Unificação das polícias

Unificação das polícias

Texto abordando a idéia de unificação das polícias civis e militares numa polícia única estadual. Trata das vantagens da unificação, presumíveis desvantagens, forma de implementação e dificuldades possíveis, diante das argumentações a favor e contra.

N o momento em que se discute acaloradamente a unificação das polícias militares e polícias civis dos Estados e Distrito Federal, como repercussão do recrudescimento da violência, cabe, a par de reconhecê-la útil e necessária, expor algumas questões de ordem prática.

Inicialmente, hão de ser lembradas algumas situações notórias, mas nem sempre argüidas. A principal delas: temos 27 polícias militares e 27 polícias civis, cujas atribuições estão constitucionalmente definidas. No entanto, são conhecidas as diferenças quanto às formas de recrutamento, níveis de remuneração, estrutura, organização, maneira de atuação, mecanismos de controle e uma série de outras circunstâncias que as diferenciam.

É comum o recíproco compartilhamento de atribuições. As polícias militares detêm de fato – a querem, de direito e a teriam, com a unificação – parcela de atribuição repressiva, no tocante à apuração das infrações penais. Por intermédio das P2, investigam os crimes militares e, às vezes também os comuns. Embora seus próceres sejam contra a unificação, alegando que outros países têm várias polícias, contraditoriamente propugnam pelo deferimento do ciclo completo da atividade policial à corporação (Carta de Goiânia). Isto significa que a polícia civil ficaria com a repressão, enquanto a militar atuaria preventiva e repressivamente, embora atualmente sua atuação repressiva limite-se à execução de prisões em flagrante. Pelo oposto, as polícias civis, a par de exercerem suas atribuições de polícia judiciária, exercitam o policiamento preventivo de maneira indireta quando ostensivamente se deslocam em viaturas caracterizadas ou se apresentam trajando vestimentas identificadoras. Ou seja, as polícias não se acomodam às suas atribuições constitucionalmente definidas, o que torna a idéia de unificação mais realista.

Um dos argumentos favoráveis à unificação é de que poucos países possuem mais de uma polícia ou, a exemplo do Brasil, uma civil e outra militar. O argumento contrário mais comum é exemplificado pela polícia americana, que possui milhares de corporações distintas, praticamente uma em cada condado, o que viria contra a tese da eficiência estribada na unidade. Embora uniformizada (ou se quiserem, fardada), a polícia americana tem caráter civil, não é polícia militar e sequer é vista como reserva do Exército, como no Brasil.

Os oficiais militares brasileiros são formados num curso de três ou quatro anos (influência das Forças Armadas), quando poderiam sê-lo em menos tempo. Essa formação acadêmica, porém, os equipara aos delegados de polícia em termos de nível de instrução, visto que é reconhecida como curso de nível superior, embora a formação jurídica seja limitada. No entanto, tal circunstância torna-se irrelevante na medida em que em algumas unidades da federação os demais cargos policiais civis também exigem a formação de terceiro grau.

No caso dos 27 corpos de bombeiros militares, trata-se apenas de desmilitarizá-los, com mudança de regime e nova designação dos cargos, visto que podem continuar subordinados às secretarias de segurança pública, integrando a defesa civil, vez que a peculiaridade de suas funções não comporta unificação com as polícias.

As polícias militares e os corpos de bombeiros militares são considerados reserva do Exército, numa vetusta e anacrônica disposição constitucional. Estruturam-se, tal qual o Exército, em batalhões, companhias e pelotões e grupos ‘de combate’. Tais unidades e subunidades são os níveis operacionais integrantes de uma estrutura de guerra, como se criadas para enfrentar o inimigo externo. No caso de guerra, hipótese remotíssima no atual ânimo de beligerância do país, dar-se-ia a convocação progressiva de todos os reservistas do próprio Exército e só após seu treinamento, seriam mandados para a frente de batalha. Apenas em último caso ocorreria a utilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares como força bélica. Localizando-se o teatro de operações além-fronteiras, certamente não seriam empregados. Entrementes, cumpririam suas próprias atribuições, provendo a manutenção da ordem pública e integrando o equipamento de defesa civil.

A doutrina dominante, contudo, é a da existência do inimigo interno, o subversivo, o comunista, como se estivéssemos nos anos 60. É comum, então, a instrução de controle de tumultos aliada à de guerrilha urbana e guerra revolucionária, situações igualmente impensáveis em nosso estágio político. A idéia de reserva do Exército legitimava a assunção das secretarias de segurança e o controle dos batalhões das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares pelos generais e coronéis do Exército, prática comum no regime militar. É até compreensível tal atitude na época, que visava a submeter os governadores, alguns dos quais, até hoje, consideram a polícia militar sua guarda pretoriana particular. Outra conseqüência disso é que ainda hoje são nomeados generais da reserva do Exército e coronéis da PM como secretários de segurança, escassamente um delegado de polícia. Assim, a cúpula das secretarias é recheada de militares, o que dá o tom bélico do combate à criminalidade.

