Provas ilícitas: da inadmissibilidade a sua constitucionalidade
A recepção da reforma do código de processo penal vem atender a expectativa da Constituição de 88 em cumprir com a proteção das garantias dos cidadãos e contribuir para a unidade e sistematicidade à legislação processual penal brasileira.
Há muito discutido na comunidade brasileira, a reforma do Código de Processo Penal destaca a identificação da lei ordinária com os princípios e garantias processuais expressas na Constituição de 1988. Levando em conta tal modificação, são características salientes ao advento da lei 11.690/08 as alterações substanciais no regime que disciplina a gerência da prova.
Ainda nessa ótica, a jurisprudência já vinha contribuindo para alterações mais precisas e que vieram recepcionadas na lei 11.690/08, são algumas: a delimitação do meio abrangente ao principio do livre convencimento do juiz, a análise do próprio conceito de prova e a sua vinculação com o contraditório e com destaque, o fornecimento da definição e a vedação da admissibilidade da prova ilícita, alterações estas, mais adequadas com a jurisdição constitucional do nosso Estado de Democrático de Direito.
A Lei n. 11.690/08, um dos vários projetos expostos pela chamada "Comissão Ada Pellegrini Grinover", altera vários dispositivos do Código de Processo Penal, concernentes as normas de gerência da prova. Portanto, obedecendo à regra de que as normas processuais têm sua aplicação para o futuro e respeitando os atos processuais já praticados[1] é de fácil elucidação a necessidade de aplicação da lei nos processos já iniciados.
1. DA CONCEITUAÇÃO DAS PROVAS ILÍCITAS NO NOVO CPP
O novo artigo 157 do CPP em seu caput expõe a definição do que vem a ser provas ilícitas após a reforma, visto que, antes a disciplina da admissibilidade das provas estava vinculada ao regime do art. 5º, LVI, da Constituição Federal, que definia: “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” Afirmada a inadmissibilidade das provas ilícitas e estipulada conseqüências, visto a declaração da sua ilicitude, defini-se provas ilícitas por aquelas obtidas por meio da violação a normas constitucionais ou legais. Daí que sua vedação processual busca a proteção a direitos e garantias fundamentais, nem se curvando, ao impulso estatal de produção e/ou obtenção de provas. O que se encontra, é na verdade “uma forma especial de tutela destinada a assegurar a efetividade daqueles direitos e garantias.[2]” Doutrinariamente, as provas ilícitas são aquelas que apresentam afronta as normas do Direito Penal, destaque este, que fora construído apenas após a interpretação autônoma da legislação outrora comentada.
Outro detalhe, ora tocante as provas ilícitas é o reconhecimento do momento que se configura sua ilegalidade. Esse reconhecimento se dá no momento de sua obtenção, como exemplo do uso de tortura para obter-se confissão. Esta posição contribui para o entendimento, nem sempre majoritário, de que tal obtenção sempre se dará de modo extraprocessual, ou seja, a produção de provas taxadas como ilícitas pressupunha uma violação no momento da colheita, anterior ou, mormente a execução do processo.
“Não parece ter sido a melhor, assim, a opção do legislador nacional por uma definição legal de prova ilícita, que, longe de esclarecer o sentido da previsão constitucional, pode levar a equívocos e confusões, fazendo crer, por exemplo, que a violação de regras processuais implica ilicitude da prova e, em conseqüência, o seu desentranhamento do processo. O descumprimento da lei processual leva à nulidade do ato de formação da prova e impõe a necessidade de sua renovação, nos termos de que determina o art. 573, caput, do CPP.”
A nova legislação passou, portanto, a aferir situações especiais relacionadas à prova ilícita. Nesse contexto, trata das denominadas provas ilícitas por derivação, da admissibilidade de provas oriundas das provas ilícitas, quando puderem ser obtidas por uma fonte independente das provas ilícitas.
1.1 DO TRATAMENTO LEGAL DAS PROVAS ILÍCITAS
A disposição renovada do art. 157 e seus incisos, na tentativa de comprimento constitucional na gerência do manuseio da prova ilícita, preocupa-se em manifestar, em determinadas situações, a estipulação de certas diligencias.
Em primeiro lugar, apresenta-se o disposto no § 1º do art. 157 que trata de cuidar das chamadas provas ilícitas por derivação, que agora passam a ser taxadas ilícitas com determinação legislativa, não se furtando de relembrar o relato do Min. Sepúlveda Pertence em Habeas Corpus 69.912, que por seis votos a cinco - DJ 25.03.94, o Supremo Tribunal Federal entendera que a prova ilícita contamina, por derivação, a prova que, com base nela seja obtida mesmo a obtenção sendo lícita.
