Alternativas às penas de prisão: repensando a visão social a respeito dos sentenciados

Alternativas às penas de prisão: repensando a visão social a respeito dos sentenciados

Ao se analisar historicamente a avolução do tratamento de criminosos, percebe-se que as penas restritivas de Direito, denominadas alternativas, têm maior sintonia com a nova proposta de recuperação criminal.

O crime e a necessidade de punição, seja ela como castigo ou como forma de “regenerar” o ser humano sempre existiram desde as civilizações mais antigas. A igreja considerava a pena como uma penitência para a remissão dos pecados, daí surgirem as penitenciárias como locais de reclusão para reflexão. A diferença desta para os conventos e mosteiros era o caráter compulsório da inserção do interno. Goffman (1987), analisa as prisões, mosteiros e conventos, denominando-as Instituições Totais e tratando das características de cada uma dessas Instituições e dos internos que delas fazem parte. É interessante notar nesta obra, as semelhanças dessas Instituições e sob que justificativas são elas criadas e mantidas.

As penas podiam servir e de fato serviam em algumas localidades e épocas como forma de vingança social, resultando execuções em praça pública, utilizando a forca, guilhotina e outros instrumentos ceifando a vida como um espetáculo popular.

Inicialmente o caráter da pena era retributivo, ou seja, “ao mal do crime, o mal da pena”. No dizer de Muricy (1982), a importância da pena mede-se pelas imposições da cultura, em dado momento histórico-social, variando assim de grupo para grupo e, no mesmo grupo, de época para época. Vê-se, em decorrência das mudanças sociais, as mudanças no sistema penal como um todo, no sentido da pena e da forma de punição. Beccaria (1959) concluiu, em 1764, o clássico “Dei deliti e delle pene”, onde pregava a certeza da punição como tendo maior eficiência que a gravidade dos castigos.

A pena de prisão foi a predominante entre o século XVI e princípios do século XVII. Nessa época pregava-se que o isolamento faria o indivíduo refletir sobre seus “erros” e chegar ao arrependimento e a “regeneração” [1]. Qualquer tipo de diálogo era proibido e as conseqüências psicológicas nos internos começaram a chamar muito a atenção de estudiosos da época. Dostoiewsky (1967), em Recordação da Casa dos Mortos, defende que o regime de penitenciária oferece resultados falsos, aparentes, esgotando a capacidade humana. Mostra como se utiliza a figura do detento ‘remido’ para servir como um modelo de que o sistema é eficiente. Com pensamentos como este é que, na primeira década de XVII, surge o movimento renovador, contrário às arbitrariedades cometidas e à vida desumana existente nos presídios.

De acordo com Miotto (1992), a preocupação em erradicar as torturas e mutilações surgiu em 794 através do Concílio de Frankfurt. No final do séc. XVII, houve a discussão em relação à desproporcionalidade entre o crime e a pena a ser aplicada. O que se percebe com esses fatos e datas é que a preocupação com a pena e o criminoso sempre existiram, inicialmente de forma desestruturada e, a partir da primeira metade do séc. XIX, através da Ciência das Prisões, aparecendo, pela primeira vez na análise desta questão, a sociologia.

Os estudos de caráter sociológicos e psiquiátricos fomentaram a discussão de um novo sistema penitenciário, um sistema em que possibilitasse ao preso benefícios em troca do seu bom comportamento, chegando até a ser libertado de forma condicional antes do final da pena inicialmente imposta. É o surgimento do embrião do Livramento Condicional. Esse novo sistema foi implantado na Inglaterra, no início do século XIX. Junto a essa preocupação veio a de não afastar o interno do convívio social e principalmente do familiar. As visitas familiares e até íntimas começaram a ser permitidas e mesmo incentivadas, no intuito de não afastar o preso de forma tão drástica da sociedade. A possibilidade da liberdade vigiada daria ao sentenciado a oportunidade de um retorno gradativo, sob a tutela do Estado.

O Relatório Final da CPI do Sistema Carcerário da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais concluiu: “a situação exige uma nova política criminal que não atenha apenas à falta de vagas nas prisões, mas que possibilite, antes de tudo, a efetiva reintegração do criminoso ao convívio social, o fim dos métodos violentos como forma de tratamento, a estruturação de um sistema único e o controle efetivo da sociedade sobre seus agentes de segurança”.

Diante da ausência de resultados satisfatórios, houve a necessidade de aplicar formas alternativas à pena privativa de liberdade no intuito de combater a impunidade, obedecendo, porém ao princípio da proporcionalidade do crime com relação a sua pena.

