O indivíduo como centro das relações privadas e a necessidade de adequação do Código Civil aos preceitos constitucionais

O indivíduo como centro das relações privadas e a necessidade de adequação do Código Civil aos preceitos constitucionais

Constitucionalização do Direito Civil pátrio, ainda de caráter patrimonialista, no Estado Social em que vivemos atualmente.

1. Do liberalismo ao intervencionismo

Um dos atuais desafios no âmbito jurídico pátrio é a questão da constitucionalização do Direito Civil, diante de sua doutrina de caráter quase que estritamente liberal.

Com o advento da Revolução Francesa, bem como a efetiva implantação do liberalismo, observa-se um período de extrema repulsa a qualquer forma de controle estatal caracterizado por uma enorme sensação de libertação das amarras do absolutismo. Era a doutrina burguesa que, através de seu brado de justiça e igualdade vinha derrubar de uma vez por todas os abusos cometidos pelo Estado despótico. No entanto, tal lema de liberdade, igualdade e fraternidade que entusiasmara as massas insurgentes no séc. XVIII, não saiu do plano formal, servindo mais tarde como um véu que encobrira os interesses da burguesia, agora sem os entraves que outrora dificultavam suas transações econômicas.

Através do conceito marxista de infra e superestrutura, o direito, bem como os valores morais e religiosos, apóia e justifica a ordem econômica vigente. Com o capitalismo não poderia ser diferente, o direito civil, impregnado pelo liberalismo, passou a ter como seus dois pilares a propriedade e o contrato (visto como o modo de aquisição da propriedade), cristalizando a autonomia da vontade como um dogma intocável.

Na segunda metade do século XVIII, com a Revolução Industrial, intensificaram as relações contratuais, ficando praticamente isentas do controle estatal. A autonomia da vontade passou a encobrir injustiças sociais, através de contratos com estipulações unilaterais e abusivas, e, juntamente da industrialização em massa, uma grande parcela da população européia (principalmente inglesa) foi levada à marginalização.

O legislador, notando que o acordo era mais aparente do que real, pois os economicamente mais fracos estavam sempre em desvantagem, procurou diminuir as desigualdades através de leis esparsas (denominadas como legislação de emergência, pois regulavam situações não previstas) a partir do final do séc. XIX e início do séc. XX. No Brasil, essa primeira fase intervencionista, nascera logo após a promulgação do Código Civil.

A partir dos anos 30, diante de conflitos sociais gerados pela situação econômica e, influenciado pela política do Welfaire State, o legislador brasileiro passa a intervir em matérias antes deixadas exclusivamente ao livre arbítrio dos contratantes. Uma nova fase de ingerência do Estado nas relações econômicas começava, evidenciando a perda da exclusividade de regulamentação do Código Civil, no que tange às relações patrimoniais privadas. É importante ressaltar que, os textos constitucionais posteriores a 1914 já passaram a conter princípios e normas estabelecendo deveres sociais no exercício da atividade privada.

É claro que os princípios básicos da teoria contratual eivados de liberalismo não foram abandonados, mas junto a estes foram acrescentados outros de caráter social e ético como a boa-fé objetiva, o equilíbrio econômico e a função social do contrato. Além do mais, passou a limitar-se a autonomia da vontade.

Contudo, culminou-se como o início da constitucionalização do direito privado, ou seja a submissão do Direito Civil aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos. No entanto, tal faz parte de um longo processo ainda não concretizado, visto que o atual Código Civil continua ideologicamente ancorado no liberalismo, evidenciando sua tradição patrimonialista em seus 3 principais institutos: família, propriedade e contrato. Conceito diferente, porém congruente, é o de publicização, que consiste na intervenção legislativa infraconstitucional.

Evidencia-se hoje a necessidade de interpretação do Código segundo a Constituição, adequando-o às evoluções sofridas pelo Estado e pela sociedade, pois com a criação do Estado Social, e com a conseqüente implantação dos princípios gerais da ordem econômica no texto constitucional, a valorização do trabalho humano e a justiça social não podem ficar de fora das relações privadas.


2. A família na Constituição e no Direito Privado

De acordo com o Princípio da soberania da Constituição, toda a legislação infraconstitucional não adequada com suas normas e princípios resta revogada. Logo, os institutos da família, da propriedade e do contrato, sempre tratados sob uma ótica patrimonialista, após a Constituição de 1988 passaram a ganhar um novo enfoque mais humanista, submergindo a pessoa como pólo de relação jurídica. Tal fenômeno, denominado repersonalização, repõe a pessoa humana como centro do direito civil, deixando o patrimônio em segundo plano.

