A submissão do Estado ao Direito
Pretendemos, com os ensinamentos dos mestres do Direito, colocar a questão dos pressupostos do Estado de Direito.
O que é um país que não se submete ao Direito?
HANS KELSEN, em sua obra Teoria Pura do Direito, preleciona:...”Entendeu-se o que a teoria tradicional designa por ”auto-obrigação do Estado” e descreve como uma situação de facto que consistiria em que o Estado, existente como realidade social independentemente do direito e, depois, se submete – por assim dizer, de vontade – ao Direito. Só assim ele seria Estado de Direito.
Em primeiro lugar, se deve observar que um Estado não submetido ao Direito é impensável... Dizer que um Estado cria o Direito significa apenas que os indivíduos, cujos actos são atribuídos ao Estado com base no Direito, criam o Direito. Isto quer dizer, porém, que o Direito regula a sua própria criação. Não há um pode haver, lugar a um processo no qual um Estado que, na sua existência, seja anterior ao Direito, crie o Direito e, depois, se lhe submeta. Não é o Estado que se subordina ao Direito por ele criado, mas é o Direito que, regulando a condução dos indivíduos e, especialmente, a sua conduta dos indivíduos e, especialmente, a sua conduta dirigida à criação do Direito, submete a si esses indivíduos. De uma auto-obrigação do Estado apenas se poderia falar no sentido de que os deveres e direitos que são atribuídos à pessoa do Estado são estatuídos por aquela mesma ordem jurídica cuja personificação é a pessoa do Estado. Esta atribuição ao Estado, isto é, a referência à unidade de uma ordem jurídica e a personificação desta, daí mesmo resultante, é, como importa sempre acentuar uma operação mental, um instrumento auxiliar do conhecimento. O que existe como objecto do conhecimento é apenas o Direito.
Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo o Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, se ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica... “Estado de Direito” neste sentido específico é uma ordem jurídica relativamente centralizada da segunda a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis – isto é, às normas gerais que são estabelecidas por um parlamento eleito pelo povo, com ou sem a intervenção de um chefe de Estado que se encontra à testa do governo –os membros do governo – os membros do governo são responsáveis pelos seus actos, os tribunais são independentes e certas liberalidades dos cidadãos, particularmente a liberdade de crença e de consciência e a liberdade da expressão do pensamento, são garantidas”.
Diante dessas considerações kelsenianas, pergunta-se às consciências: é um Estado de Direito aquele que não oferece segurança, educação, sistema de saúde deficitário, esfacelado, probidade administrativa, impunidade plenária, sistema prisional onde seja o fito a reintegração do homem à sociedade, proselitismo fortalecido, segurança jurídica, instituições públicas e privadas que cumpram com os seus objetivos (existem exceções), gastos contidos, leis que não sejam forjadas nas algazarras das madrugadas, diuturnamente descumpridas, que é condescende com instituições financeiras despudoradas e acintosas, que descumprem a lex sem-cerimônia alguma, tribunais com decisões perfulgentes pela conseqüência e consciência dos magistrados (existem exceções), que não mantém uma polícia humanizada, preparada, consciente do que deve fazer (existem exceções) inclusive rechaçar a tortura pusilânime pelos interrogatórios que estão sob as normas da Idade Média, abandono do meio ambiente, balbúrdia econômico-financeira, orçamentos de uma mutabilidade de “fazer cair o queixo”, impotencia diante do narcotráfico e do crime organizado, do tráfico e prostituição de crianças, sistema viário condizente e estimulador do fluxo das riquezas, a grandes extensões de terras ricas em minérios alienígenas, permitam infindáveis seqüestros cruéis e relampejantes, compromisso com os mais altos anseios do homem, carga tributária que faria enrubecer os césares e não dirigi-la ao bem-estar coletivo, cultor da pobreza endêmica, reiterada falta de siso em todas as esferas, prestidigitação em matéria de estatísticas, etc. Enfim, como disse KELSEN, é impensável um país que não se submete ao Direito.Para todos conveniente e para todos coniventemente?
TOBIAS BARRETO, aquele jurista paupérrimo de pecúnia e milhardário de inteligência e cultura, um verdadeiro banqueiro em que a mais valia era o Direito, dizia indignado: “O Brasil é um corpo estranhamente opaco. A atmosfera que o envolve é demasiado densa e quase impenetrável aos raios do ideal. O semblante das coisas que sucedem é menos contingente e passageiro do que a face política dos homens que de momento ei-los em marcha para onde os frutos brotam mais doces e as auras sopram mais frescas.
Reina em nosso país uma doença perigosa: é a ambição de governar que ataca até os espíritos mesquinhos. Pequenos escritores de frivolidades literárias tornam-se facilmente homens de estado. Pouco a pouco erige-se entre nós aquela espécie de governo, que MILL qualificou de pedantocracia e que justamente consiste na intrusão de ambiciosos medíocres, que sob o vago título de capacidades, iludem o público indiferente e pouco disposto a sondar-lhes o mérito e medir-lhes o tamanho... Eis aí o que diz a experiência vulgar, a experiência de todos. Que devemos induzir? Quase nada. Estas coisas não têm força de sugerir a verdadeira idéia do futuro bom ou mal que nos aguarda. Nada significa o martelar incessante dos carpinteiros políticos. De propósito empregamos o epíteto, pois que nesse governo faltam os arquitetos... O mal ainda se complica de um fenômeno grave: a idolatria partidária que distribui coroas e renomes com um certo número de vultos, que aliás vistos e apreciados bem de perto nada oferecem de extraordinário. Acontece que repassados de orgulho, fazem-se mais necessários do que realmente são e o menor dos seus atos ou a mais banal de suas palavras, repercute fortemente, geralmente no seio das almas tímidas... Diante dos princípios todos somos pequenos e bem pequenos. “Só a causa é grande”. – É a nação. Importamo-nos mais saber o que pensa o homem do povo, sensato e magnânimo, sobre os negócios do país, do que saber o que dizem os empresários de política interesseiros e fátuos. Por isso é sobre o povo que devemos convergir o nosso estudo e atenção”.
HANS KELSEN – Teoria Pura do Direito, 2ª edição, 1962, pp. 220 a 221.
TOBIAS BARRETO -, Estudos de Direito e Política, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1963, pp. 124 a 126.