Ações coletivas passivas no direito brasileiro

Ações coletivas passivas no direito brasileiro

Examina tema ainda pouco explorado pela doutrina, destacando os posicionamentos antagônicos hoje sustentados, os poucos precedentes jurisprudenciais existentes e a presença deste relevante tema em projetos de lei.

As presentes considerações têm por escopo examinar a sujeição de entidades de classe no pólo passivo, em nome de substituídos processuais. O exame será realizado à luz do ordenamento pátrio vigente e à luz do Código Modelo para Ibero-América.

Não se farão, por conseguinte, considerações acerca das origens do instituto, cabendo, por ora, apenas a remissão á autorizada doutrina que discorreu sobre o tema, que reconhece as chamadas “defendant class actions” como espécie do gênero ações coletivas e que também vislumbram a origem dessas ações no direito anglo-saxão e o desenvolvimento das mesmas no direito americano [1].

Inicialmente, cumpre notar se à luz do ordenamento vigente caberia aventar a legitimação passiva coletiva. A doutrina pátria, em sua posição majoritária, opõe-se ao cabimento da ação coletiva passiva, havendo poucos doutrinadores sustentando o cabimento [2].

Em uma breve síntese, os autores que rejeitam o cabimento da ação coletiva passiva sustentam a ausência de previsão legal para a hipótese, sobretudo em razão das previsões legais existentes fazerem referência a poderem ingressar. A exceção localizada a respeito encontrar-se-ia apenas na Lei n.º 8.069/90, que menciona a legitimidade apenas para a ação, sem tecer maiores detalhes.

Já a professora Ada Pellegrini, valendo-se do art. 5º, §2º da Lei 7.347/85, que dispõe ser “facultado ao Poder Público e a outras associações legitimadas nos termos deste artigo habilitar-se como litisconsortes de qualquer das partes”, entende existir, sim, a possibilidade legal dessa demanda. Pedro Lenza trilha caminho similar, mas enfatiza a impossibilidade de a coisa julgada se mostrar prejudicial aos interesses da coletividade, destacando, assim, a importância da coisa julgada secundum eventum littis.

O Professor Ronaldo Santos, além da experiência vivenciada na justiça do trabalho, destaca ainda a celebração da convenção coletiva de consumo [3], sujeita à execução como razão bastante para se reconhecer a capacidade de contrair direitos e obrigações em nome dos associados e de figurar, por conseguinte, no pólo passivo de demandas.

Outras nuanças que podem ser aventadas, factualmente, em favor da legitimação passiva são a propositura de ação rescisória contra provimento obtido por um ente representativo e o reconhecimento de que a coisa julgada pode se operar em desfavor da coletividade na hipótese de improcedência da ação, com efetiva e exauriente incursão no mérito.

Essa última constatação acaba por possuir especial importância na medida em que se permite reconhecer que o provimento judicial desfavorável á coletividade não apenas é compatível com a realidade do processo coletivo brasileiro, como é uma conseqüência lógica.

Não se mostra amadurecida, ainda, a discussão a respeito da ação declaratória incidental e da reconvenção. Sem prejuízo de reflexões posteriores, eventualmente contrárias à posição ora externada, entende-se que, a despeito da oposição majoritária da doutrina, é cabível, em tese, a adoção desses expedientes [4].

Tome-se, como hipótese, situação que pode surgir de convenção coletiva de consumo. Não se vê óbice em se argüir a nulidade da convenção por meio de declaração incidental de nulidade; da mesma forma, entende-se factível opor-se a uma pretensão coletiva fundada na convenção, alegando-se comportamento contraditório, abusivo ou incompatível por parte do ente associativo, podendo, eventualmente, exigir-se alguma medida em desfavor deste.

Em acréscimo a essas ponderações, anote-se a realização de levantamento de dados, oriundos de pesquisa de jurisprudência junto a diversos tribunais, aptos a permitir a conclusão de concluir que a ação coletiva passiva mostra-se viável quando a pretensão assume caráter transindividual, ou seja, quanto liga-se a interesses difusos e coletivos, mostrando-se inviável, contudo, se versar sobre interesses individuais homogêneos.

