Teorias da Imputação Penal Objetiva III: conceito jurídico-penal de imputação objetiva

Teorias da Imputação Penal Objetiva III: conceito jurídico-penal de imputação objetiva

Partindo do berço conceitual da dogmática jurídico-penal alemã, apontando a base funcionalista como terreno apto a sustentar a teoria da imputação, chega-se à formulação do conceito jurídico-penal de imputação objetiva.

Introdução

Conhecer uma doutrina significa, antes de tudo, dela se aproximar conceitualmente.

É preciso buscar o sentido de uma doutrina, de uma idéia, na sua evolução histórica, captar os desenvolvimentos a que foi submetida por obras daqueles que a fizeram nascer e daqueles que a consolidaram. Esta tarefa, nem sempre fácil, deve ser bem desempenhada pelo estudioso para que o significado da teoria de que se ocupa se mostre claro e se situe de forma adequada no campo da ciência jurídica a que pertence.

O significado de um conceito provém de um lento trabalho doutrinário de sedimentação. Alcançar desta os desenvolvimentos e sentidos é passo decisivo na compreensão do significado histórico de uma doutrina.

Partindo de seu berço e, após, buscando firmar seu significado, o presente trabalho se situa no campo próprio do esforço teórico, na tentativa de conceituar a imputação objetiva em campo jurídico-penal.


Berço na Dogmática Penal Alemã: etimologia e sentido.

Em matéria penal, os desenvolvimentos doutrinários a cerca do tema específico da imputação objetiva radicam-se na tradição jurídico-penal alemã.

Apesar da difusão, em vários países, das idéias que constituem o corpo teórico das chamadas doutrinas da imputação objetiva, é justo reconhecer que o primeiro movimento de caracterização da doutrina apareceu na República Federal da Alemanha, a partir da década de 70 do século passado, primeiro por obra do eminente penalista Claus Roxin.

Em razão de ser no seio da cultura alemã que se desenvolveram as bases teóricas das doutrinas objetivistas, devemos dedicar atenção à terminologia ali adotada para discursar sobre o problema da imputação.

Na terminologia alemã adota-se a expressão objetiv Zurechnung para se fazer referência à imputação objetiva. O substantivo Zurechnung, correlato do verbo zurechnen, indica a idéia de atribuição de algo a alguém, e é neste sentido que deve ser lido o conceito de imputação. Atribuição é a voz que, na língua portuguesa, talvez, melhor viesse a traduzir o vocábulo alemão Zurechnung, implicando a idéia de delimitação do que pode ser atribuído a alguém, como realização sua referindo-se, portanto, a um só tempo, às idéias de atribuição e de delimitação.

Com acerto, adverte Marco Antonio Terragni, discorrendo sobre a melhor forma de se traduzir a terminologia utilizada na doutrina alemã, falando para os que adotam a língua espanhola, sendo adequado dizer que seu modo de pensar é perfeitamente ajustável, com os mesmos assentos terminológicos, à língua portuguesa. Verbatim:

"en una primera aproximación encierra la idea de atribuir um hecho a alguien. Incluso la palabra atribuir traduciría más exactamente el sustantivo alemán Zurechnug, al que el adjetivo objetiv califica, pues el significado del primero encierra la idea delimitar..." [1]

E prossegue o mesmo autor mostrando as vantagens propiciadas pelo correto entendimento da terminologia alemã, no sentido por ele apontado que, válido para todo o âmbito da dogmática penal pode, por exemplo, se prestar a esclarecer pontos significantes do juízo de imputação, no caso de pluralidade de agentes, in litteris,

"...por um lado en una atuación individual saber si el sujeto es autor o no; y, por el outro, em uma actuación plural dirigir el índice acusadror, de manera tal que cada uno asuma la atribuición conforme al rol que le ha tocado desempeñar en el sucesso." [2]

Quanto ao adjetivo objetivo, cuja origem é comum a vários troncos lingüísticos, provém este, ao que parece, do latim ob iaceo. Enquanto o prefixo ob nos remete à idéia de 'para fora', exterior; a voz verbal iaceo indica a idéia de jazer, estar situado. Portanto, indica a presença do adjetivo objetivo, em sua forma feminina, na expressão imputação objetiva, algo que denota exterioridade, que deve ser apreciado de fora, sem adentrar em conjecturas ou suposições subjetivas. [3]

Sobre a significação, em âmbito jurídico, do termo objetivo, mais uma vez com acerto, leciona Marco Antonio Terragni que

"trasladando la idea al ámbito jurídico, lo objetivo no depende (en princípio y condicionalmente) de los conocimientos, sentimientos y deseos del agente. Y no tiene relación con los factores personales que posibilitan formular el juicio de reproche en el que consiste la culpabilidad: sobre esto último no puede haber ninguna duda." [4]

Assim, referindo-nos, por ora, apenas aos traços terminológicos da questão, podemos assentar que imputar é atribuir a alguém algo como obra sua e imputar objetivamente é atribuir a alguém algo como obra sua, sem que para a formação deste juízo de atribuição sejam levados em conta os elementos subjetivos, mas formando-se o juízo de imputação de um ponto de vista estritamente objetivo.