Discute-se aqui, se a exclusão deva ser da prova obtida por violação de uma regra do ordenamento ou, se somente deve haver a retirada da prova obtida por derivação, assim como as eventuais outras provas.
Essa questão também fora recepcionada pela Suprema Corte Norte- Americana, onde formulou a fruit of the poisonous tree doctrine com base no julgamento do caso Silverthone Lumber Co. v. U.S, na década de 20. Segundo essa teoria, os vícios inclusos em determinadas provas corrompem os demais meios de uso probatório dos quais dela se originam.
Desta monta, afirmarmos ser necessário reconhecer a impossibilidade de se negar a contaminação da prova obtida pela ilícita. Assim, indo além de uma simples leitura do princípio da causalidade se reconhece que, em função da razoabilidade do fim para que fora obtida, a análise sobrepujada as provas ilícitas por derivação deva obedecer a princípio da finalidade para qual fora estabelecidas as proibições, ou seja, se apreciará a finalidade para que suas proibições são estabelecidas.
Tal entendimento foi integralmente adotado na jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal, em votos do Em. Min. Celso de Mello, especialmente nos HCs 69.912/RS, 73.351/SP e 72.588/PB (além de ter sido invocado no relevantíssimo julgamento da Ação Penal originária 307-3/DF – caso de crimes de corrupção passiva, falsidades diversas e outros delitos, em que figuravam como réus, dentre outros, o ex-Presidente Fernando Collor de Melo e Paulo César Farias; neste caso, considerou-se ilícita a prova obtida por apreensão de um computador numa diligência de busca em empresa – que se considerou busca domiciliar – sem mandado judicial, além de gravações de conversas gravadas por um dos interlocutores, sem ciência do outro).[3]
Em seguida, a legislação preocupou-se em ressalvar a condição de admissibilidade das provas lícitas derivadas das ilícitas, condicionando-as a obtenção por meio de uma fonte independente da ilicitude das provas como é disposto na parte final do §1º do art. 157 do CPP. Assim, na verificação da existência da fonte independente, a nova legislação retira o entendimento de que a prova derivada tem duas nascentes – ilícita ou lícita – de maneira que, se suprimida a ilegalidade da fonte, a fonte probatória persistisse existente, sendo então considerada válida no processo.
Importa, então, avaliar se o meio de obtenção da prova foi ou não ilícito. Afinal, e aqui vai o que se acredita ser o argumento de maior autoridade e precisão técnica, é o texto (e o contexto!) constitucional que deve determinar a exegese da norma infraconstitucional (máxime daquela que procura trazer interpretação autêntica a um instituto do direito constitucional positivo), não o inverso. A garantia constitucional da inadmissibilidade das provas ilícitas é, na verdade, a garantia constitucional de que não se violem direitos e liberdades públicas para obter provas, e de que, se houver qualquer violação, que tais provas sejam inadmissíveis em qualquer processo.[4]
Porém, esse tratamento aferido a gerência da prova ilícita é, de bom senso, haja visto, que com a recepção da Constituição de 88, as liberdades públicas no meio processual obedecem, não mais a um tratamento operacional probatório mas, atentam agora para a obediência do devido processo legal.
2 DO DESACERTO CONCEITUAL E DA ADMISSIBILIDADE
Segundo o entendimento do legislador, afirmado no final do §1º do art. 157 e, aclarado no §2º, de que basta a mera possibilidade[5] de que a prova obtida advenha de meio lícito para que se afaste a contaminação pela ilegalidade do ato de obtenção e por expressar que, “considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova” afasta, equivocadamente, a proteção constitucional preocupada em colocar a finalidade da vedação ao uso de provas ilícitas.
O equívoco surge quando no §2º do art. 157, se aferi do texto a mera possibilidade de que a prova derivada seja obtida de uma fonte legal, não sendo necessário a efetiva obtenção regular mas, a sua qualidade de ser possível. Trata-se, portanto, de um equívoco que compromete a garantia constitucional vinculada a essa proteção. A questão em voga, traduz a ilusão do legislador em não reconhecer lacunas no seu texto.
