Da natureza jurídica do instituto da retrocessão

Da natureza jurídica do instituto da retrocessão

Destacando a existência de três correntes acerca do tema e a tendência de mudança de entendimento dos Tribunais Superiores.

1. DO DIREITO DE PROPRIEDADE

Celso Ribeiro Bastos, em sua obra entitulada Dicionário de Direito Constitucional, conceitua propriedade como sendo “um direito subjetivo, consistente em assegurar a uma pessoa o monopólio da exploração de um bem e de fazer valer essa faculdade contra todos os que eventualmente queiram a ela se opor [...]. Nos Estados de doutrina individualista, o direito de propriedade erige-se num dos direitos fundamentais do homem.” [1].

Ocorre que o artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, condiciona o referido direito de propriedade ao cumprimento da função social, que, conforme explicitado no próprio texto constitucional, mais precisamente no artigo 182, § 3º, decorre do atendimento das exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

Em virtude da relativização do direito de propriedade, por meio da exigência do cumprimento da função social, impõe-se a utilização de mecanismos de interpretação, dentre os quais pode-se citar o princípio da concordância prática ou da harmonização [2], citado por J.J. Gomes Canotilho, em face do aparente conflito de normas constitucionais.

Assim sendo, por trata-se de direito fundamental do homem, quaisquer restrições ao direito de propriedade só poderão ser levados em consideração quando decorrentes da própria Constituição, tal como é o caso da intervenção do Estado por meio do instituto da desapropriação, fundada nos Princípios da Supremacia do Interesse Público, bem como da Função Social da Propriedade.

Não obstante isso, observe-se que o novo Código Civil [3], após repetir norma que confere ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, ressaltou, em consonância com o disposto no texto constitucional, o caráter social da propriedade, disciplina que “o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. Restou, portanto, caracterizada a função social da propriedade.

Neste sentido, traz-se à colação trecho de palestra proferida pela professora Giselda Hironaka, em Brasília, logo após a entrada em vigor do novo Código Civil, litteris:

Quanto à propriedade, outro dos três mais significativos pilares estruturais do Direito Civil – ao lado da família e do contrato – não parece restar mais dúvida, na atualidade, a respeito de que ela não é uma função social, mas que – isso sim – tem uma função social que lhe é inerente, significando que se encontrará o proprietário obrigado a dar uma determinada destinação social aos seus bens, concorrendo, assim, para a harmonização do uso da propriedade privada ao interesse social, mas sem o exagero da coletivização dos bens, modus próprio de outro regime ou sistema político-econômico, de natureza socialista.” [4]


2. CONSIDERAÇÕES ACERCA DA DESAPROPRIAÇÃO

Conforme orientação do mestre José dos Santos Carvalho Filho [5], a intervenção do Estado na propriedade pode dar-se de duas formas, quais sejam, a intervenção restritiva, que corresponde àquela em que o “Estado impõe restrições e condicionamentos ao uso da propriedade, sem, no entanto, retirá-la de seu dono”, e, ainda, intervenção supressiva, em que “o Estado transfere coercitivamente para si a propriedade de terceiro, em virtude de algum interesse público previsto em lei. O efeito, pois, dessa forma interventiva é a própria supressão da propriedade das mãos de seu antigo titular”.

A desapropriação, modalidade de intervenção supressiva, pode ser definida como “procedimento administrativo pelo qual o Poder Público ou seus delegados, mediante prévia declaração de necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, impõe ao proprietário a perda de um bem, substituindo-o em seu patrimônio por justa indenização” [6].

No tocante ao procedimento adotado pelo Estado quando da desapropriação, pode-se verificar a existência de duas fases, quais sejam a declaratória e a executiva. Na declaratória o Poder Pública apenas declara a utilidade pública ou o interesse social do bem para fins de desapropriação. Já na fase executiva, o Poder Público toma todas as medidas necessárias à efetivação e promoção da desapropriação em si.