Tipo Objetivo: pressuposto necessário do processo de imputação.

Uma convicção se impõe para se poder falar em imputação objetiva, inclusive como uma condição de possibilidade do discurso sobre o tema: nas normas legais há componentes que são alheios à subjetividade. É precisamente no sentido de identificar tais componentes objetivos que deve se esmerar uma teoria da imputação objetiva, para sobre eles apoiar, sem ingerência de considerações subjetivas, o juízo de atribuição ligando objetivamente uma conduta ou um resultado típicos a determinado agente causador.

Neste sentido, esclarece Terragni, o objetivo da imputação objetiva é um parâmetro, separado do tipo subjetivo dolo (nos delitos desta classe) ou dos elementos subjetivos que caracterizam os eventos culposos. [5]

Na esteira do que acima se afirmou, entendemos que delimitar objetivamente a atribuição seja o mote principal e regente das construções dogmático-penais quando pretendem introduzir uma teoria da imputação objetiva na sistemática penal.

Quanto à distinção entre a parte objetiva e subjetiva do tipo firme-se que ela é relativa, não devendo ser absolutizada. Neste sentido, vale a advertência de Santiago Mir Puig, quando observa que tal distinção deve ser entendida de forma flexível, ou seja resguardando-se a convicção de que há uma interdependência entre o objetivo e o subjetivo. [6]


Imputação como Processo Tripartido: a atribuição objetiva como primeira fase.

Por tudo que acima se disse, uma teoria da imputação objetiva não pode se constituir como teoria geral da imputação. O Juízo de imputação, enquanto análise de atribuição a alguém de certa conduta ou de um determinado resultado, comporta etapas variadas como as seguintes: a identificação do nexo causal, o juízo particular de imputação ao tipo objetivo e aquele de imputação ao tipo subjetivo.

A formação do juízo positivo de atribuição, em cada uma das etapas acima citadas, é pressuposto necessário das seguintes fases do processo de imputação e, inexistente juízo positivo em qualquer delas, não há falar em imputação, abortando-se todo o processo de sua análise, decidindo-se pela não atribuição.

O vocábulo atribuição, sem que seja qualificado por qualquer adjetivo, no âmbito do direito penal, deve ser tomado como relação via da qual a conduta humana ou seu resultado, subsumidos em uma determinada figura típica, podem ser tidos como obra do agente e, como conseqüência de tal subsunção típica, se decide a incidência ou não de responsabilidades penais.

Uma teoria da imputação objetiva deverá buscar, com caráter universal, investigar as propriedades objetivas que devem concorrer para que seja o tipo objetivo imputável a determinado autor e, somente após esta atribuição objetiva, se deve prosseguir na análise da imputação subjetiva que, eventualmente positiva, ensejará a exigência de responsabilidades penais, como resposta repressiva ao cometimento do delito. [7]

Em direito penal, com acerto afirma Fernando Galvão,

"a expressão 'imputação objetiva' significa atribuir a alguém a prática de uma conduta que satisfaz as exigências objetivas necessárias à caracterização típica. A imputação objetiva estabelece vinculação entre a conduta de determinado indivíduo e a violação da norma jurídica, no plano estritamente objetivo". [8]

Apenas se deve acrescentar, para fins de complementação, a nosso modo, do pensamento do autor, que a atribuição objetiva deve dizer respeito tanto à conduta perigosa e ameaçadora dos bens jurídico-penalmente tutelados quanto ao resultado advindo da efetiva prática da conduta.

Evidente que uma teoria da imputação objetiva deva se inserir no contexto geral de uma dogmática geral do delito. [9]

Comparando a teoria do tipo objetivo nos sistemas causalista e finalista fica evidente que sua conformação é análoga, nos dois sistemas, exigindo-se em ambos, para que se aperfeiçoe a figura típica, objetivamente considerada, a presença da ação, do nexo causal e do resultado. [10]


Critérios Valorativo-normativos no Juízo de Atribuição Objetiva: a suficiente perspectiva funcionalista.

A concepção moderna da imputação objetiva modifica o conteúdo do tipo objetivo. Não basta, para a configuração do tipo objetivo, apenas a existência da ação, da causalidade e do resultado exige-se, outrossim, a presença de outros elementos normativo-valorativos para que se aperfeiçoe o juízo positivo de imputação objetiva.

Para melhor identificação e análise dos elementos normativos que, se presentes, autorizam a formulação do juízo positivo de imputação objetiva, a doutrina elaborou uma série de princípios e critérios específicos. [11]

Daí não concordarmos que imputação objetiva seja o "conjunto de requisitos que fazem de uma determinada causação uma causação típica, violadora da norma.". [12]

Na verdade, como já se afirmou, os requisitos caracterizadores do tipo objetivo fazem parte da sua constituição. Imputação ao tipo objetivo seria não o conjunto de requisitos que o caracterizam, mas a atribuição a determinado agente de conduta ou resultado que cumpriu o tipo objetivo, subsumindo-se o atuar do agente ou o que dele tenha resultado no modelo normativo típico, considerado do ponto de vista objetivo.

