A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor
A inversão do ônus da prova descrita no art. 6, inciso VIII, da Lei 8.078/90 constituiu um dos mais importantes instrumentos de que dispõe o juiz para observando o contraditório e a ampla defesa equilibrar a desigualdade existente entre os litigantes.
O primeiro aspecto a analisar é a origem da palavra “ônus” vem do latim onus que é sinônima de encargo, obrigação. E, “prova” vem do latim probatio que significa aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algo. A expressão originária do latim é o onus probandi, querendo assim significar que aquele que tem o ônus de provar [1].
Dessa forma, o tema ganha enorme relevância nos tempos atuais, de modo que, há muita divergência entre doutrina e jurisprudência a respeito do momento e de quais são os requisitos legais para a decretação deste instrumento processual pelo juiz, pois a questão probatória é ponto crucial e fundamental em nosso sistema processual, vez que é ela que irá demonstrar a veracidade dos fatos narrados pelas partes conflitantes.
Partindo dessa premissa buscamos identificar a finalidade, o momento correto e os requisitos legais para que ocorra inversão, de acordo com o que preceitua o art.6, inciso VIII, da Lei 8.078/90 transcrito abaixo:
“Art. 6°. São direitos básicos do consumidor: (...)
VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências (...).”
1- Finalidade
É do conhecimento de todos os operadores do direito, que como regra, vigora em nosso ordenamento jurídico que o ônus da prova, cabe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito, de acordo com o artigo 333, inciso I. E, de outro lado, incumbe ao réu demonstrar a existência de fato modificativo, impeditivo ou extintivo do direito do autor conforme preceitua o mesmo artigo, no inciso II, ambos do Código de Processo Civil - CPC.
No entanto, em decorrência da reconhecida vulnerabilidade e hipossuficiência do consumidor frente à capacidade técnica e econômica do fornecedor, a regra sofre uma “flexibilização”, a fim de criar uma igualdade no plano jurídico.
Assim, quando à questão envolve a relação de consumo, o CDC é o ponto de partida, aplicando-se, de forma subsidiária, as regras contidas no CPC, em seus artigos 332 a 443, de maneira que não contrariem as disposições protecionistas do consumidor.
Em tal contexto, a inversão do ônus da prova ocorre com objetivo de facilitar a defesa dos direitos do consumidor e, por via reflexa, garantir a efetividade dos direitos do individuo e da coletividade na forma dos artigos 5, inciso XXXII e 170, inciso IV, ambos da CF/88.
2- Requisitos legais para decretação da inversão do ônus
2.1-Critério do juiz
Ao analisá-lo à luz do artigo mencionado acima, compreende-se que cabe ao juiz assegurar a igualdade entre as partes no plano jurídico.
Para tanto, o magistrado possui ampla liberdade no momento de apreciação dos requisitos legais para deferir ou não a medida, conforme dispõe o art.131, do CPC.
Logo, se concluir pela presença dos requisitos (verossimilhança das alegações do consumidor ou a sua hipossuficiência), será seu dever ordená-la. Contudo, se tais requisitos lhe parecem ausentes, indeferirá a inversão.
2.2- Verossimilhança
Ao buscar entender o seu significado é mister observar o princípio da razoabilidade, devendo prevalecer o bom senso do juiz na hora da decisão, haja vista a amplitude da definição, transitar na esfera do provável, e não do absolutamente verdadeiro.
Por conseguinte, a verossimilhança deve ser compreendida como algo plausível e convincente ao passo de serem analisadas sob as regras da experiência do juiz.
Com objetivo de elucidar qualquer dúvida que porventura ainda possa existir a respeito do conceito, recorremos à lição de Carlos Roberto Barbosa Moreira [2], que afirma:
“A verossimilhança se assenta num juízo de probabilidade, que resulta, por seu turno, da análise dos motivos que lhe são favoráveis (convergentes) e dos que lhe são desfavoráveis (divergentes). Se os motivos convergentes são inferiores aos divergentes, o juízo de probabilidade cresce; se os motivos divergentes são superiores aos convergentes, a probabilidade diminui.”
2.3- Hipossuficiência
Conforme exposto anteriormente, a hipossuficiência aqui não se refere simplesmente aquela envolvendo dinheiro, mas sim, quanto ao conhecimento das normas técnicas e à informação.
Nesse sentido, inclusive colaciono o ensinamento de Paulo de Tarso Sanseverino [3], que ao ponderar sobre assunto concluiu:
“A hipossuficiência, que é um conceito próprio do CDC, relaciona-se à vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Não é uma definição meramente econômica, conforme parte da doutrina tentou inicialmente cunhar, relacionando-a ao conceito de necessidade da assistência judiciária gratuita. Trata-se de um conceito jurídico, derivando do desequilíbrio concreto em determinada relação de consumo. Num caso específico, a desigualdade entre o consumidor e o fornecedor é tão manifesta que, aplicadas as regras processuais normais, teria o autor remotas chances de comprovar os fatos constitutivos de seu direito. As circunstâncias probatórias indicam que a tarefa probatória do consumidor prejudicado é extremamente difícil.”
3- Momento da inversão do ônus probatório
O momento processual da inversão do ônus da prova é um tema polêmico. Tal assunto vem provocando acirrados debates doutrinários e jurisprudenciais, uma vez que a lei foi omissa quanto ao momento exato de deferir ou não a medida.