Essa distinção feita, ao que tudo indica, tem o condão de resguardar a possibilidade e a disponibilidade dos interesses individuais, que, como bem anotado, por Barbosa Moreira são acidentalmente coletivos, em razão do “impacto de massa”, que podem provocar [5].

De início, registre-se não ter sido encontrado precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal, hábeis a auxiliar no desate da questão.

De outro lado, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, localizou-se enunciado da Súmula daquela Corte em que, em demanda rescisória, diante da indivisibilidade do bem tutelado, reconheceu-se a legitimidade passiva do sindicato.

AÇÃO RESCISÓRIA. LITISCONSÓRCIO. NECESSÁRIO NO PÓLO PASSIVO E FACULTATIVO NO ATIVO. INEXISTENTE QUANTO AOS SUBSTITUÍDOS PELO SINDICATO. (conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 82 e 110 da SDI-II, Res. 137/05 – DJ 22.08.05)

I - O litisconsórcio, na ação rescisória, é necessário em relação ao pólo passivo da demanda, porque supõe uma comunidade de direitos ou de obrigações que não admite solução díspar para os litisconsortes, em face da indivisibilidade do objeto. Já em relação ao pólo ativo, o litisconsórcio é facultativo, uma vez que a aglutinação de autores se faz por conveniência, e não pela necessidade decorrente da natureza do litígio, pois não se pode condicionar o exercício do direito individual de um dos litigantes no processo originário à anuência dos demais para retomar a lide. (ex-OJ nº 82 - inserida em 13.03.02)

II - O Sindicato, substituto processual e autor da reclamação trabalhista, em cujos autos fora proferida a decisão rescindenda, possui legitimidade para figurar como réu na ação rescisória, sendo descabida a exigência de citação de todos os empregados substituídos, porquanto inexistente litisconsórcio passivo necessário. (ex-OJ nº 110 - DJ 29.04.03)”.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, não se obteve um entendimento tão eloqüente, mas, de passagem, colheu-se julgado que ampara o cabimento de demanda em face de sindicato, visando à anulação de convenção coletiva (interesse coletivo) dos sindicalizados:

PROCESSUAL. CONFLITO DE COMPETENCIA. CONVENÇÃO COLETIVA. I - SENDO CERTO QUE A PRETENSÃO DEDUZIDA VISA SUSPENDER OS EFEITOS DE CONVENÇÃO COLETIVA, PRECEDENDO AÇÃO DE ANULAÇÃO DA MESMA, TENDO COMO PARTES UMA EMPRESA AUTORA E, NO POLO PASSIVO, O SINDICATO PATRONAL DE SUA CATEGORIA E O SINDICATO DE SEUS EMPREGADOS, A COMPETENCIA E DA JUSTIÇA COMUM.

II - CONFLITO PROCEDENTE, PARA DECLARAR COMPETENTE O MM. JUIZO SUSCITADO”.

CC 1879 / GO, Ministro GERALDO SOBRAL, DJ 03.06.1991

Apenas como uma observação oportuna, é de se notar que, mormente em razão do advento da Emenda Constitucional n.º 45, o mérito do Conflito de Competência em questão mostra-se superado.

Especificamente para o escopo da presente análise, há como se extrair como axioma a viabilidade da substituição processual passiva nos dissídios coletivos.

No âmbito cível, qualquer interpretação deve ser resultante do complexo normativo produzido pelo Código de Defesa do Consumidor, pela Lei n.º 7.347/85 e pela Constituição Federal. Em ambos os diplomas, mesmo com a infeliz e inadequada referência constitucional à “representação”, quando a hipótese de atuação é, na verdade, de substituição processual, extrai-se a defesa dos interesses da coletividade sob os diversos prismas de interesses (difusos, coletivos e individuais homogêneos).

A significação de “defesa” é ampla, sendo aplicável tanto a tutela de interesses, ou, em outras palavras, obtenção de provimentos jurisdicionais favoráveis, como no exercício do contraditório, inibindo qualquer ameaça a direito dos substituídos.