Sempre vista sob uma ótica de célula básica do Estado, sendo este encarado como uma mera projeção, a família vem recuperando sua origem de grupo unido por laços afetivos. As constituições liberais, prevendo a intervenção mínima estatal, demonstravam que a religião e o patrimônio doméstico eram grandes obstáculos ao sentimento coletivo da república.

Além do mais, a maioria dos dispositivos expressos no Cód. Civil com relação
à família tratam das relações patrimoniais entre seus integrantes. No entanto, a Constituição de 1988 trouxe à tona três princípios (além de outros) norteadores das relações familiares, são eles: o da dignidade da pessoa humana, o da liberdade e o da igualdade.

O princípio da dignidade da pessoa humana é contemplado pela Constituição como um dos fundamentos da organização social e política do país, bem como da família. É de extrema importância por não permitir (constitucionalmente falando) que abusos aconteçam dentro dela, como aqueles que ocorriam na família patriarcal, onde o pai detinha infindáveis poderes, sobrepondo-se aos demais integrantes sem nenhuma limitação, visto que se tratava de uma sociedade regida pelo total não-intervencionismo. Tal princípio é uma das bases do Estado Social.

A liberdade, outro princípio que rege a família refere-se ao livre poder de escolha, realização e extinção da entidade familiar. No entanto, tal esbarra no respeito à dignidade dos componentes da família, de modo que não pode confundir-se com a ausência de limites, dando margem para os abusos que aconteciam na família patriarcal. A igualdade, por sua vez, determina a paridade hierárquica entre cônjuges e entre filhos, obviamente respeitando as diferenças entre os indivíduos, de modo que possam exercer os mesmos direitos.


3. A propriedade

A propriedade é o ponto crítico da questão, visto que há no texto constitucional dois vezes opostos para um único tema. No artigo 5º temos, ao mesmo tempo, a concepção do Estado liberal juntamente com a do Estado Social a respeito da propriedade. O inciso XXVII, por exemplo, ao dizer que é garantido o direito de propriedade, nos remete a pensar tal direito com absoluto, sem limites. Entretanto, no inciso XXIII quando expressa que a propriedade atenderá a sua função social, nos deparamos com o intervencionismo do Estado Social.

Porém, para que se possa alcançar a efetiva realização da função social da propriedade (tanto rural, quanto urbana), o legislador tratou de prever mecanismos de coerção como é o caso da desapropriação por interesse social e do imposto progressivo, na propriedade urbana. Caiu por terra na Constituição, o simples domínio do bem (ainda alimentado pelos códigos), dando espaço ao direito de habitação, competindo com o direito de propriedade, o qual deve ser compatível também com a preservação do meio ambiente.


4. O contrato

O contrato, tido pelo liberalismo como o modo de aquisição da propriedade, também sofreu expressivas mudanças na Constituição. Não bastou para o constituinte o fato de haver indivíduos autônomos e formalmente iguais guiados pela autonomia da vontade (como é a visão do Código). A relação contratual, assim como a propriedade, deve atender a sua função social, de modo que este instrumento não gere disparidades injustas, e considere a desigualdade material entre as partes.

Fruto da ordem econômica constitucional é o Código do Consumidor, o qual regula praticamente todos os contratos que englobam pessoas em seu cotidiano satisfazendo sua necessidades.

O princípio da equivalência material das prestações, um dos fundamentos constitucionais do contrato, prega o mantenimento da proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações expressos no contrato, estabelecendo o equilíbrio. Uma vez não verificados os preceitos constitucionais, o contrato em seu modelo tradicional torna-se rival do monopólio legislativo estatal, pois tem peso de lei entre as partes.


5. Reflexões conclusivas

Conclui-se o presente artigo atentando para a pessoa humana como sujeito de direitos e não como mero indivíduo possuidor de bens, visto que a Constituição mudou, refletindo a sociedade atual, gerando, conseqüentemente o dever de adequação de toda a legislação infraconstitucional. Do contrário, tais leis estarão em desacordo com a própria sociedade que regem, refletindo um grande contra senso.

A conciliação de direitos sociais e patrimoniais foi um desafio para o constituinte, devendo estender-se também ao Código Civil, diante da incompatibilidade de desprover as relações privadas do mínimo de intervenção estatal, no que tange à proteção da dignidade humana e da justiça social.

Sobre o(a) autor(a)
Carlos Rafael Macanho Dutra
Acadêmico de Direito da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, estagiário do escritório Lindenmeyer Advocacia e Associados S/S (www.lindenmeyer.adv.br), atuando na área do Direito do Trabalho.
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