 
3. DA RETROCESSÃO E SUA NATUREZA JURÍDICA

No que tange à definição de retrocessão, convém ressaltar lições exaradas pelo mestre Celso Antônio Bandeira de Mello [7], senão vejamos:

“Efetivada uma desapropriação, o Poder Público deve aplicar o bem, por tal modo adquirido, à finalidade pública que suscitou o desencadeamento de sua força expropriatória. Não o fazendo, terá o ocorrido o que se denomina “tredestinação” [...]. Se o expropriante deixa de lhe atribuir uma finalidade pública, evidentemente a desapropriação terá se revelado sem razão de existir. Daí reconhecer-se ao expropriado o direito a uma satisfação jurídica pelo fato. É esta circunstância que nos coloca diante do instituto da retrocessão. Retrocessão, em sentido técnico próprio, é um direito real, o do ex-proprietário de reaver o bem expropriado, mas não preposto a finalidade pública.

Eurico Sodré, ao estabelecer a origem histórica da Retrocessão, afirma que “O instituto da retrocessão apareceu em nosso Direito Positivo, em uma forma embrionária, no art. 5º da Lei n. 57, de 1836, quando deu ao proprietário recurso ordinário para a Assembléia Provincial, se pretendesse a restituição da propriedade” [8].

Independentemente da origem histórica do referido instituto, impõe-se destacar as normas que, desde a entrada em vigor do Código Civil de 1916, têm disciplinado a retrocessão. Como primeiro diploma legal a tratar do assunto, desde então, o Código Civil de 1916, em seu artigo 1.150, expressamente legitimou o expropriado a requerer o exercício de preferência, ao que se convencionou entitular de direito de preempção ou preferência.

A partir de então, e em razão da amplitude de diplomas legais que disciplinam a matéria, a doutrina vem travando discussão acerca da natureza jurídica da retrocessão, haja vista o referido Código ter conferido ao expropriado um direito de natureza pessoal, portanto, resolúvel em perdas e danos, em caso de improcedência do pedido, senão vejamos alguns trechos dos artigos 1.150 e, a seguir, 1.156:

“Art. 1.150. A União, o Estado, ou o Município oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino para que se desapropriou.

[...]

Art. 1.156. Responderá por perdas e danos o comprador, se ao vendedor não der ciência do preço e das vantagens, que oferecem pela coisa.”

Posteriormente, importante destacar o disposto no artigo 35, do Decreto-lei 3.365, de 1941, que dispõe sobre desapropriação, “Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reinvindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos”. Tal diploma legal adotou posição semelhante àquela calcada no Código Civil de 1916.

Celso Antônio Bandeira de Mello, ao referir-se à divergência existente acerca do instituto, destaca os fundamentos existentes para adoção, pela doutrina, da corrente que confere natureza real ao referido instituto, senão vejamos:

“Os que propugnaram pela existência do direito real de reaver o bem sempre se esforçam diretamente no texto constitucional. Hoje, a base para tanto reside notadamente no art. 5º, XXIV. É que o nele estatuído, tal como as disposições do passado (mesmo variando suas redações ao longo do tempo), configura o direito de propriedade como direito básico, que só deve ceder à demissão compulsória para a realização de uma finalidade pública. [...] Parece-nos, em sintonia com tais inobjetáveis argumentos, que não se pode negar ao ex-proprietário o direito de reaver o bem.” [9]

Ainda, na mesma obra, o referido mestre, citando Sérgio Ferraz, colaciona diversos doutrinadores, subdividindo-os nas duas correntes acima citadas. A primeira, que considera a retrocessão ensejadora de perdas e danos (direito pessoal), é capitaneada, a título de exemplo, por Alfredo de Almeida Paiva, Caio Mário da Silva Pereira, Clóvis Beviláqua, José Carlos Barbosa Moreira, José Cretella Júnior, José Emygdio de Oliveira, Orlando Gomes, Sílvio Rodrigues e Themístocles Cavalcanti. Em sentido contrário, reconhecendo a natureza real do referido instituto, merecem citação Agostinho Alvim, Eurico Sodré, Miguel Seabra Fagundes, Pontes de Miranda, entre outros. [10]

Ainda neste tocante, deve-se observar a existência de vasta jurisprudência [11] acerca da matéria, conferindo natureza pessoal à retrocessão. Carvalho Filho, adotando tal corrente, assevera que “essa doutrina entende que o instituto da retrocessão não existe no ordenamento jurídico; o que existe é o direito pessoal do expropriado de postular indenização. Significa que, mesmo havendo desistência da desapropriação e até mesmo alienado o bem a terceiro, só caberia ao ex-proprietário o direito indenizatório, mas não o de reaver o bem” [12]. 

