A inversão da posse

A inversão da posse

Sendo entendida a posse de uma maneira negativa, como a ignorância dos vícios que impedem a aquisição da coisa, a boa-fé será afastada em circunstâncias de incerteza relevante.

1. Introdução

Para tornarmos possível responder à indagação proposta, impõe-se o estudo do princípio da boa –fé, conceituando-o diferenciando-o da má-fé para só então podermos delinear o exato momento processual em que ocorrerá o fenômeno da inversão do título da posse de boa-fé em má-fé.

 
2. Desenvolvimento

A boa-fé faz-se perceptível em vários ramos do Direito privado e algumas vezes no Direito Público. Em seu conceito evidencia-se, portanto, a noção de fé. A confirmação de sua ocorrência dependerá do juiz quando da análise de um caso concreto, por meio de valoração, já que não caberá ao ordenamento o estabelecimento de seu conceito.

Cumpre, preencher, as lacunas deixadas pelo ordenamento, não só com a valoração pessoal, mas também, utilizando-nos de valorações sociais pré-existentes, bem como da tradição moral consolidada.

 
2.1 O Princípio da Boa-fé aplicado à posse

Critérios há que nos possibilite a aferição de boa-fé. O negativo e o positivo. O primeiro considera a ignorância de impedimento como fundamental para a caracterização da boa-fé, e o segundo aquele que exige a certeza do não impedimento, a convicção, no caso, da posse.

Observa-se a boa-fé relacionada aos direitos reais como sendo a que se chama boa-fé crença. Fulcra-se na crença errada de que é legítima a sua posse. Aferimo-la, pois, por meio de informações objetivas que a demonstrem. Não é suficiente, portanto, que o indivíduo opere de boa-fé, é imprescindível que o seu comportamento se coadune com os seus procedimentos. Neste sentido, socorre-nos Caio Mário da Silva Pereira quando assevera: “em virtude do postulado da boa-fé (...) é bastante que se prove a diligência ou cautelas normais...” De outro modo, certificada a culpa grave, impossível que a boa-fé produza seus efeitos.

O dispositivo respeita a presunção de boa-fé em favor do que possui com base em título justo. De acordo com esta regra, classifica-se a boa-fé em real e presumida, sendo a presumida aquela da qual ora se trata. Por título entende-se causa eficiente da posse, sem que se lhe atribua conotação material. Assim, justo é o título apto, para levar ao resultado.

Evidencia-se a presunção júris tantun operando como regra de divisão do ônus da prova e não como regra de inversão do mesmo ônus como comumente se costuma afirmar.

Cumpre ressaltar, a possibilidade de aceitação de título putativo para estabelecimento da presunção. Ocorre posse em título putativo, quando o possuidor crê na existência de título que na verdade, não existe. É o caso, por exemplo, do testamento válido revogado, cuja revogação é desconhecida pelo titular do direito.

No direito pátrio, entretanto, não existe regra que o aceite. A doutrina, no entanto, o aceita, comparando-o a um título existente, aplicando-se-lhe a teoria da aparência. Alguns doutrinadores, de outra parte, recusam-se a consolidar tal entendimento visto que a lei vem a exigir um elemento subjetivo e um elemento objetivo para caracterizar-se a presunção. Assim, a admissão do título putativo viria a subverter a este sistema. E se tornariam exclusivamente decisivas as condições subjetivas. A corroborar com esta tese está a doutrina portuguesa, uma vez que, em seu artigo 1259 II CPP, estabelece-se que o título não se presume. No Brasil, em face da inexistência de tal dispositivo somos obrigados a aceitar o título putativo. Se, a existência do título em face da norma, visa nada mais do que instituir a presunção da boa-fé, a tese do título putativo que, acolhida à teoria da aparência, nada visa senão proteger a boa-fé, não somente se coadunando com o disposto, como o confirma, pois o título, quando putativo, revela a boa-fé pelo mesmo fato.

O Novo Código Civil mantém, a mesma orientação no art. 1201 § único, aqui reproduzido verbis:

“É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa (...)”.

(...) § único O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite a presunção”.

 
2.2. Inversão do título da posse

Previam o artigo 490 e seu parágrafo único do Código Civil de 1916 reproduzido verbis que:

“É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa, ou do direito possuído (...)”.


(...) § ú: O possuidor com justo título têm por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção ”.