A submissão de algumas forças auxiliares (polícias militares e corpos de bombeiros militares) aos regulamentos do Exército (Regulamento Disciplinar do Exército e Estatuto dos Militares, entre outros), lhes impõe um regime extremamente rigoroso para quem cotidianamente relaciona-se com civis, no trato funcional, em situações de crise ou conflito. Diferentemente ocorre entre os integrantes das forças singulares (forças armadas), paradigmas das forças auxiliares, cujas relações com os cidadãos se dão esporadicamente, no âmbito administrativo pacífico.

Em contrapartida, estando jungidos ao Código Penal Militar e ao Código de Processo Penal Militar, sujeitos a uma Justiça Militar, não raro há questionamentos a respeito da lisura dos procedimentos que apuram crimes militares praticados contra civis. Quanto aos tribunais e auditorias militares estaduais, ao se lhes questionar a necessidade, bastaria extingui-los, sendo sua estrutura absorvida pela Justiça estadual comum, inclusive quanto ao exercício dos respectivos órgãos da magistratura e do Ministério Público.

Percebe-se que os mais temerosos da unificação das polícias são os oficiais, especialmente os oficiais superiores (coronéis, tenentes-coronéis e majores), certamente em razão de uma exacerbada vaidade em não suportar a hipótese de ficarem subordinados a delegados ‘paisanos’. Outra razão poderia ser a frustração, inegavelmente legítima, de verem o coroamento de uma carreira duramente construída sendo repentinamente podada ao final, quando lhes traria os benefícios do exercício do comando, com todas as nuances de gratificação pessoal e profissional. Recorde-se que os delegados de polícia também têm essa pretensão, que estaria, porém, um tanto inacessível a todos ou, quando muito, bastante diferida, pelo aumento da concorrência.

Para evitar o temido prejuízo, poderíamos ter oficiais e delegados de polícia relativamente equiparados, como superintendentes, como já se propôs (cargo já existente na Polícia Federal e na polícia civil do Ceará). Caberia a criação de uma nova função (gestor de segurança pública), com a equiparação do mais alto posto militar (coronel) à mais alta classe de delegado de polícia (especial), tendendo a remuneração de ambos a igualarem-se em certo tempo. Nessa perspectiva a unidade policial ou chefatura (não mais um quartel, delegacia ou distrito), mesclando antigos ‘policiais civis’ e antigos ‘policiais militares’, estruturados em equipes também mistas, seria dirigida pelo gestor, que poderia ser tanto um delegado de polícia de classe especial quanto um coronel. Esse gestor seria designado conforme a antigüidade apurada, inicialmente de forma paritária para evitar suscetibilidades. Seriam estabelecidos novos lapsos intersticiais de modo que as demais autoridades ascendessem à função. Igualmente o chefe de polícia seria designado entre os gestores, alternadamente, até que houvesse a extinção dos remanescentes das antigas forças.

Assim, os demais cargos seriam equiparados conforme o posto do oficial (tenente-coronel, major, capitão, primeiro-tenente, segundo-tenente) ou classe do delegado (primeira, segunda, terceira, quarta, quinta). Os superintendentes, dirigentes de carreira da polícia (administradores ou gerentes da atividade policial), seriam os delegados de polícia (autoridades policiais, operadores do direito) e os antigos oficiais da PM, agora como ‘oficiais de polícia’, estes com opção de integrarem a categoria de delegado de polícia mediante habilitação em Direito e concurso. Enquanto os delegados de polícia continuariam a exercer os encargos da persecução criminal, os oficiais de polícia conduziriam outros procedimentos administrativos, operações preventivas e as tarefas de polícia judiciária. Futuramente a direção das polícias caberia apenas a bacharéis em Direito, ainda que se alterasse a denominação do cargo, visando a que todos pudessem exercer em plenitude as atividades legais de caráter jurídico reservadas à autoridade policial.

Os integrantes da polícia técnica ou científica poderiam, como hoje, estar englobados numa categoria específica da carreira policial, sendo temerário desvinculá-los, como querem alguns, sob pena de o procedimento inquisitório restar comprometido. Isso é perfeitamente assimilável quando vislumbramos a hipótese de a autoridade policial ter de dirigir-se a outro órgão, talvez do Poder Judiciário, para solicitar (não mais requisitar) determinado exame pericial, ficando sujeito à discricionariedade daquele poder o atendimento.

No nível intermediário, além dos cargos atuais (agente de polícia, escrivão de polícia, papiloscopista, detetive, investigador, agente penitenciário), ou em lugar destes, caberia a criação de cargos como ‘comissário’, ‘inspetor’ ou equivalente, onde ainda não existem tais cargos, equiparados aos oficiais subalternos e praças de maior graduação. Nesse nível intermediário e no de execução, não seria difícil adotar uma correspondência equilibrada, de modo que os requisitos mais específicos para uma ou outra classe ou categoria, fossem satisfeitos pelos interessados, mediante acesso ou dentro de alguns anos, conforme o tempo de serviço.

No nível básico estariam os auxiliares de polícia, para os quais os requisitos são menos específicos (motorista, telefonista, vistoriador de veículos, auxiliar de papiloscopista, fotógrafo, desenhista, auxiliar de necrópsia, atendente de necrotério, técnico e auxiliar de apoio à atividade policial, cabo e soldado), muitos voltados para a atividade meio, os quais seriam enquadrados segundo o sugerido acima, estando os integrantes da atividade-fim preventiva na categoria de patrulheiros.

