OAB: luta por justiça tributária é tão relevante como foi luta contra ditadura

OAB: luta por justiça tributária é tão relevante como foi luta contra ditadura

A luta por justiça e transparência tributária é, para a cidadania brasileira, tão relevante quanto foi a luta contra a ditadura. A comparação foi feita hoje (07) pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante, em palestra no seminário nacional "Lei Orgânica do Fisco como instrumento de promoção de Justiça Social", promovido pelo Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional), realizado no auditório Nereu Ramos da Câmara dos Deputados. "Sem justiça tributária não há democracia, desenvolvimento ou justiça social", proclamou Ophir, ao defender uma Lei Orgânica do Fisco, "que seja comprometida com a sociedade e não com os interesses corporativos".

Em sua palestra, o presidente nacional da OAB criticou a elevada carga tributária brasileira e defendeu a estruturação de um órgão que confira autonomia e independência à administração tributária e aos servidores fiscais. Para ele, esses princípios são elementos de eficiência  e eficácia operacional, voltados para a essencialidade dessas atividades ao funcionamento do Estado, conforme previsto no artigo 37, XXII da Constituição. "Mas não obstante atenda mandamento constitucional, deve inexoravelmente ter o cidadão-contribuinte como ponto de partida, pois o respeito a seus direitos e garantias representa elemento indissociável à preservação da cidadania".

A seguir, a íntegra da palestra de Ophir Cavalcante no seminário sobre a Lei Orgânica do Fisco:


"Senhoras e Senhores,

Discute-se no presente painel ‘A Lei Orgânica do Fisco como instrumento de promoção da Justiça Social', e nesse contexto não se pode deixar de falar que a Administração Tributária deve ser capaz de cumprir com os seus verdadeiros objetivos constitucionais e legais.

A Constituição Federal em seu preâmbulo diz ser função do Estado assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Os tributos são a fonte de recursos do Estado, e devem lhe proporcionar o alcance das metas previstas no preâmbulo da Constituição Federal. É a chamada função social dos tributos.

E essa função social passa necessariamente pela busca da justiça tributária, pilar do equilíbrio social e econômico de uma sociedade, que depende não apenas da adequada proporcionalidade com que os impostos são estabelecidos, mas da eficácia e transparência com que são cobrados e supervisionados.

Não basta aumentar as alíquotas dos tributos, ou mesmo outorgar aos agentes fiscais prerrogativas que lhe assegurem o exercício de suas atividades. É preciso reeducar o cidadão-contribuinte - sobretudo o mau contribuinte -, incutindo nele a percepção do risco (e dos danos) de sonegar.  

Por isso é que se deve ter em mente que o Estado existe para a defesa dos interesses do cidadão e não do próprio Estado. Aliás, qualquer autonomia de órgão do Estado deve ser utilizada para o fortalecimento da entidade e não de seus ocupantes, embora se reconheça que a existência de órgãos de Estado com autonomia funcional, administrativa e orçamentária seja importante para o aprimoramento da democracia e fortalecimento do próprio Estado, sobretudo quando se sabe da imensa sonegação fiscal existente no país aliada à corrupção.

É de se reafirmar a importância da Administração Tributária e dos servidores fiscais como elemento de eficiência e eficácia operacional (art. 37, XVIII) e a essencialidade dessas atividades ao funcionamento do Estado (art. 37, XXII), mas não obstante atenda mandamento constitucional, deve inexoravelmente ter o cidadão-contribuinte como ponto de partida, pois o respeito a seus direitos e garantias representa elemento indissociável à preservação da cidadania.

Nesse contexto é que se deve situar o projeto de Lei Orgânica do Fisco, que procura conferir autonomia e independência a essa importante função estatal além de detalhar as funções em carreiras específicas dos auditores que o integram.

Representa, pois, atividade estratégica no Estado Democrático Brasileiro, mas tal modelo não pode, em hipótese alguma, estar dissociado do respeito aos elementares direitos do cidadão-contribuinte.

