Crise na execução penal III - Da assistência jurídica e educacional

Crise na execução penal III - Da assistência jurídica e educacional

Há um imenso distanciamento entre o ideal normativo e a realidade prática na execução penal.

1. Da assistência jurídica

Nos precisos termos do artigo 15 da Lei de Execução Penal, a assistência jurídica é destinada aos presos e aos internados sem recursos financeiros para constituir advogado, sendo certo que encontramos regras que se compatibilizam com tal previsão em outros diplomas legais, tais como no art. 5º, inc. LXXIV, e 134, da CF; art. 5º, § 5º, da Lei n.º 1.060/50; Lei Complementar 80/94; art. 41, inc. IX, da LEP; Princípios Básicos sobre a Função dos Advogados (Onu; adotado no 8º Congresso realizado em Hawana, Cuba, de 27 de agosto a 07 de setembro de 1990).

A teor do disposto no artigo 41, inciso IX, da Lei de Execução Penal constitui direito do preso a entrevista pessoal e reservada com o advogado, garantia também resguardada em Diplomas como as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil - Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94) [1], e como o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão - Resolução n.º 43/173 da Assembléia Geral das Nações Unidas - 76ª Sessão Plenária, de 09 de dezembro de 1988. [2]

As unidades da Federação deverão ter serviços de assistência jurídica nos estabelecimentos penais, como diz o art. 16 da Lei de Execução Penal.

Conforme o art. 44, caput, e § 2º, das Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil [3], todo preso tem direito a ser assistido por advogado, e ao preso pobre o Estado deverá proporcionar assistência gratuita e permanente.

O Estado de São Paulo tem convênio firmado por intermédio da Procuradoria Geral do Estado, com a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, para prestação de assistência judiciária aos legalmente necessitados, sem ônus financeiro direto aos mesmos.


1.2. Da realidade prática

Não obstante todo o aparato legal posto em resguardo aos direitos do preso, e a incidência do princípio do contraditório também em sede de execução penal, não raras vezes nos deparamos com execuções, nas mais diversas comarcas, correndo praticamente à revelia da defesa. Impulsionada pelo Juízo e fiscalizada pelo Ministério Público, que no mais das vezes também a impulsiona, a atuação defensória, como regra, é quase inexistente.

Impressiona, mas é importante consignar, que em mais de uma década de exercício das atividades de Ministério Público, como Promotor de Justiça com atribuições junto a Execução Penal, não tive oportunidade de me deparar, no exercício das funções, com mais do que 05 (cinco) agravos em execução, o que por si só demonstra que algo não vai bem na execução, no que tange à intensidade da atuação defensória.

Daí, duas graves conclusões decorrem: a primeira a indicar que existem muitas execuções penais tramitando à revelia da defesa; a segunda a demonstrar que, mesmo com a atuação defensória, muitas vezes não são discutidas, a fundo, questões envolvendo relevantes indagações e conseqüências nos destinos da execução e na vida do encarcerado.

Todas as posições jurisprudenciais e doutrinárias, que não são poucas, indicamos em nosso livro intitulado Lei de Execução Penal Anotada [4], como fonte de pesquisa que atende aos interesses do Juízo, do Ministério Público e da Defesa, valorizando a discussão e o debate em torno aos relevantes temas.


2. Da assistência educacional

Conforme estabelece o artigo 205 da Constituição Federal, "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho", e o art. 208, § 1º, da Carta Magna determina que o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

Em consonância com os comandos constitucionais, a Lei de Execução Penal assegura ao preso o acesso à educação, dispondo seu artigo 17 que a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado.

Tais dispositivos estão em harmonia com as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Reclusos, adotadas em 31 de agosto de 1955, pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes; com as Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil - Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94), e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, estando expresso nesta que [5]: "Todo homem tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito" [6], e que: "A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações, e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz". [7]

De se ressaltar, ainda, que as previsões também se coadunam com o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão - Resolução n.º 43/173, da Assembléia Geral das Nações Unidas - 76ª Sessão Plenária, de 09 de dezembro de 1988 [8], e com os Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos, ditados pela Assembléia Geral das Nações Unidas, visando a humanização da justiça penal e a proteção dos direitos do homem. [9]

A assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso, visando sempre seu preparo para a vida ordeira; seu retorno à sociedade com melhores chances de manter-se afastado do mundo do crime, voltado para a vida escorreita; baseado em princípios morais e éticos alicerçados nos conhecimentos até então distantes.

Aliás, como observam Alexandre de Moraes e Smanio, "não é possível falar em recuperação sem mencionar a possibilidade de o preso educar-se tanto por meio de instrução escolar quanto pela formação profissional. A LEP prevê a obrigatoriedade do ensino de 1º grau a todos os presos, integrado ao ensino estatal. Dessa forma, o diploma terá ampla validade inclusive fora da prisão". [10]

A regra do artigo 17 da Lei de Execução Penal vem complementada pelas disposições do art. 18, segundo o qual o ensino de primeiro grau será obrigatório, integrando-se no sistema escolar da unidade federativa, que também encontra suporte nas Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94), cujo art. 40 dispõe que a instrução primária será obrigatoriamente ofertada a todos os presos que não a possuam, sendo que a teor do disposto em seu parágrafo único, cursos de alfabetização serão obrigatórios e compulsórios para os analfabetos.