Nesse passo, a defesa de interesses transindividuais mostra-se viável, o que, a contrario sensu, permite interpretação autorizativa de que os representantes podem figurar no pólo passivo de questões que versem sobre tais interesses.

A despeito do fato de a prestigiada professora admitir o reconhecimento da ação coletiva passiva, conforme acima assinalado, na exposição de motivos do Código Modelo de Processos para Ibero-América, a matéria é pouco amadurecida na doutrina e muito pouco empregada nas lides forenses r que a inserção da mesma seria uma efetiva inovação para os ordenamentos americanos [6]:

“O Capítulo VI introduz uma absoluta novidade para os ordenamentos de civil law: a ação coletiva passiva, ou seja a defendant class action do sistema norte-americano. Preconizada pela doutrina brasileira, objeto de tímidas tentativas na práxis, a ação coletiva passiva, conquanto mais rara, não pode ser ignorada num sistema de processos coletivos.

A ação, nesses casos, é proposta não pela classe, mas contra ela.

O Código exige que se trate de uma coletividade organizada de pessoas, ou que o grupo tenha representante adequado, e que o bem jurídico a ser tutelado seja transindividual e seja de relevância social.

A questão principal que se punha, nesses casos, era o do regime da coisa julgada: em obséquio ao princípio geral de que a sentença só pode favorecer os integrantes do grupo quando se trata de direitos ou interesses individuais homogêneos, o mesmo princípio devia ser mantido quando a classe figurasse no pólo passivo da demanda. Assim, quando se trata de bens jurídicos de natureza indivisível (interesses difusos), o regime da coisa julgada é erga omnes, simetricamente ao que ocorre quando o grupo litiga no pólo ativo (mas sem o temperamento da improcedência por insuficiência de provas, inadequado quando a classe se coloca no pólo passivo); mas, quando se trata de bens jurídicos de natureza divisível (interesses ou direitos individuais homogêneos), a coisa julgada positiva não vinculará os membros do grupo, categoria ou classe, que poderão mover ações próprias ou discutir a sentença no processo de execução, para afastar a eficácia da sentença em sua esfera jurídica individual. Mutatis mutandis, é o mesmo tratamento da coisa julgada secundum eventum litis para os interesses ou direitos individuais homogêneos, quando a classe litiga no pólo ativo. No entanto, tratando-se de ação movida contra o sindicato, a coisa julgada, mesmo positiva, abrangerá sem exceções os membros da categoria, dada a posição constitucional que em muitos países o sindicato ocupa e sua representatividade adequada, mais sólida do que a das associações”.

Na mesma trilha e minorando a amplitude hermenêutica, aqui defendida, convém citar outro Anteprojeto de Código, agora, o Brasileiro de Processos Coletivos, idealizado, inicialmente, pela antecitada Professora Ada Pellegrini Grinover.

No referido texto (obtido junto ao link da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - www.direitouerj.org.br/2005/download/outros/cbpc.doc, baixado em 23 de maio de 2006), resta consignada, de forma expressa, o que se denominou “ação coletiva passiva”, verbis:

PARTE III – DA AÇÃO COLETIVA PASSIVA 

Art. 42 Ação contra o grupo, categoria ou classe Qualquer espécie de ação pode ser proposta contra uma coletividade organizada ou que tenha representante adequado, nos termos do parágrafo 1o. do artigo 8o, e desde que o bem jurídico a ser tutelado seja transindividual (art. 2o.) e se revista de interesse social. 

Art. 43 Coisa julgada passiva A coisa julgada atuará erga omnes, vinculando os membros do grupo, categoria ou classe. 

Art. 44 Aplicação complementar à ação coletiva passiva Aplica-se complementarmente à ação coletiva passiva o disposto neste código quanto à ação coletiva ativa, no que não for incompatível”.

Depreende-se, outrossim, o interesse em assegurar, na locução empregada por Marinoni, a “tutela jurisdicional efetiva” (Técnica Processual e Tutela dos Direitos, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2004, p. 220), condizente, no caso, com a uniformidade de provimento relativo ao direito transindividual.

