A censura e as biografias não-autorizadas
Análise acerca da possibilidade jurídica de aplicação ou não de censura às biografias não-autorizadas. Legislação nacional e internacional aplicável à matéria.
Com a publicação de recente decisão judicial que determinou a retirada da biografia não-autorizada do cantor Roberto Carlos das livrarias, retornou à pauta uma delicada discussão que envolve a limitação de garantias constitucionais, como a liberdade de expressão e de pensamento, o amplo acesso ao conhecimento e o direito à vida privada. Considerando a importância da questão e a ausência de posicionamento pacífico dos tribunais brasileiros, seguem alguns comentários acerca do tema.
Primeiramente, imperioso observar que não há direito ilimitado no ordenamento jurídico pátrio. Quando duas ou mais garantias constitucionais entram em conflito (ex. liberdade de expressão vs. direito à privacidade), o judiciário deve ponderar a aplicação de tais garantias, tomando por base as peculiaridades do caso concreto.
O princípio da unidade da Constituição assegura a ausência de hierarquia entre as garantias constitucionais e a interdependência dos dispositivos da Carta Magna, o que reforça ainda mais a idéia de que nenhuma garantia invocada poderá ser excluída de plano pelo magistrado em prol de outra.
Isso significa dizer que mesmo que algumas biografias tragam relatos da vida íntima dos protagonistas, o judiciário deve analisar qual das garantias constitucionais há de prevalecer, a liberdade de expressão do autor da obra e o amplo acesso ao conhecimento que interessa à sociedade ou o direito à privacidade do protagonista. Excluir de plano qualquer das garantias suscitadas seria sufocar a decisão prolatada com inconstitucionalidade. O magistrado poderia aplicar restrições às garantias em conflito, mas jamais poderia excluir qualquer delas liminarmente.
Assim, a retirada de circulação de uma biografia não-autorizada por decisão liminar ou que antecipe os efeitos da tutela, muito provavelmente viola a liberdade de expressão do autor da obra. A propósito, qualquer forma de violação à liberdade de expressão (inclusive a judicial) caracteriza censura, instituto veementemente combatido pelo constituinte no passado. Destarte, não há como se falar em pratica que revitaliza a censura, sendo possível limitar a liberdade de expressão e o acesso ao conhecimento apenas em casos particularíssimos1.
Na realidade, não existe uma regra para solucionar todos os casos do cotidiano, pois cada caso deve receber minuciosa análise. Dentre os pontos que merecem apreço do órgão judicante, destacam-se a forma de obtenção das informações publicadas (se foi ou não lícita), a veracidade das informações publicadas, o caráter excessivamente intimista de uma publicação, o conteúdo publicado e sua adequação em relação ao interesse social da obra, a notoriedade do protagonista da biografia e seu comportamento e cautela em relação à guarda de informações pessoais.
Deverá prevalecer o direito à privacidade somente se houver obtenção ilícita de informações (como aquelas feitas através de escuta telefônica), informações extremamente privadas (desprovidas de qualquer ligação com a vida pública da pessoa biografada) ou total ausência de interesse público ou social.
Porém, a esmagadora maioria das biografias relata a vida de pessoas que atingiram a notoriedade e, por esse motivo, sempre trazem algum interesse público ou social embutido, ainda que seja a mera contribuição cultural para a história da música brasileira, como no caso do cantor Roberto Carlos. Aliás, por esse mesmo motivo é que a revelação de informações relativamente íntimas torna-se lícita, eis que as pessoas que atingiram a notoriedade têm suas esferas de privacidade bastante reduzidas.
A divulgação de aspectos pessoais da vida dos protagonistas normalmente serve para compor a personalidade do biografado e para demonstrar as origens do comportamento que a pessoa apresenta em sua vida pública, sendo plenamente justificável. Em síntese, sempre que for constatada alguma relação entre o fato divulgado e a vida pública do protagonista, a informação deixa de ser demasiadamente pessoal e passa a ser dotada de interesse artístico, histórico ou cultural.
