Espaços públicos com nomes de pessoas vivas: o caso do Parque da Cidade de Feira de Santana

Espaços públicos com nomes de pessoas vivas: o caso do Parque da Cidade de Feira de Santana

Trata da inconstitucionalidade decorrente da denominação de espaço público com nome de pessoa viva, no município baiano de Feira de Santana.

Quem não tem direitos nem sabe que os tem por eles não luta”. (Cármen Lúcia Antunes Rocha)

Chegou aos meus ouvidos – na realidade, na minha caixa de e-mail – a notícia da realização de uma enquete no site de um deputado estadual baiano com a seguinte pergunta: “você acha que o Parque da Cidade deve continuar com o nome de Frei José Monteiro Sobrinho?”. Ao lado do questionário virtual está transcrita a matéria “Representação no MP questiona nome de frei no Parque da Cidade”, publicada no jornal Tribuna Feirense, de 24/02/2007, página 3, em que se baseia a pesquisa de opinião.

Quanto aos fatos, não há o que explicar para quem leu o noticiado ou de alguma forma teve conhecimento do ocorrido. Para aqueles que os desconhecem, aqui vai o resumo: conforme a reportagem acima, a Prefeitura Municipal de Feira de Santana, na Bahia, inaugurou, em 11/02/2007, o Parque da Cidade e o batizou com o nome de Frei José Monteiro Sobrinho. Porém, uma representação anônima dirigida ao Ministério Público (estadual, provavelmente), no dia 09/02/2007, pediu a abertura de inquérito civil e o ajuizamento de ação por ato de improbidade administrativa contra o prefeito, porque o artigo 21 da Constituição da Bahia proíbe nomear espaços públicos, de qualquer natureza, com o nome de pessoas vivas.

Além desse panorama, chamam a atenção as opiniões expostas pelo procurador do Município (legalmente, aplicador e fiscal da lei) e, naquela página da Internet, pelo parlamentar (por lei, sentinela e defensor da ordem jurídica) ao afirmarem que a homenagem ao frei não seria ilegal. O primeiro fundamenta-se numa lei municipal; o segundo, nos critérios de justiça e oportunidade, pois a homenagem ao religioso teria vindo em boa hora e atenderia ao sentimento de justiça em razão da sua luta pela preservação ambiental. De qualquer forma, o assunto possui nitidamente um viés jurídico a ser apreciado e esse viés, em caráter inicial, situa-se no campo da hierarquia das normas. Entenda-se por norma o comando, a ordem decorrente da legislação.

Como não se trata de aula de curso de graduação e numa abordagem bem simples e direta, levando em conta o caso em análise, é adequado dizer que as normas em questão se encontram assim hierarquizadas: a) no topo, a Constituição Federal de 1988 (CF). Nenhuma lei ou Constituição Estadual – nenhuma, frise-se bem – poderá lhe ser contrária. Portanto, a Constituição Federal é o alicerce e toda legislação que lhe seja anterior ou posterior deverá a ela se amoldar, sob pena de ser expulsa do sistema jurídico; b) em seguida, no que nos interessa mais de perto, está a Constituição Estadual (CE). Todos os Estados brasileiros estão juridicamente organizados sob a forma da correspondente Constituição (o Distrito Federal, como sabemos, não é tecnicamente um Estado e, por isso, rege-se por uma Lei Orgânica, tal qual os Municípios). Essa Constituição Estadual, por lógico, está hierarquicamente abaixo da Federal e a esta deve completa e total obediência; c) por último, na situação examinada, figura a lei municipal, que deverá ser elaborada sem fugir dos trilhos legais fixados nas Constituições Federal e Estadual. Conforme dito, a Lei Orgânica é para o Município o mesmo que a Constituição Estadual é para o Estado.

Com essa aligeirada explicação creio que o terreno esteja preparado para apresentação do seguinte raciocínio: a Constituição Federal cria a ordem jurídica brasileira, a Constituição Estadual organiza o Estado a partir da CF e nos exatos termos desta e a lei municipal trata daquilo que é de sua competência, respeitadas todas as determinações da CF e, por conseqüência, da CE. No Município, a lei maior (aquela que todas as outras leis devem respeitar) é a Lei Orgânica, que para não ser enxotada da ordem jurídica há de obedecer à Constituição Estadual e à Constituição Federal.

Assim, no âmbito do Município, as leis municipais devem ser elaboradas em conformidade com a Lei Orgânica que, por seu turno, deve observar a CE e a CF (promulgada a Constituição do Estado, caberá à Câmara Municipal, no prazo de seis meses, votar a Lei Orgânica respectiva, em dois turnos de discussão e votação, respeitado o disposto na Constituição Federal e na Constituição Estadual – artigo 11, parágrafo único, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). Já a Constituição Estadual tem como modelo a Constituição Federal, pois naquela não pode conter qualquer regra violadora desta.

Ao que tudo indica e de acordo com a reportagem do periódico feirense, a homenagem ao frei tem fortes feições inconstitucionais. O artigo 37 da Constituição Federal a proíbe [1], o artigo 21 da Constituição do Estado da Bahia literal e igualmente também o faz [2] e a lei municipal que autoriza a denominação de espaços públicos com o nome de pessoas vivas fere ambas. É dizer, essa exaltação pública é duplamente inconstitucional e isto nada tem a ver com a pessoa do frei, se lhe é ou não justa ou oportuna a láurea, mas, sim, tem a ver com a contraposição ao ordenamento jurídico brasileiro. Mais evidente do que essa inconstitucionalidade só a beleza das praias do paradisíaco e extenso litoral baiano.

A existência de eventual legislação municipal autorizando que sejam nomeados espaços públicos em alusão a pessoas vivas não é o suficiente para deixá-la de acordo com o sistema jurídico. Afinal, como visto, a lei municipal precisa obedecer integralmente às Constituições Estadual e Federal. Se a CE, na esteira do paradigma traçado pela CF e sem qualquer dubiedade textual, proíbe, veda essa prática, estamos diante de uma flagrante inconstitucionalidade [3]. Com a palavra (ou melhor, com as ações judiciais) o Ministério Público da Bahia. E, certamente, o Parquet não ficará mudo. Só resta saber o que o Judiciário dirá.



NOTAS

[1] É no caput do artigo 37 da CF que estão expressamente consagrados os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade, citados na representação anônima e reproduzidos na notícia veiculada no Tribuna Feirense.

[2] Informa o jornal da Princesa do Sertão: “O artigo 21 da Constituição Estadual diz que ‘fica vedada no território do Estado a utilização de nome, sobrenome ou cognome de pessoas vivas, nacionais ou estrangeiras, para denominar as cidades, localidades, artérias, logradouros, prédios e equipamentos públicos de qualquer natureza’”.

[3] Na mesma matéria (“Representação no MP questiona nome de frei no Parque da Cidade”, 24/02/2007, p. 3), o Tribuna Feirense noticiou que idênticas homenagens a pessoas vivas têm sido constantes em Feira de Santana e cita, como exemplo, o Centro de Educação Complementar Dom Silvério Albuquerque e o Hospital da Criança José Eduacy Lins.

Sobre o(a) autor(a)
Danilo Andreato
Professor Adjunto das Faculdades Santa Cruz (graduação e especialização). Professor de Direito Penal, Processo Penal e Leis Penais Especiais em cursos preparatórios para concurso. Mestre em Direito (PUC/PR). Especialista em...
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