Assim, o sistema estabelecido em torno da inadmissibilidade de provas ilícitas, confunde as exceções da fonte independente e da inevitable discovery, acunhado no sistema norte-americano. Primeiramente, o reconhecimento conceitual da fonte independente no caso Bynum v. USA, 1960, onde por meio de obtenção das digitais de um suspeito através da sua prisão ilegal levaram ao caso prova ilícita, prova esta que fora afastada do processo mas que, após a descoberta das mesmas digitais que constavam de um cadastro antigo do FBI foram reconhecidas. E a descoberta inevitável, no caso Nix v. Willians – Willians II, nos inícios da década de 80, onde por meio de confissão ilegalmente obtida fora encontrado o corpo da vitima, momento este em que já se encontrara a ampla busca do local onde se encontra o corpo, busca que invariavelmente passaria pelo local em que estava escondido o corpo.
Tais exceções, parecem ter sido acolhidas pela nova legislação probatória. Quanto a fonte independente, parece ser explicita no §1º, in fine, e no §2º do art. 157 a sua recepção, pois determina a vinculação a fonte legal para a obtenção de provas. No que trata a descoberta inevitável, persiste a preocupação com o fato dessa exceção, ser nutrida por especulações, haja visto, que somente em caso concreto teremos como considerar ser inevitável ou não o recolhimento da prova de modo legal, mesmo suprimindo a ilegalidade.
Assim, encontramos a advertência de Denilson Feitosa[6] em ser necessária a demonstração precisa de dados, de que invariavelmente a prova seria obtida por meios ordinários com consonância aos “trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal” capaz de conduzir a obtenção lícita da prova.
No entanto, devemos atentar para a justificada proporcionalidade na determinação da inadmissibilidade de provas ilícitas. No Brasil, é pacifico o reconhecimento da prova ilícita para a demonstração de inocência do réu, a prova ilícita pro reo, é admissível no processo criminal quando, aplicada a proporcionalidade do trato das garantias fundamentais para o cidadão contra o poder estatal em busca de vantagem processual.
“Na jurisprudência pátria, somente se aplica o princípio da proporcionalidade pro reo, entendendo-se que a ilicitude é eliminada por causas excludentes da ilicitude (RJTJSP 138/526) ou em prol do princípio da inocência” (STF – 1ª T. HC 74.678/DF – Rel. Min. Moreira Alves)
Como se viu, a recepção das provas ilícitas na legislação, ora aferida, atente ao que no nosso Estado de Direito, preservamos por garantias constitucionais democráticas. Considerando assim a busca real da verdade no processo, sem prejuízo da proporcionalidade na guarda das garantias do cidadão.
REFERÊNCIAS FINAIS
O novo tratamento da prova penal trazida pela Lei n. 11.690/08, traduz na aplicação de seus dispositivos e na jurisprudência um avanço significativo na luta pela democratização dos espaços públicos. As regras estipuladas nessa nova legislação trazem uma profunda reflexão sobre o contexto social brasileiro. Porém, não é o fato de se ter afastado normas draconianas que o mundo penal está a salvo de qualquer inconstitucionalidade.
A Constituição brasileira determina categoricamente a inadmissibilidade das provas obtidas de meio ilícito, mas, cuidadosamente apresenta a proporcionalidade no trato com o cidadão. Numa expectativa de apresentar-se democrática concede aberturas para a garantia das garantias dos cidadãos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. As reformas no processo penal: As novas leis de 2008 e os projetos de reforma. – São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2008. p. 265.
PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal. 3ª ed. Niterói: Impetus, 2005
QUEROBIM, Eduardo. Lei 11.690/08 e a Regulamentação do Inc. LVI do Art. 5º da Constituição Federal - inadmissibilidade processual das provas ilícitas. Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, 2008. p. 93 – 94.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. SP: Saraiva, 2003, p. 109-115.
[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 25. ed. SP: Saraiva, 2003, p. 109-115.
[2] MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. As reformas no processo penal: As novas leis de 2008 e os projetos de reforma. – São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 2008. p. 265.
[3] QUEROBIM, Eduardo. Lei 11.690/08 e a Regulamentação do Inc. LVI do Art. 5º da Constituição Federal - inadmissibilidade processual das provas ilícitas. Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, 2008. p. 93 – 94.
[4] QUEROBIM, Eduardo. Lei 11.690/08 e a Regulamentação do Inc. LVI do Art. 5º da Constituição Federal - inadmissibilidade processual das provas ilícitas. Revista Jurídica. São Paulo: Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, 2008, p 93 - 94
[5] Grifo nosso.
[6] PACHECO, Denilson Feitoza. Direito processual penal. 3ª ed. Niterói: Impetus, 2005.