Por outro lado, no que toca os interesses disponíveis, mais uma vez, cumpre observar, não parecer ser essa a melhor leitura a ser dada. Primeiramente, porque ao uso da garantia constitucional, na consagrada pela doutrina constitucionalista e reverberada por Marinoni (op. cit., p. 225), deve ser emprestada a “máxima efetividade”, mostrando-se incongruente estender a ampliação da sujeição do indivíduo, relativamente a um interesse seu, a um processo que venha, ao menos de forma potencial, a afetar o seu patrimônio jurídico.

Para exemplificar, revela-se viável, por exemplo, a tentativa, por um signatário de um termo de ajustamento de conduta, ao menos em tese, de anular o referido documento, que pode ser de interesse da coletividade. De outro lado, mostrar-se-ia incongruente pretender demandar contra um sindicato de professores para que inibir os representados de pleitearem vantagens pessoais, tais como anuênios, licenças-prêmio etc.

Respaldando esse raciocínio, faz-se remissão ainda ao já citados anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos, destacando que os mesmos não prevêem essa tutela contra interesses individuais homogêneos.

Em conclusão, entende-se que, no pólo passivo, aos entes associativos, substitutos processuais, é dada apenas a defesa de interesses metaindividuais, não se mostrando viável a tutela de interesses individuais homogêneos, sendo essa constatação, por ora, advinda de uma interpretação sistemática e extensiva do ordenamento vigente e francamente admitida pelas inovadoras propostas legislativas acerca dos processos coletivos.


 
[1] Por todos, veja-se Ronaldo Lima dos Santos“DEFENDANT CL CLAS AS ASS S ACTIONS” - O GRUPO COMO LEGITIMADO P PAS AS ASSIVO SIVO NO DIREITO NORTE-AMERICANO E NO BRASIL, in Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, Brasília, a. III – n. 10, p. 139-154 – jan./mar. 2004.


[2] Santos, op. cit. pp. 144-146, além de externar seu entendimento no sentido do cabimento da ação, lista os demais posicionamentos encontrados na doutrina brasileira, observando que os Professores Pedro Lenza e Ada Pellegrini Grinover mostram-se favoráveis à tese, podendo ser depreendido esse entendimento também na obra do Professor Rodolfo Camargo Mancuso. Contra a tese, são citados Pedro Dinamarco, Hugo Mazzili, Arruda Alvim, Ricardo de Barros Leonel e Humberto Theodoro Júnior.


[3] A respeito do tema, preconiza o Código de Defesa do Consumidor:

Da Convenção Coletiva de Consumo

Art. 107. As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo.

§ 1° A convenção tornar-se-á obrigatória a partir do registro do instrumento no cartório de títulos e documentos.

§ 2° A convenção somente obrigará os filiados às entidades signatárias.

§ 3° Não se exime de cumprir a convenção o fornecedor que se desligar da entidade em data posterior ao registro do instrumento.


[4] Contra a reconvenção se mostra Hugo Mazzilli, mas, justamente, por adotar a premissa de descaber a ação coletiva passiva. MAZZILI, Hugo Nigro. Tutela dos Interesses Difusos e Coletivos, São Paulo, Ed. Damásio de Jesus, 2004


[5] Novos Rumos do Processo Civil Brasileiro, in temas de Direito Processual Civil, sexta série. São Paulo, 1997, p. 66. No mesmo sentido. SOUZA, Antônio Fernando Barros e Silva de. O Ministério Público como garante dos valores constitucionais, in In 15 anos de constituição : história e vicissitudes, Belo Horizonte : Del Rey, 2004, p. 293-302; MAZZILLI, op. cit.. p. 57.


[6] CÓDIGO MODELO DE PROCESSOS COLETIVOS PARA IBERO-AMÉRICA - EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS, http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/default.asp?action=doutrina&iddoutrina=2077

Sobre o(a) autor(a)
Marcelo Ribeiro de Oliveira
Mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília - UnB. Professor Universitário. Curador de Sentenças Estrangeiras no Superior Tribunal de Justiça. Advogado. Autor do Livro "Prisão Civil na Alienação Fiduciária em...
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