Ocorre que, embora o entendimento majoritário fosse o de que a retrocessão tinha natureza jurídica de direito pessoal, o Supremo Tribunal Federal veio a reverter seu próprio entendimento, passando a conferir ao instituto caráter real, capaz de ensejar ao expropriado o direito de reaver o bem.[13] No mesmo sentido, destaque-se acórdão prolatado, recentemente, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. [14]

Convém destacar, por fim, a existência de terceira corrente, intermediária, introduzida por Di Pietro, que, embora seja objeto de crítica pela doutrina, confere, ao referido instituto, natureza jurídica mista, portanto real e pessoal, senão vejamos suas hipóteses de aplicação:

“Em princípio, a retrocessão era tratada como um direito real, já que o artigo 1.159 do anterior Código Civil mandava que o expropriante oferecesse de volta o imóvel; podia ocorrer, no entanto, que a devolução do imóvel tivesse se tornado problemática, em decorrência de sua transferência a terceiros, de alterações nele introduzidas, de sua deterioração ou perda, da realização de benfeitorias; nesse caso, podia o ex-proprietário pleitear indenização, que corresponderia ao mesmo preço da desapropriação [...].” [15]

Por fim, faz-se necessário ressaltar introdução advinda do novo Código Civil, mais precisamente, no artigo 519, nos seguintes termos: “Art. 519. Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa”.

O Código Civil de 2002, ao menos aparentemente, conferiu ao instituto da retrocessão a natureza jurídica de direito pessoal, corroborando disposição legal anteriormente colacionada ao Código Civil de 1916. Ao que tudo indica, a tendência é de que a jurisprudência e a doutrina, em casos semelhantes, voltem a adotar tal posicionamento, tendo em vista a impossibilidade, transcrita pela Lei, do Poder Público oferecer o imóvel ao desapropriado, assegurando-lhe, apenas, direito de preferência ao ex-proprietário, pelo preço atual da coisa.

 
4. CONCLUSÃO

Assim sendo, face à possibilidade de desapropriação, pelo Poder Público, de propriedades particulares, por razões de violação à função social da propriedade, e em obediência ao pila principiológico da Supremacia do Interesse Público, destacou-se divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da natureza jurídica do instituto da retrocessão, que conferem três correntes, quais sejam, de direito real, de direito pessoal ou mista, sendo a última capitaneada, minoritariamente, por Di Pietro.

Não obstante, buscou-se ressaltar que não há uma corrente predominante sobre o referido instituto, em que pese uma forte tendência à adoção de entendimento que confere à retrocessão natureza jurídica de direito pessoal. Convém destacar que as últimas decisões do Supremo Tribunal Federal datam de períodos anteriores à 1983, razão pela qual, face à entrada em vigor do novo Código Civil, em 2002, entende-se que tal entendimento é passível de reversão, pelo Superior Tribunal de Justiça, que, ainda, não detém uma posição concreta acerca do tema.


 

[1] BASTOS, Celso Ribeiro. Dicionário de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 1994, p. 169.


[2]“O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens.” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1150)


[3]Artigo 1.228, § 1º.


[4]Seminário Novo Código Civil Brasileiro – o que muda na vida do cidadão. Realizado na Câmara dos Deputados, pela Ouvidoria Parlamentar, Procuradoria Parlamentar e Terceira Secretaria, no dia 5 de novembro de 2002, p. 44.


[5]CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 12ª edição. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Júris, 2005, p. 694.


[6]DI PIETRO, Maria Sílvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª edição. São Paulo: Editora Atlas, 2004, p.153.


[7]BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19ª edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2005, p. 825.


[8]Apud BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19 edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2005, p. 826.


[9]Ibidem, p. 828.


[10]Ibidem, p. 827.


[11] ]RE 18.711; RE 20.767; RE 21.080; RE 24.190; RE 30.345; RE 39.081; RE 47.259; RE 52.113; RE 57.315; RE 80.845, Resp 73.907


[12]Ibidem, p. 797.


[13]ERE 104.591-4; RE 104.591; RE 81.515; RE 87.559.


[14]REsp nº 570.483


[15] Ibidem, p. 180.

Sobre o(a) autor(a)
Luciana Marques Jobim
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