Segundo Bruno (1997) as penas de curta duração não corrigem, mas aprofundam ainda mais o desajuste do criminoso. Pela sua curta duração, não permitem que alcance qualquer resultado útil às práticas corretivas do tratamento penal. E ainda mais, levam o pequeno delinqüente ao convívio com criminosos mais experimentados e endurecidos, que criam em volta uma atmosfera de estímulo ao crime e de aperfeiçoamento de seus meios.

Segundo o Relatório da CPI do Sistema Carcerário, a porcentagem de condenados que tiveram suas penas substituídas chega a, no máximo, 2% do total de condenações. Já nos Estados Unidos esse número chega a 68%, na Inglaterra a 80%, tal qual na Alemanha. Diante dessa variação, vê-se que a aplicação das Penas Alternativas no Brasil é totalmente escassa, apenar de ter sido introduzida em nossa legislação em 1984. Em 1998 a Lei que dispunha sobre a aplicação das Penas Alternativas foi modificada, ampliando seu universo de atuação.

Segundo a nova lei, terão direito à substituição da pena privativa de liberdade aqueles condenados a uma pena não superior a quatro anos, desde que o crime não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa e nos crimes culposos em geral. O sentenciado, porém deve atender aos requisitos do artigo 44 do CP, ou seja, não ser reincidente em crime doloso e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade, os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.

O Estado da Bahia possui, atualmente, cerca de 4616 internos. Calcula-se que cerca de 20% deles poderiam ser submetidos a uma pena alternativa, diminuindo o custo para o estado e o índice de reincidência [2].

O motivo deste tipo de pena não esta sendo aplicado de forma tão constante é a ausência de mecanismos de viabilização e acompanhamento dos condenados. É por tal fato que urge a necessidade da criação de uma Central de Aplicação e Acompanhamento das Penas Alternativas, como um apoio ao judiciário e ponte entre este e a comunidade, trazendo a problemática da situação criminal ao seio da sociedade, mostrando como é responsabilidade geral pensar meios para humanizar a pena e com isso diminuir os índices de reincidência e até de incidência criminal.

Essa Central, conhecida como CEAPA, esta sendo implantada em todo o Brasil com recursos do Ministério da Justiça em parceria com as Secretarias de Justiça e Direitos Humanos.

Não há dúvidas quanto à necessidade da Criação desse aparato para a viabilidade das Penas Alternativas. Porém a forma de gestão ainda deve ser discutida, evitando a ineficiência da Central ou seu funcionamento de forma a não garantir a aplicação da Pena Alternativa dentro dos padrões pela Lei exigidos.

A primeira coisa que se deve entender é que as alternativas à pena de prisão são penas, estabelecidas em Lei para determinados crimes e condenados. Essa questão é de extrema importância, posto que o pensamento geral é o de que esse tipo de execução é uma forma de “passar a mão na cabeça do condenado”. Como conseqüência desse pensamento, têm-se a vontade de “agravar” a pena já estabelecida. Em muitos locais onde ela já é aplicada, noticia-se que muitas instituições recebedoras de apenados para o cumprimento de uma pena de Prestação de Serviço à Comunidade, aloca-os exatamente para as atividades mais degradantes e fazem questão de os diferenciar como sentenciados, criminosos.

Ora, mesmo para quem não é um estudioso da área criminal, é fácil perceber que se a legislação prevê esse tipo de pena para aqueles que cometeram infrações menos graves e são primários é exatamente na intenção de não os tirar do seio da comunidade, da família e do trabalho (quando esses últimos existem, é claro). É fazer com que eles cumpram alguma pena, sem que precisem estar internos num estabelecimento. É a continuidade do convívio social.

Quando ocorre de o sentenciado, mesmo estando em liberdade, ser banido socialmente, a Pena Alternativa de nada possuiu efeito, posto que voltou a ser, como o era no séc. XVI, uma vingança social, financiada e incentivada pelo Estado.

O fato de haver uma Central de Aplicação e Acompanhamento de Penas Alternativas criada pelo Estado, faz com que este legitime, pelo menos para a população, toda a atitude que dela venha. No pensamento social, caso a Central permita tratamentos desumanos ou atitudes de preconceitos, esses passarão a ser entendidos como parte da pena e até necessários para a execução desta.

No Brasil, a pena não tem um caráter retributivo e a vingança é algo que se pensa como um sentimento humano. É perfeitamente compreensível ter raiva de uma situação específica de crime, porém não se pode concordar com a legitimação desse sentimento e a apropriação do mesmo pelo Estado.

Passou a ser comum apresentadores de televisão e locutores de rádio apresentarem programas que investigam e denunciam crimes. Em muitos desses casos, os próprios apresentadores pregam abertamente a necessidade da crueldade na execução da pena. Outros, mais discretos, “apenas” cometem o absurdo de anunciar um culpado e mostrar seu rosto sem que este tenha sido condenado por sentença transitada em julgado. Onde estará o princípio da Inocência estabelecido na Lei Maior que prevê todos serem considerados inocentes até sentença penal condenatória transitada em julgado?