Cabe ainda notar que normalmente não há, por parte do protagonista, qualquer cautela em relação à guarda das informações publicadas na biografia, que, aliás, muitas vezes foram levadas ao público pela imprensa ou foram por ele reveladas, o que tornaria a censura indubitavelmente ilícita. Dessa forma, apenas excessos gravíssimos poderiam restringir as demais garantias constitucionais2.
Para proteger a personalidade do protagonista dos excessos citados, sempre haverá uma saída menos gravosa do que desrespeitar a liberdade de expressão e impor a censura. Por exemplo, se porventura forem constatadas na obra informações inverídicas ou que denigram a imagem ou a honra da pessoa biografada, poderá a pessoa intentar a competente ação penal por calúnia, injúria ou difamação, ressalvada a possibilidade de exigir indenização no âmbito cível.
Enfim, existem mecanismos legais para combater quaisquer excessos cometidos pelo autor sem que seja necessário ferir a garantia constitucional da liberdade de expressão, como sugere o Conselho da Justiça Federal, quando trata do direito à própria imagem, no enunciado abaixo transcrito:
279 — Art.20. A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.
É por esse mesmo caminho que a jurisprudência internacional envereda. Nos EUA, por exemplo, adota-se a chamada “New York Times Rule” desde 1960, regra que tornou lícita a divulgação de informações a respeito de pessoas públicas, exceto nos casos em que a informação for sabidamente falsa ou nos quais não tenha havido a diligência necessária para atestar sua veracidade3. Ainda que referida regra seja direcionada para limitar a privacidade das pessoas públicas (que ocupam cargos públicos) em benefício da liberdade de expressão e do acesso à informação, é evidente que a regra gera reflexos nas discussões que envolvem as demais pessoas que, de alguma forma, atingiram a notoriedade, como atores, músicos, etc.
Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, cabe ainda ressaltar um possível problema de isonomia nas decisões que impedem a livre circulação de biografias não-autorizadas, pois seria correto possibilitar que a imprensa publique informações acerca do comportamento de pessoas famosas e impedir que o conjunto de informações publicadas seja aproveitado para uma biografia? Parece que não!
Aliás, fundamentos jurídicos à parte, não seria uma pena que nossos filhos não pudessem usufruir de livros de história com relatos de parte da vida pessoal de políticos e outras personalidades? Felizmente, até nesse caso vislumbrar-se-ia inconstitucionalidade: o desrespeito ao amplo acesso ao conhecimento!
Enfim, ainda que juridicamente a censura fosse possível, a necessidade de autorização culminaria com a extinção deste gênero tão apreciado de obra literária, pois apenas autobiografias ou biografias encomendadas (portanto, demasiadamente elogiosas e parciais) poderiam ser publicadas.
[1] “Qualquer decisão deve ser determinada por ordem judicial, mediante o devido processo legal. E, mesmo o poder judiciário, só deve impor qualquer restrição à liberdade de expressão quando for imprescindível para salvaguardar outros direitos que não possam ser protegidos ou compostos de outro modo menos gravoso. Especialmente, a concessão de liminares só deve ocorrer em casos muitíssimos excepcionais. Na maioria das vezes, o direito invocado por ser perfeitamente composto com a indenização por dano moral, o que é melhor solução do que impedir a livre expressão. (...) Não se nega, pois, a possibilidade de limitação, mas por determinação fundamentada da autoridade judicial e após criterioso exame” (Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho. Direito de Informação e liberdade de expressão, p. 51.)
[2] Sopesar tais circunstancias é tarefa complicada, porque da equação entre o comportamento do titular do direito, sua projeção e notoriedade, e o pretenso interesse social (artístico, científico ou cultural), este último deve resultar superior. Deve-se valorar o benefício ou o exato complemento que a intromissão na privacidade significa à notícia e quais os efeitos surtidos na esfera própria da pessoa em decorrência dessa mesma invasão que pretexta o interesse público, cuja invocação é, às vezes, perturbadora, mas não estreme. (Gulberto Haddad Jabur. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada, Editora dos Tribunais, pág. 292)
[3] The constitutional guarantees require, we think, a federal rule that prohibits a public official from recovering damages for a defamatory falsehood relating to his official conduct unless he proves that the statement was made with "actual malice" — that is, with knowledge that it was false or with reckless disregard of whether it was false or not