Certo que há uma vocação inquestionável quanto à sindicalização e ao direito de greve por parte dos policiais militares, especialmente os de graduação inferior. Havendo condições condignas de trabalho e salários decentes, contudo, os movimentos paredistas inexistirão. Os órgãos de classe não se comprazem em ser meros arautos de sinecuras gratuitas, motivo pelo qual não se concebe uma polícia bem preparada e bem paga fazendo greve a todo o momento. Inegável, ainda, que a nova estrutura não poderia tolerar os chamados ‘bicos’, várias vezes fontes de corrupção e violência.

À medida que se consolidasse a unificação, o comando único aquilataria da necessidade de aumentar o efetivo na prevenção ou na repressão, conforme a demanda local respectiva, considerando também a vocação e as habilidades de cada policial. A polícia preventiva não mais seria fardada, mas uniformizada, o que implica apenas equipamento e vestimenta padronizados. No mais, o efetivo seria praticamente aproveitado nas mesmas funções que já exerce, devido à necessidade de se manter o mesmo ou até mais pessoal no segmento preventivo.

Percebe-se, contudo, que uma unificação não poderia ser implantada de uma penada, sem maiores cuidados de ordem legislativa. Um passo importante para a definitiva unificação seria a integração controlada, atualmente em fase de implantação em alguns Estados, a qual, entretanto, peca pela falta de comando único e pela diferença de regime. Em ambos os casos, todavia, é preciso que o processo seja progressivo no tempo e no espaço, formal e materialmente.

Assim, em ato contínuo a emenda constitucional que desmilitarizasse as polícias militares e os corpos de bombeiros militares, deveria uma lei federal dispor sobre tais conseqüências, especialmente quanto ao regime jurídico daí resultante, a manutenção das prerrogativas por certo tempo para os que, estando em final de carreira, considerassem inadequado se integrar ao novo sistema, a gradual absorção de todos os integrantes das antigas polícias militares e polícias civis pela nova instituição (polícia estadual) e outras particularidades. Dentre essas, até a possibilidade de redução do tempo de contribuição para aposentadoria da mulher policial e concessão de incentivo especial para aposentadoria de quem houvesse atingido os requisitos mínimos exigidos.

Poderiam ser autorizados temporariamente pela emenda constitucional, concursos de caráter interno, espécie de ascensão excepcional, visando a transposição dos mais aptos para cargos mais técnicos e melhor remunerados. Assim, o aproveitamento dos bacharéis em Direito em concurso interno para delegado de polícia legalizaria situações já existentes, como por exemplo, no Estado do Tocantins, onde tenentes da PM já exercem a função de delegado de polícia nas cidades do interior.

Na maioria das unidades da federação há uma substancial diferença salarial, especialmente nos cargos do nível de execução das duas forças. Também os requisitos para seleção são díspares, havendo os que exigem 1º, 2º ou 3º grau do ensino regular, para um ou outro cargo. Haveria a necessidade de equiparação dos salários, que certamente seria feita gradualmente, sempre no sentido de incrementá-los e nivelá-los pelos maiores, à medida que os novos integrantes se adequassem às novas funções. Essa adequação seria feita mediante conclusão das etapas do ensino regular, além de reciclagem contínua a ser feita pelos órgãos de formação resultantes da aglutinação, até que todos os policiais estivessem aptos a assimilar o novo sistema e a atuar segundo os ditames da nova instituição (conforme se procura implantar com a Nova Polícia, no Rio de Janeiro). Caberia, portanto, se não a isonomia imediata, uma padronização, pelo estabelecimento de piso salarial condigno para todas as categorias, de sorte a prevenir a corrupção, além de outros benefícios de caráter social de há muito demandados pelas categorias policiais.

Essa nova polícia requereria, então, para seu efetivo desempenho de seu mister, a adoção da escolha corporativa e mandato para o chefe de polícia, as garantias da independência funcional, da inamovibilidade e do foro especial para os delegados de polícia, institutos hoje esparsamente conferidos em alguns Estados. O próprio conceito de autoridade policial ficaria restrito aos superintendentes, ressalvada a prática de ato privativo de bacharel em Direito.

A unificação das polícias, entretanto, não será o paliativo que reduzirá a violência no país a patamares assimiláveis. As propaladas e proteladas reformas são condições essenciais para a viabilidade do próprio país como Estado soberano.

Analisadas tais questões, infere-se que de nada adiantaria e até seria altamente prejudicial a unificação ‘por decreto’, sem o imprescindível suporte normativo que desse regularidade ao processo e assegurasse sua exeqüibilidade plena. Entretanto, vislumbra-se a possibilidade, como forma de fortalecer a polícia, resgatar a credibilidade dos órgãos de persecução criminal e devolver a plena cidadania ao homem de bem, ao atacar a criminalidade e a violência pelo caminho adequado: a prevenção.

Sobre o(a) autor(a)
Claudionor Rocha
Delegado
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