O CC/16, portanto, cuidava da cessação do caráter de boa-fé. De formas diferentes a doutrina vacila em aceitar e a jurisprudência cristaliza o entendimento de aceitar o momento em que cessa a boa-fé. Clóvis Beviláqua situa na contestação da lide o ponto decisivo. Coaduna-se com ele Washington de Barros Monteiro, que, para isto, cita, vasta jurisprudência. Muitos julgados, contrario senso, estabelecem, igualmente, tal momento na citação, ao invés da contestação, para a ação proposta por quem se julga possuidor.

Com efeito, não há um momento pré-definido, pois, mesmo após a citação, a contestação ou até a sentença, pode o possuidor estar convicto de sua boa-fé.

Não há como estabelecer um momento pré-determinado, dependendo a solução da real apreciação de um caso concreto.

O estabelecimento de um momento para a cessação da boa-fé é de tal forma relevante para apurar-se a quem pertencem os frutos da coisa.

A perda do caráter da posse de boa-fé encontra-se disposta no art. 1202 do Novo Código Civil, aqui, reproduzido verbis:

“A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente”.

Remonta à origem de tal dispositivo ao direito romano. A inversão do título não vem a dar-se pela simples alteração na intenção do possuidor, porém, pela inversão do título com fulcro jurídico.

Vê-se, portanto, que se cria uma presunção iuris tantun da manutenção do caráter da posse. A respeito de tal presunção é válido o que foi dito no parágrafo único do art. 490 do CC/16.

Sob o enfoque romano bastava a boa-fé inicial. Tal questão é, no entanto, altamente relevante na prática, por exemplo, em se tratando de caso de usucapião, pois, só diante do quadro concreto, é que se poderá indagar se houve ou não mudança no caráter da posse, para se depreender ser possível ou não usucapir.

No que tange à boa-fé, importa saber qual tipo de usucapião será cabível alegar, pois, independentemente da boa-fé, é possível usucapir, na modalidade extraordinária.

Depreende-se, portanto, não haver um critério pré-determinado para aferir-se mudança de caráter da posse, devendo-se averiguar se houve o rompimento da relação jurídica da qual deriva a posse, tomando-se também em conta o caso concreto. Assim, à luz das circunstâncias específicas de cada caso concreto, cuidadosamente, individualizadas, é que se permite resolver cada questão, admitindo-se, no entanto, que a presunção é a da manutenção do caráter da posse.

Veio a coadunar-se com este entendimento o diploma civil atual em seu artigo 1203, aqui reproduzido verbis:

“Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”.

 
3. Conclusão

Eis porquê, do conceito de boa-fé dependerá, ao ser aplicado à posse, de um entendimento positivo ou negativo em relação à mesma.

Há os que defendem o modo positivo da boa-fé tendo a certeza de que a coisa possuída lhes pertence. Do surgimento de qualquer incerteza, no entanto, começa-se a ser abalado o conceito de boa-fé. A contrario senso, sendo entendida a posse de uma maneira negativa, como a ignorância dos vícios que impedem a aquisição da coisa, a boa-fé será afastada em circunstâncias de incerteza relevante.

Trata-se, contudo, de questão importante à aplicação do princípio da boa-fé à posse, na medida em que ao possuidor de boa-fé é dispensado lapso temporal inferior para que possa ser investido proprietário da coisa possuída, por meio do usucapião.O mesmo, entretanto, não ocorre com o possuidor de má-fé, que, como forma de sanção legal, deve se submeter a lapso temporal superior para investir-se proprietário da coisa possuída pelo usucapião.

4. Referências Bibliográficas

SOILBELMAN, Leib. Enciclopédia do Advogado. Centro Editorial da Universidade Estácio de Sá.

REALE, Miguel. Novo Código Civil Brasileiro (lei 10.406 de 01/2002). Estudo Comparativo com o Código Civil de 1916. RT. São Paulo. 2002.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. Ed. Forense, 2001.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil Ed. Forense. Vol IV , 2001.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil (Direito das Coisas). Ed. Atlas, vol IV 2001.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Ed. Saraiva, vol IV, 2000.

FIÚZA, César. Direito Civil – Curso Completo. Ed. Del Rey, 2001.

Sobre o(a) autor(a)
Lílian Ramos Batalha
Lílian Ramos Batalha. Advogada. Pós-Graduada em Direito Imobiliário. Tabeliã no Estado de Minas Gerais, autora da obra jurídica intitulada Assédio Moral em face do servidor público. Obra esgotada. A venda por download no site...
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