Com efeito, desde 2003 setores da sociedade civil, especialmente vinculados às atividades fiscais e tributárias, têm se debruçado sobre a necessidade de uma Lei Orgânica do Fisco, sobretudo em face da imperiosa fragilidade dos órgãos da Administração Tributária e das atividades dos Auditores-fiscais.

A preocupação com a definição de um modelo organizacional que outorgue capacidade de decisão de suas próprias políticas, seus próprios serviços e recursos, enquanto carreira de estado, tem sido o grande foco desses debates, seja na esfera federal, estadual ou municipal.

A história demonstra a existência de uma reação de diversos segmentos no sentido de manter a sonegação e a corrupção investindo, inclusive, contra a própria atividade dos auditores fiscais no sentido de fragilizá-las, o que mereceu o repudio das associações de classe (ANFIP, FENAFISP, UNAFISCO, SINAIT, FEBRAFITE, FENAFISCO e FENAFIM), que sempre lutaram pelo fortalecimento das prerrogativas dos auditores-fiscais e dos próprios órgãos de arrecadação e fiscalização.

Buscar a uniformização de tratamento para os órgãos e carreiras de todas as unidades da federação é justo e legítimo, mas  não se pode deixar à margem desse processo o respeito às garantias constitucionais e legais dos cidadãos-contribuintes e a necessidade de reforma do modelo tributário.

O grande desafio é promover a defesa de uma Lei Orgânica do Fisco desapaixonada do viés inerente às questões corporativas, deixando-se bem claro que prerrogativas não configuram privilégio e nem que a concessão da autonomia administrativa, funcional, financeira e orçamentária possa ser a senha à criação de um Estado policial fiscal.

A democracia e a cidadania não caminham juntas com o abuso de poder. Pelo contrário.

A composição da Administração Tributária, suas competências, seus recursos prioritários para o desenvolvimento e aprimoramento da atividade fiscal não pode esvaziar o conteúdo normativo-teleológico dos princípios constitucionais e legais assegurados pelo ordenamento jurídico ao cidadão-contribuinte.

As carreiras tipicamente de Estado e, no particular, aquelas que envolvem o aspecto fiscal-tributário, lidam diuturnamente com milhões, ou mesmo bilhões de reais, e devem se preocupar com a preservação de instrumentos que promovam melhor distribuição de renda, crescimento econômico, elevação dos postos de trabalho e, enfim, aprimoramento da máquina estatal de modo a alcançar o correto equilíbrio entre a exação tributária e a justiça social.

A ação fiscal deve estar livre de ingerência política, pois o papel do auditor-fiscal não comporta transação com a coisa pública, ou mesmo subserviência a esse ou aquele Governo.

Se há abuso ou excesso de poder, esse deve ser combatido com todos os mecanismos existentes no ordenamento jurídico, assegurando-se ao infrator os postulados do devido processo legal, da ampla defesa e o contraditório

A atividade do auditor-fiscal envolve risco, e nos últimos anos morreram mais auditores-fiscais em serviço combatendo a corrupção e a sonegação do que delegados da Polícia Federal ou servidores de qualquer carreira de nível superior do serviço público federal.

Neste item, é importante destacar que ao auditor-fiscal cabe uma das funções mais complexas do Estado: a de zelar por um patrimônio que é de todos. Suas funções, por isso mesmo, estão longe de se esgotar em atos burocráticos e mecânicos, e exigem zelo e profunda consciência do alcance social do ofício.

O fortalecimento da Administração Tributária como órgão responsável pela fiscalização e arrecadação já se revela presente nos dias atuais, e basta lembrar que as principais operações desencadeadas pela Polícia Federal, desmantelando redes de corrupção, foram iniciadas na Receita Federal por meio de sua inteligência fiscal, em que o auditores são peças-chaves.

