Contrato de factoring e contrato de desconto bancário: diferenças quanto ao direito de regresso em caso de inadimplência do devedor
Apesar da semelhanças existentes entre os institutos, possuem consequências jurídicas diversas quanto ao direito de regresso em caso de inadimplemento da obrigação de pagamento pelo devedor.
Factoring é o contrato por meio do qual um empresário (faturizado) cede a uma instituição de factoring (faturizadora), total ou parcialmente, os títulos de créditos recebidos com a atividade empresária para que o faturizador se encarregue de administrar o crédito eventual, o recebimento de faturas nos vencimentos e eventual procedimento de cobrança, em caso de inadimplemento dos credores do faturizado.
Existem duas modalidades principais de factoring, que se diferenciam, entre si, pelas atividades desempenhadas pela instituição faturizadora: Factoring convencional e Factoring Maturity.
Por meio do Factoring Convencional, a empresa que necessita se capitalizar, vende seus direitos creditórios às empresas de Fomento Mercantil, e recebem antecipado o valor vendido com um pequeno desconto sobre a transação.
Já através da Factoring Maturity há a compra de direitos creditórios, no entanto sem antecipação dos valores, sendo estes pagos apenas nas datas de vencimento.
O contrato de factoring, pois, serve ao empresário justamente para lhe permitir uma melhor organização do seu negócio, atendendo principalmente aos interesses dos pequenos e médios empreendedores, que têm mais dificuldade de acesso ao crédito pelas vias normais do sistema financeiro nacional (TAVARES, 2017). Portanto, é uma forma que as empresas de pequeno e médio porte procuram adquirir recursos de modo estratégico, pois há a necessidade de o mercado de produzir mais ainda com recursos escassos, inovando nos meios de captação.
Portanto, essa operação comercial auxilia as empresas a se capitalizarem sem tirar a flexibilidade no pagamento de seus clientes, eis que mesmo com o pagamento parcelado pelos consumidores, a empresa não fica descapitalizada.
A instituição de factoring não recebe o tratamento de instituição financeira integrante do sistema financeiro nacional. O conceito legal de instituição financeira está previsto no art. 17, da Lei n.° 4.595/64:
Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros.
A instituição de factoring não faz a captação de dinheiro de terceiros, como acontece com os bancos, nem realiza contratos de mútuo, dentre outras transações, portanto a atividade comercial de factoring não se enquadra em tal definição. Pelo contrário, a empresa de factoring utiliza recursos próprios em suas atividades. Como decorrência desses atributos, a factoring não integra o Sistema Financeiro Nacional nem necessita de autorização do Banco Central para funcionar. Como explica o julgado da 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça:
As empresas popularmente conhecidas como factoring desempenham atividades de fomento mercantil, de cunho meramente comercial, em que se ajusta a compra de créditos vencíveis, mediante preço certo e ajustado, e com recursos próprios, não podendo ser caracterizadas como instituições financeiras. STJ. 3ª Seção. CC 98.062/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 25/08/2010.
A empresa de factoring tampouco realiza contrato de mútuo, pois este consiste em uma compra e venda de créditos (direitos), por um preço ajustado entre as partes, quando realizado por instituição financeira pode apresentar indexação aos juros remuneratórios superiores a 12% ao ano. Portanto, pelo fato de as empresas de "factoring" não se enquadram no conceito de instituições financeiras, os juros remuneratórios estão limitados em 12% ao ano, nos termos da Lei de Usura (STJ. 4ª Turma. REsp 1048341/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 10/02/2009).
Ainda dentro da dicotomia entre o contrato de factoring e atividade financeira pelas instituições financeiras nacionais, cabe analisar um instituto semelhante, principalmente com relação à finalidade buscada pela empresa, que é capitalizar-se de imediato. É o caso de contrato de desconto bancário. O desconto bancário caracteriza-se por ser uma operação bancária ativa e atípica. O Banco adianta a importância constante do título de crédito ao seu possuidor mediante sua cessão via endosso.