Partindo de uma perspectiva funcionalista, foi Roxin quem melhor definiu os elementos normativos, conteúdo do tipo objetivo, que devem ser preenchidos para que se possa falar em juízo positivo de imputação objetiva.

Na esteira do pensamento roxiniano, os elementos normativo-objetivos do tipo nos permitem falar de três ordens de imputação objetiva, devendo todas elas ser preenchidas para que se aperfeiçoe o juízo positivo de atribuição.

Eis os três níveis de imputação objetiva, segundo se identifique a presença de elementos normativo-objetivos do tipo objetivo, orientado o juízo de imputação por três critérios regentes:

1. a criação de um risco jurídico-penalmente relevante ou não permitido;

2. a realização do risco imputável no resultado;

3. a infração do fim de proteção da norma do tipo penal ou do alcance do tipo penal. [13]

Vê-se que os requisitos normativos, que compõem o conteúdo do tipo objetivo, não são a própria imputação objetiva. A presença deles é que permite a imputação objetiva, ou seja, a atribuição normativa da conduta ou resultado típicos. Assim, os princípios e critérios elaborados pela doutrina para investigar o tipo objetivo, descobrindo-lhe os elementos normativos, se prestam a fundamentar um juízo sobre a possibilidade de subsumir uma determinada conduta (eventualmente produtora de um resultado) sob a descrição típica. [14]


Esforço Conclusivo de Conceituar a Imputação Penal Objetiva.

Para se elaborar um conceito de imputação objetiva, válida a lição de Damásio Evangelista de Jesus, in verbis:

"imputação objetiva significa atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a produção de um resultado jurídico. Trata-se de um dos mais antigos problemas do Direito Penal, qual seja, a determinação de quando a lesão de um interesse jurídico pode ser considerada 'obra' de uma pessoa." [15]

Apenas lembramos que não podemos concordar com este ilustre penalista em um ponto, que reputamos decisivo: não se destina uma teoria da imputação objetiva a substituir a análise da causalidade, [16] mas a engloba, avançando na análise normativa da causação, sem dela prescindir. [17]

Ainda deve ser lembrado que, tanto a conduta quanto o resultado imputável, devem cumprir o tipo objetivo sendo, portanto, típica tanto a conduta imputável , bem assim o resultado que possa ser atribuído ao agente causador.

Por isto, em suma, imputação objetiva é o juízo de atribuição, de um ponto de vista estritamente objetivo, de uma conduta típica ou de um resultado típico a determinado agente que lhes tenha dado causa.



[1] TERRAGNI, Marco Antonio. La Moderna Teoría de la Imputación Objetiva y la Negligencia Médica Punible. Conferencia pronunciada en las jornadas internacionales de derecho penal, en homenaje al Dr. Claus Roxin, en la ciudade de Córdoba (Argentina), en octubre de 2001. Disponível em: http://www.eniacsoluciones.com.ar/terragni/libros/libros.htm#artjur. Acesso em: 16 ago. 2004.

[2] TERRAGNI, op. cit. p.1.

[3] No sentido do texto, indicando a mesma origem etimológica para o adjetivo objetivo, TERRAGNI, op. cit. p.1.

[4] TERRAGNI, op. cit. pp.1-2.

[5] TERRAGNI, op. cit. p.2.

[6] Quanto a esta saudável advertência, veja-se PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal – Parte General. Barcelon:Tecfoto,1998. pp.215-237.

[7] Concordando, com entonação algo diversa, AGUADO, Mercedes Paz de la Cuesta. Imputación Objetiva em tres niveles. p.2. Disponível em: <http://www.pazenlared.com/htm/articulos> Acesso em: 16 set. 2003.

[8] GALVÃO, op. cit. pp.14-15.

[9] Ibidem. p.16.

[10] Concordando, desenvolvendo ainda mais as aproximações entre estes sistemas dogmáticos, GRECO, op. cit. pp.5-10.

[11] A respeito dos princípios e critérios objetivos que devem reger o juízo de imputação objetiva, ver infra, parte II, capítulo 3.

[12] GRECO, Luís. Op. Cit. p. 7.

[13] AGUADO, op. cit. passim.

[14] Concordando, porém insistindo na idéia de que, para se imputar uma conduta, primeiro é necessário conhecer-lhe perfeitamente o conteúdo e as características, que concorrem para a realização de uma ação e para a produção de um resultado, levando-se em conta todos os elementos e circunstâncias, tanto objetivas como subjetivas, AGUADO, op. cit. p.19.

[15] JESUS, op. cit. p.35.

[16] Ibidem. p.33.

[17] Quanto à problemática atinente à causalidade no seio da reflexão sobre a imputação objetiva, ver HENRIQUES, José Carlos, Teorias da Imputação Penal Objetiva IV: o problema da relação causal, acessível em www.direitonet.com.br

Sobre o(a) autor(a)
Jose Carlos Henriques
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto. Licenciado em Filosofia e Teologia, Bacharel em Direito, Especialista em Direito Civil e...
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