A sociedade clama cada vez mais por órgãos técnicos, impessoais e livres de interferências de ordem diversas, pois a coisa pública exige de seus administradores e gestores o máximo de respeito. Servidor público, na gênese da expressão, tem de servir à sociedade, e não a vontade do "xerife" de plantão.

Estabelecer composição da Administração Tributária, competências de cada órgão, garantias, prerrogativas, deveres, proibições a seus integrantes representa importante missão no Estado Constitucional e Democrático.

É o ‘discrímem' do exercício de determinadas funções que traz consigo a necessidade de estabelecimento de prerrogativas, como aquelas outorgadas aos membros da magistratura, do ministério público e da advocacia, pois a democracia assim o exige em benefício do cidadão, não sendo diferente em relação aos fiscais da Administração Tributária.

O trato com a coisa pública não admite que o servidor se acovarde e nem possa sofrer qualquer tipo de represália que lhe retire a liberdade profissional, pois a promoção da justiça social e a equânime distribuição de renda, geração de emprego, e a preservação da estabilidade econômica exigem o exato cumprimento do plexo teleológico-normativo definido pela Carta da República.

A Administração Tributária não deve se limitar à simples arrecadação de valores, posto que os tributos devem cumprir com sua função arrecadatória e com sua função social simultaneamente, deixando de lado a caricatura que sempre lhe foi imposta de ser apenas como instrumento de receita do Estado.

Apesar de a arrecadação ser, por si só, relevante, na medida em que garante os recursos financeiros para que o Poder Público bem exerça seu mister, a verdade é que, pouco a pouco, descobriu -se outra faceta não menos importante na tributação, que é o da busca da justiça social, que não pode passar, repete-se, pelo constante aumento da carga tributária.

Aliás, o cidadão brasileiro vem pagando a expansão do gasto público, sobretudo o custo do endividamento, e por isso exige limites na arrecadação, controle dos gastos e dos investimentos realizados pelo Estado., o que somente um órgão independente e com claras balizas de Estado e não de governo pode permitir, contribuindo-se, assim, à transparência na gestão e maturidade democrática.

Se a carga tributária é elevada, exige-se que a contraprestação de serviços precisa ser qualificada.

Se há transferência de expressivos recursos da economia para as contas públicas, não se pode descuidar que tal medida enfraquece o investimento e reduz o consumo.

Ora, o não cumprimento da função social do tributo gera uma grave disfunção social, inibindo o setor privado, desestimulando a economia, gerando menos emprego, enfim, evitando o crescimento e o desenvolvimento do cidadão e conseqüentemente da sociedade, e isso compromete por muitos anos o crescimento futuro da economia.

Lembramos que o Estado não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de organização da sociedade. Ela é a soberana, não o inverso.

Portanto, o mesmo rigor que se estabelece na cobrança de impostos precisa haver na prestação de contas.

A luta por justiça e transparência tributária é, para a cidadania brasileira, tão relevante quanto a luta contra a ditadura.

Sem justiça tributária não há democracia, desenvolvimento ou justiça social.

Desenvolvimento econômico não é apenas crescimento econômico e nem tampouco distribuição de riqueza. Pressupõe a distribuição dessa riqueza em favor do bem-estar social e a participação da sociedade.

O tributo deve constituir como instrumento de política econômica conjuntural e estrutural e, portanto, ferramenta indispensável no Estado contemporâneo.

A justa repartição do total da carga tributária entre os cidadãos é imperativo ético para o Estado Democrático de Direito.

A política fiscal tem de ser política de justiça e não mera política de interesses. O legislador fiscal não pode editar leis de qualquer maneira. Deve observar os princípios de justiça fiscal, pois só assim é que promoverá a justiça social.

Com essas reflexões, encerro enaltecendo a iniciativa de se discutir sobre uma Lei Orgânica do Fisco que seja comprometida com a sociedade e não com interesses corporativos.

Muito obrigado".

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (OAB - Conselho Federal) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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