Parte tal conceituação do pressuposto de que todo e qualquer crédito possa ser cedido em troca do adiantamento pecuniário que o banco faz ao cliente. A prática bancária revela, contudo, que o desconto é feito contra títulos de crédito, representando soma líquida e certa, portanto de fácil recuperação pelo banco (ABRÃO, 2019).
O banco antecipa ao credor a importância de um título de crédito de soma líquida e vencimento breve, recebendo em transferência e deduzindo do valor nominal os juros pelo espaço de tempo intercorrente desde a data da antecipação até à do vencimento (MENDONÇA, 2003).
O desconto é contrato real, bilateral e oneroso. “O desconto pertence à família dos contratos reais; é variedade do mútuo. Perfaz-se, ou melhor, completa-se, desde que a soma descontada se entregue ao descontário em dinheiro, ou seja, inscrita a seu crédito em conta corrente. Nesta última hipótese, efetua-se igualmente a passagem da soma do descontador para o descontário, porque fica na plena disponibilidade deste (MENDONÇA, 2003).
A grande diferença, em termos de consequência jurídica desses dois tipos de contratos, teve o entendimento consolidado, recentemente, pelo Superior Tribunal de Justiça, pois decidiu a corte que, em caso de inadimplência do devedor, a faturizada não responde caso o devedor não pague o crédito que ela cedeu à factoring, sendo nula a cláusula que tente responsabilizá-la. Assim decidiu em sede de Recurso Especial Repetitivo:
A empresa faturizada não responde pela insolvência dos créditos cedidos, sendo nulos a disposição contratual em sentido contrário e eventuais títulos de créditos emitidos com o fim de garantir a solvência dos créditos cedidos no bojo de operação de factoring. A natureza do contrato de factoring, diversamente do que se dá no contrato de cessão de crédito puro, não permite que os contratantes, ainda que sob o argumento da autonomia de vontades, estipulem a responsabilidade da cedente (faturizada) pela solvência do devedor/sacado. STJ. 3ª Turma.REsp 1.711.412-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 04/05/2021.
Destarte, o fato de a faturizadora não conseguir o adimplemento pelo devedor do valor constante no título, não autoriza cobrar a quantia do faturizado. O contrato de factoring é um contrato de risco elevado, o risco advindo dessa operação de compra de direitos creditórios, consistente justamente na eventual inadimplência do sacado, constitui elemento essencial do contrato de factoring. Para haver um equiíbrio contatual, o faturizado já paga um preço mais oneroso do que pagaria em um contrato de desconto bancário, contrato este que a instituição financeira não garante a solvência dos títulos descontados. Logo, diante desse risco internalizado, a faturizadora não tem direito de regresso contra o faturizado com base no inadimplemento dos títulos transferidos. A possibilidade de demanda regressiva implica em desnaturação da operação de fomento mercantil.
Deste modo, no desconto bancário, o cedente responde em caso de inadimplência do devedor. No contrato de factoring, o faturizado não responde em caso de inadimplência do devedor. “Enfim, a diferença fundamental entre o fomento mercantil e o desconto bancário, forma de empréstimo de dinheiro, reside no fato de que, no primeiro, inexiste direito de regresso e, no segundo, encontra-se garantido o referido direito, podendo, entretanto, a instituição financeira abrir mão desse regresso (...)” (Min. Antonio Carlos Ferreira). Se o contrato contiver previsão de responsabilidade do faturizado, esta cláusula é nula.
Portanto, mesmo que o contrato de factoring preveja a responsabilidade do faturizado nesses casos, tal cláusula deverá ser considerada nula: O risco assumido pelo faturizador é inerente à operação de factoring, não podendo o faturizado ser demandado para responder regressivamente, salvo se tiver dado causa ao inadimplemento dos contratos cedidos. STJ. 4ª Turma. REsp 949.360/RN, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 17/12/2013.
Em ocorrendo a inadimplência do devedor, a possibilidade de a faturizadora reaver do faturizado o que lhe pagou pela cessão do crédito desnatura o contrato de fomento mercantil, também é nulo título de crédito que a faturizada seja obrigada a emitir se responsabilizando pela solvência dos créditos cedidos.