O artigo 19 determina que o ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico, dispondo o parágrafo único que a mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição. [11]

As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados. [12]

Deverá ser permitido ao preso participar de curso por correspondência, rádio ou televisão, sem prejuízo da disciplina e da segurança do estabelecimento. [13]

Em atendimento às condições locais, dotar-se-á cada estabelecimento de uma biblioteca, para uso de todas as categorias de reclusos, provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos. [14]

Para se atingir o desiderato, os estabelecimentos prisionais deverão contar com biblioteca organizada com livros de conteúdo informativo, educativo e recreativo, adequados à formação cultural, profissional e espiritual do preso. [15]

Na certeira visão de Jason Albergaria, "a instrução tem por objetivo formar a pessoa humana do recluso, segundo sua própria vocação, sobretudo, para reincorporar-se na comunidade humana e dar sua contribuição na realização do bem comum". [16]


2.1. Da realidade prática

Nem é preciso dizer muito.

Todos sabemos o que ocorre na realidade. Estabelecimentos prisionais em número reduzido, que não atende à demanda. Celas superlotadas e espaços físicos exíguos até mesmo para outras necessidades básicas e muitas vezes fisiológicas. Acomodações, em geral, precárias, mercê da crescente criminalidade, cujos vários fatores já apontamos em outras ocasiões, só superada pelo descaso do Poder Executivo na seara de que cuidamos.


3. Conclusão

Que o preso tem direito ao aparato jurídico defensório é inegável. A realidade prática, entretanto, anda na paralela das regras asseguradoras.

Cultura? Educação? Preparo intelectual? Estímulos educacionais inibidores da criminalidade? Readaptação para a vida em sociedade? Etc, etc, etc?

O resultado de tudo isso nós conhecemos muito bem, e já não é só pelos meios de comunicação desde muito tempo.

Vivemos a realidade do crime a todo instante. Vivemos em função dele, não para praticá-lo, mas para imaginarmos sua prática e assim nos defendermos.

Pensamos no crime quando buscamos adquirir um veículo; fazer um seguro; adquirirmos uma residência, uma jóia; vestirmos uma roupa, um calçado; sairmos de férias; quando saímos a um simples passeio ou em atividades rotineiras de trabalho; quando nossos entes queridos se ausentam por pequenos instantes. Pensamos no crime, enfim, diuturnamente.

Somos reféns do crime e da insegurança, gigantes fomentados a todo instante pelo descaso de nossos governantes, que não assegurando aos presos seus direitos fundamentais nos impõem a punição mais severa; na melhor das hipóteses com um dos quatro grandes gigantes da alma, na sempre lembrada proposição de Emilio Mira Y. López [17]: o medo.



[1] Ver: Título I, Capítulo XIV, art. 44, caput e § 1º.

[2] Princípio 17: 1. A pessoa detida pode beneficiar-se da assistência de um advogado. A autoridade competente deve informá-la desse direito prontamente após a sua captura e proporcionar-lhe meios adequados para o seu exercício. 2. A pessoa detida que não tenha advogado da sua escolha, tem direito a que uma autoridade judiciária ou outra autoridade lhe designem um defensor oficioso sempre que o interesse da justiça o exigir e a título gratuito no caso de insuficiência de meios para o remunerar. Princípio 18: 1. A pessoa detida ou presa tem direito a comunicar-se com o seu advogado e a consultá-lo. 2. A pessoa detida ou presa deve dispor do tempo e das facilidades necessárias para consultar o seu advogado. 3. O direito de a pessoa detida ou presa ser visitada pelo seu advogado, consultar e de comunicar com ele, sem demora nem censura e em regime de absoluta confidencialidade, não pode ser objeto de suspensão ou restrição, salvo em circunstâncias excepcionais, especificadas por lei ou por regulamentos adotados nos termos da lei, que uma autoridade judiciária ou outra autoridade considerem indispensável para manter a segurança e a boa ordem. 4. As entrevistas entre a pessoa detida ou presa e o seu advogado podem ocorrer à vista, mas não em condições de serem ouvidas pelo funcionário encarregado de fazer cumprir a lei. 5. As comunicações entre uma pessoa detida ou presa e o seu advogado, mencionadas no presente princípio, não podem ser admitidas como prova contra a pessoa detida ou presa, salvo se respeitarem a uma infração contínua ou premeditada.

[3] Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94).

[4] MARCÃO, Renato Flávio. São Paulo: Saraiva, 1ª ed., 2001.

[5] Art. 26.

[6] Art. 26, I.

[7] Art. 26, II.

[8] Princípio 28: "A pessoa detida ou presa tem direito a obter, dentro do limite dos recursos disponíveis, se provierem de fundos públicos, uma quantidade razoável de material educativo, cultural e informativo, sem prejuízo das condições razoavelmente necessárias para assegurar a manutenção da segurança e da boa ordem no local de detenção ou de prisão".

[9] Princípio 6: "Todos os reclusos devem ter o direito de participar das atividades culturais e de beneficiar de uma educação visando o pleno desenvolvimento da personalidade humana".

[10] MORAES. Alexandre de, e SMANIO, Gianpaolo Poggio, Legislação Penal Especial, São Paulo: Atlas, 1999, p. 153.

[11] Semelhante disposição também encontramos nas Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil, Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94), cujo art. 39 dispõe que "o ensino profissional será ministrado em nível de iniciação e de aperfeiçoamento técnico".

[12] Art. 20 da LEP.

[13] Cf.: Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94), art. 42.

[14] Art. 21 da LEP.

[15] Cf.: Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil. Resolução n.º 14, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), de 11 de novembro de 1994 (DOU de 02.12.94), art. 41.

[16] Direito Penitenciário e Direito do Menor, Belo Horizonte, Mandamentos, 1999, p. 164/165.

[17] LÓPEZ, Emilio Mira Y., Quatro gigantes da alma. Rio de Janeiro: José Olympio.

Sobre o(a) autor(a)
Renato Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Jurista.
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