito do Centro Universitário da Bahia - FIB e estágiaria da Defensoria Pública da Bahia.
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