A empresa faturizada não responde pela insolvência dos créditos cedidos, sendo nulos a disposição contratual em sentido contrário e eventuais títulos de créditos emitidos com o fim de garantir a solvência dos créditos cedidos no bojo de operação de factoring. STJ. 3ª Turma. REsp 1.711.412-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 04/05/2021 (Info 695).
Não obstante, o faturizado responde perante a faturizadora caso o título cedido “não exista juridicamente ou caso ele seja inválido. O faturizado, ao ceder os títulos, assume a garantia de que eles são existentes. Trata-se de previsão expressa do art. 295 do CC, que pode ser aplicado aos contratos de factoring:
Art. 295. Na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu; a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé.
Desse modo, a faturizadora possui direito de regresso contra o faturizado quando estiver em questão não um mero inadimplemento, mas sim a própria existência do crédito. Esse entendimento foi exposto pelo ministro Luis Felipe Salomão no REsp 1289995 PE 2010/0213969-0. De acordo com Salomão, a questão se resumia em saber se, caso fosse verificado que as duplicatas eram mesmo “frias”, teria ou não o endossatário – faturizador – direito de exigir do endossante – faturizada –, em regresso, os valores relacionados com as duplicatas. A redação do acórdão diz que, mesmo não sendo responsável pela solvência do crédito, a faturizada é responsável pela sua existência. Explicou que deve existir o crédito ao ser realizada a operação de compra, do contrário falharia um dos elementos da compra e venda, que é o objeto. O ministro enfatizou que a faturizada deve realmente ser credora, sob pena de ser obrigada a ressarcir o faturizador, conforme dispõe o artigo 295 do Código Civil. Para o ministro relator do Recuso Especial, as informações do processo deixam claro que as duplicadas eram “frias”, ou seja, os créditos cedidos não existiam, pois não correspondiam a uma efetiva venda de mercadorias ou prestação de serviços, pois “a faturizada não se responsabilizaria perante o faturizador pelo pagamento de duplicata sacada regularmente, na hipótese de inadimplemento do sacado. Mas se responsabiliza por duplicata fria, sacada fraudulentamente, sem causa legítima subjacente”.
A existência, assim, de um crédito para com um terceiro tem no contrato relevância causal, pelo que, se o crédito cedido não existe, o contrato é nulo por falta de causa (ABRÃO apud . Molle).
Referências Bibliográficas
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.711.412-MG Contrato de factoring. Cláusula de responsabilização da faturizada pela solvência dos créditos cedidos à faturizadora. Emissão de nota promissória para garantia da operação. Princípio da autonomia da vontade. Art. 296 do Código Civil. Impossibilidade. Vulneração da própria natureza do contrato. Aval aposto nas notas promissórias. Insubsistência. Interpretação do art. 899, § 2º, do Código Civil., Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. Terceira Turma, julgado em 04/05/2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1048341/RS. Civil. Contrato de Factoring. Julgamento extra petita. Exclusão do tema abordado de ofício. Juros remuneratórios. Lei de usura. Incidência. Limitação. 4ª Turma. Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 10/02/2009.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 949.360/RN. Comercial e Processual. Recurso Especial. Fac símile. Tempestividade. Factoring. Direito de Regresso. Cláusula contratual. Nulidade. 4ª Turma, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 17/12/2013.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1289995 PE. Direito Civil e Empresarial. Contrato de Factoring. Cessão de crédito pro soluto. Arts. 295 e 296 do Código Civil. Garantia da existência do crédito cedido. Direito de regresso da factoring reconhecido. 4ª Turma, Rel. Min. Luís Henrique Salomão, julgado em 20/02/2014.
LIMA, Roberto Arruda de Souza Lima. Contratos Bancários: Aspectos Jurídicos e Técnicos da Matemática Financeira para Advogados. 1. Ed. São Paulo: Atlas, 2007.
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