Em conseqüência dessa lacuna, após os debates surgiram três correntes:
A primeira, defendida por Kazuo Watanabe, Nelson Nery Júnior, Ada Pellegrini Grinover entre outros, admitem a inversão do ônus da prova por ocasião da sentença, fundamentando que se trata de regras de julgamento, competindo ao juiz inverter o ônus da prova após o término da instrução e por ocasião em que o juiz for proferir a sentença;
A segunda, sustentada por Tania Liz Tizzoni Nogueira4 considera que, “o autor consumidor deverá já na inicial requerer a inversão do ônus e, desta forma a fase processual em que o juiz deverá se manifestar sobre a questão será no ato do primeiro despacho, que não se trata de mero despacho determinante da citação, mas de decisão interlocutória, passível portanto de recurso de agravo. Tal proceder irá propiciar a defesa dos direitos do consumidor de forma ampla, de acordo com o espírito do CDC, uma vez que em não sendo concedida a inversão poderá o consumidor agravar da decisão interlocutória, e ser então revista a decisão”;
A terceira, defendida por José Carlos Barbosa Moreira, Teresa Arruda Alvim, Humberto Theodoro Júnior entre outros, entendem como momento processual adequado para a inversão do ônus probandi, o despacho saneador, no qual o magistrado, saneando o processo, no intuito de que o mesmo possa prosseguir de forma regular, livre de vícios ou qualquer questões que venham obstar a análise do mérito da causa, colocando em ordem o processo e, consequentemente, determinando as providências de natureza probatória.
4- Jurisprudência
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RAZÕES DO REGIMENTAL DISSOCIADAS DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. SÚMULA 284/STF. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. Ao analisar o recurso especial, a decisão agravada aplicou a Súmula 284/STF quando do exame da suposta violação ao art. 535 do CPC. Nas razões do agravo regimental, a parte agravante visa afastar o referido verbete sumular, sob o argumento de que a ofensa ao art. 877 do CC foi devidamente demonstrada. 2. O argumento posto no presente agravo regimental não guarda pertinência com o fundamento do aresto atacado, atraindo a incidência da Súmula 284/STF ("É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação na permitir a exata compreensão da controvérsia."). 3. Para refutar a conclusão adotada pelo Tribunal de origem, que decidiu pelo cabimento da inversão do ônus da prova, sob o fundamento de que estão atendidos os "requisitos dispostos no inciso VIII, do art. 6º, do Código de Defesa do Consumidor, quais sejam, verossimilhança da alegação e hipossuficiência do consumidor", seria necessário o reexame do conjunto probatório dos autos, o que é vedado no âmbito do recurso especial, a teor do óbice previsto na Súmula 7/STJ. 4. Agravo regimental a que se nega provimento"5.
“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ART. 273 DO CPC. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULAS 282 E 356/STF. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. MATÉRIA DE PROVA. REEXAME. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Inviável o recurso especial quando ausente o prequestionamento das questões de que tratam os dispositivos da legislação federal apontados como violados. 2. A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, fica a critério do juiz, conforme apreciação dos aspectos de verossimilhança das alegações do consumidor ou de sua hipossuficiência. 3. Na hipótese em exame, a eg. Corte de origem manteve a aplicação ao caso do Código de Defesa do Consumidor, e após sopesar o acervo fático-probatório reunido nos autos, concluiu pela configuração da verossimilhança das alegações da parte agravada, bem como de sua hipossuficiência. Desse modo, o reexame de tais elementos, formadores da convicção do d. Juízo da causa, não é possível na via estreita do recurso especial, por exigir a análise do conjunto fático-probatório dos autos. Incidência da Súmula 7/STJ. 4. Agravo regimental a que se nega provimento”6.
5- Conclusão
Como demonstrado ao longo desse estudo, a inversão do ônus da prova descrita no art.6, inciso VIII, da Lei 8.078/90, constituiu um dos mais importantes instrumentos de que dispõe o juiz para observando o contraditório e a ampla defesa equilibrar a desigualdade existente entre os litigantes.
Sua adoção fica a critério do juiz e é pautada em 2 requisitos (verossimilhança e hipossuficiência). Uma vez presente os requisitos cabe ao magistrado ordená-la, do contrário, será indeferida a inversão e, consequetemente, observada a regra geral descrita no art. 333, do CPC.
Igualmente, o que ora fiou realçado, o momento mais adequado para a inversão do ônus deve ser o despacho saneador, no qual o juiz possui a faculdade de determinar providências probatórias, após o conhecimento dos fatos alegados na petição inicial e na contestação, evitando, dessa maneira, qualquer ofensa aos princípios constitucionais: contraditório e ampla defesa.
Ao arremate, cumpre destacar que adoção da medida deve ser analisada no curso do processo, de preferência antes mesmo da abertura da fase instrutória, assim as partes poderão produzir as provas de maneira segura, com inteiro conhecimento do que devem comprovar e, por via reflexa, estará assegurado tanto equilíbrio processual quanto a formação da tutela jurisdicional qualificada (célere, adequada e efetiva).
Notas
1] NOGUEIRA, Tania Lis Tizzoni. Direitos Básicos do Consumidor: A Facilitação da Defesa dos Consumidores e a Inversão do Ônus da Prova. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 10, p. 53, abr./jun. 1994.
2] MOREIRA, Carlos Roberto Barbosa. Notas sobre a Inversão do Ônus da Prova em benefício do Consumidor. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 22, p. 142, abr./jun. 1997
3] SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 348.
4[] NOGUEIRA, Tania Liz Tizzoni. Op. cit., p. 59
5[] STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial n° 2009/0057846-8, Primeira Turma, Ministro Relator SÉRGIO KUKINA, julgado em 17 de setembro de 2013
6] STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial n° 2013/0045740-9, Quarta Turma, Ministro Relator RAUL ARAÚJO, julgado em 28 de maio de 2013