Esse ataque da mídia tem feito com que a maior parte das pessoas concordem com atos de vingança ou, o que é pior, nem notem a gravidade destes e cheguem a achar graça em alguma situação típica de seguimento à Lei de Talião.

É por esse fato que passa a ser imensamente delicada a tarefa da CEAPA em todo o Brasil. Agora há como a população participar da execução penal e esse fato deve ser entendido por todos como de extrema responsabilidade para o bom andamento desse tipo de aplicação de pena. Deve ser uma luta para que a sociedade absorva a idéia de resocialização prevista em nossa legislação. Na verdade essa história de resocializar é extremamente polêmica e necessitaria de todo um estudo para tentar defini-la. Porém o que aqui interessa é a idéia da inexistência da vingança no cumprimento da pena, é entender que cada crime possui sua pena prevista e o juiz a dosará de acordo com características do comportamento pessoal do agente. É entender que de nada adianta a crueldade ser inserida na pena e, independente dessa discussão, mesmo aqueles que a percebem como necessária, devem respeitar a legislação do País em que vivem e sua condição de cidadão, sem ter, portanto o poder de atribuir uma culpa criminal a alguém e muito menos de aplicar a pena que achar necessária.

Não pretendo aqui provar a não eficiência da crueldade na execução de uma pena, apenas demonstrar o que o nosso Estado legitimou e a importância de cada um saber seu papel na questão criminal. Até pouco tempo, a população não tinha nenhum contato com pessoas em cumprimento de pena, exceto os parentes e amigos de internos. A maior parte não tem sequer noção do que é uma penitenciária, da situação de vida imposta pela estrutura falida e desumana. Mesmo as consideradas “modelos” já são vistas como impróprias, porém ainda não há alternativa viável à estrutura penitenciária.

A difusão da aplicação de penas em toda a comunidade fará com que esta, pela primeira vez entre em contato com pessoas que cometeram crimes e que estão em situação de execução da pena. Acrescento esse final porque tenho ciência que, principalmente em bairros pobres, todos os moradores sabem e convivem com pessoas que cometeram diversos crimes e são temidas por todos. Estas, porém, estão impunes e muitas vezes continuam nessa situação. As que foram mencionadas inicialmente são pessoas que cometeram crimes de menor potencial ofencivo e que foram condenadas, estando sob acompanhamento da justiça criminal.

Os condenados a Penas Alternativas teoricamente não são perigosos e, portanto, mais facilmente manipuláveis no sentido da exclusão e da alocação da raiva por outros crimes cometidos e ainda impunes.

O início do trabalho de aplicação das Penas Alternativas será muito difícil e deve ser difundido para toda a sociedade, fomentando a discussão quanto às questões criminais. Porém, pode ser um embrião para a total participação da comunidade na estrutura criminal, disseminando a necessidade do olhar mais atento para essa problemática, no intuito de encontrar soluções viáveis e cada vez menos drásticas para os apenados (não deixando de lado o Princípio da Proporcionalidade entre o crime e a pena a ser aplicada) e para a sociedade, fazendo esta membro ativo na execução penal e no processo de retorno ao convívio social dos egressos.


Bibliografia:

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. Paulo M. Oliveira. São Paulo; Ed. Atena, 1959.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1997

CÓDIGO PENAL BRASILEIRO

CONSTITUIÇÃO DA REPLÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

DOSTOIEVSK, Fiodor Mikhailovitch. Recordação da Casa dos Mortos. Rio de Janeiro; Ed. José Olimpio, 1967

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo; Ed. Perspectiva, 1987.

MIOTTO, Armida Bergamini. Temas Penitenciários.São Paulo; Ed. Revista dos Tribunais, 1992

MURICY, Marília “Prisões: do cárcere de contenção ao moderno penitenciarismo”. Revista do Conselho Penitenciário, nº04. Salvador; Ed. Empresa Gráfica da Bahia, 1982

SECRETARIA DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Censo Criminológico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998.



[1] Coloco entre aspas esta palavra por não concordar com o sentido comumente utilizado, como se houvesse um padrão certo de comportamento humano a ser seguido por todos os indivíduos.

[2] Segundo estudos do Ilanud (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, em relação à reincidência, as penas alternativas apresentam um índice de 12%, enquanto que para os sentenciados que cumprem pena em regime fechado a taxa eleva para 47%.

Sobre o(a) autor(a)
Thais Dumet Faria
Advogada, mestranda em Direito na UNB, membro do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia.
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