Ofensa ao Estado Democrático de Direito na súmula vinculante nº 9

Ofensa ao Estado Democrático de Direito na súmula vinculante nº 9

Análise da súmula vinculante n° 9 do STF frente às atuais diretrizes do Direito Penal brasileiro, em especial da fase de execução, e do Estado Democrático de Direito.

1 Introdução

Quando se fala em Estado Democrático de Direito, súmulas vinculantes e a Lei de Execuções Penais, sempre há muito que se discutir. Este artigo pretende fazer o mesmo, incluindo os três temas no mesmo assunto, já que estão direta e conturbadamente relacionados nesta súmula do STF.

2 A edição da súmula

Assevera a súmula: "O disposto no artigo 127 da Lei 7.210/84 foi recebido pela ordem constitucional vigente e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58". O art. 127 é o que ordena a perda do tempo remido por trabalho no caso de preso que comete falta grave, e o art. 58 fala que “o isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a trinta dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado”.

Como se vê, a intenção da súmula foi fazer com que o preso que cometesse falta grave perdesse todos os dias remidos pelo seu trabalho, independentemente do tempo que isso representasse.

Alguns precedentes foram citados para que se justificasse a edição da súmula, que, na verdade, não deveria ter um entendimento tão divergente, uma vez que em termos de texto, as normas contidas nos artigos citados poderiam ser consideradas complementares – um leitura textualmente cabível.

3 O Estado Democrático de Direito e a execução penal

Poucos termos jurídicos tem seus limites tão mal definidos em sua acepção. Talvez até porque os limites do próprio Estado Democrático de Direito ainda não estejam bem definidos, ou sejam por si só grandes demais para um entendimento mais rígido, muito há o que se discutir sobre o que é este paradigma estatal, qual o seu alcance, e o que está de acordo com ele ou não, principalmente no Direito Penal.

Consideraremos aqui a visão bastante difundida entre os cientistas legais de que a execução penal deverá servir não só para punir e prevenir a ocorrência dos crimes, mas também para re-inserir o condenado na sociedade.

É com base nesse pensamento, por exemplo, que as penas restritivas de direitos, como a prestação de serviços comunitários, são tão bem quistas no mundo Penal. Afinal, se é para incentivar a ressocialização do condenado, nada melhor do que não tirá-lo fisicamente da sociedade, e mais, fazer com que um interaja com o outro beneficamente.

Como ainda há a sanção física nos crimes mais graves (mesmo que isto seja representado só pela dosimetria da mesma, e não pelo tipo legal em si), o Estado brasileiro oferece tanto a proteção ao indivíduo na forma da pena – não haverá pena de morte, perpétua, de trabalho forçado, banimento ou cruéis – como também na forma de deixá-lo mais perto da sociedade através de suas ações, o que é nitidamente constatado na remição da pena pelo trabalho e estudo.

Desta forma, enquanto o preso paga pelo que fez contra a sociedade, também se prepara para sair de lá com uma melhor formação, currículo, capacidade, e, acima de tudo, poderá reduzir sua pena de acordo com o seu mérito, com as suas ações.

Estas características fazem parte da democracia e da humanidade da execução penal, sendo essenciais para que a hoje tão utópica ressocialização passe a ser a regra do nosso ordenamento jurídico.

4 A ofensa da súmula vinculante n° 9 ao Estado Democrático de Direito

Como dito, a edição dessa súmula faz com que o preso que cometa falta grave perca o direito à remição dos dias trabalhados, não havendo limite para esta sanção.

Ora, isso é uma hipocrisia legislativa. Se no art. 58 da própria LEP, o legislador atesta que trinta dias é o tempo máximo para as sanções executórias do réu, é porque considera que qualquer sanção acima dos 30 dias ultrapassa os limites da razoabilidade e da humanidade; considera que este é o tempo máximo a que se pode condenar um preso a qualquer coisa que não seja um crime propriamente dito.

Se não bastasse a inteligência da lei afirmar este pensamento, ainda vê-se a sanção ser possivelmente maior para aquele preso que trabalha, que estuda, que tenta de alguma forma voltar melhor para a sociedade. Não há porque se condenar o preso que mantém atividades lícitas e digníssimas, se não essenciais para o fortalecimento de uma nação, a ter uma pena maior que a de outros presos, já que somente no caso de remição da pena é que este limite temporal de 30 dias poderá ser ultrapassado.

E o que se dizer então do princípio da legalidade? Talvez o principal formador das diretrizes do Direito Penal, está inscrito no inciso XXXIX do art. 5° da CF: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Por questão de hermenêutica, deve-se atentar ao fato de que não basta apenas haver uma prévia cominação legal, e sim haver limites da pena. Desta forma, a pena mínima e a máxima para qualquer infração penal deve estar previamente definida – é flagrantemente injusto um preso perder 100 dias de remição da pena (em torno de 1 ano de trabalho) e outro perder 10 (1 mês) pelo mesmo fato, sendo que, teoricamente, lembrando-se das bases de dosagem da pena, aquele que mais trabalhou merecia, na verdade, uma pena menor que a do outro – ou, no máximo, igual.

Há ainda de se lembrar que são constitucionalmente proibidas as penas de trabalho forçado. Se o preso trabalhava para poder sair mais cedo da cadeia, e não vai mais fazê-lo, é possível não considerar o trabalho forçado assim tão longe do fato – já que a prestação do preso, feita, será usufruída por alguém, enquanto ele não terá direito a nada.

Outra discussão que deve ser feita é trazida à tona pelos comentários de Luiz Flávio Gomes afirma que:

“Mesmo que já haja decisão judicial reconhecendo os dias remidos, ainda assim, a falta grave afeta tudo que fora conquistado pelo presidiário. Desconsidera-se a coisa julgada. Fundamento: essa coisa julgada não seria material e teria a natureza de rebus sic stantibus (coisa julgada dependente de uma condição futura, qual seja, o cometimento de falta grave).”

Valendo-se de certa ousadia, é possível discordar do renomado jurista em um ponto: a da natureza jurídica da sentença. A sentença que declara os direitos à remição não deve ser considerada meramente declaratória de direito, e sim constitutiva, ou seja, uma sentença que irá alterar uma relação jurídica previamente estabelecida: a do condenado e seu cumprimento de pena com o Estado. Se antes a pena era de 4 anos, por exemplo, e são retirados 3 meses daí, a relação de “dívida” para com a sociedade passa a ser de 3 anos e 9 meses, não de 4 anos mais.

Em que pese esta densa discussão, há de se perceber, porém, que é clara a ofensa à coisa julgada nesta lei. Isto porque se há a sentença declarando o direito do réu, ele se torna adquirido, não podendo, teoricamente, outra sentença tirá-lo. Neste caso, deve-se considerar que o Direito Penal repudia a retroatividade agressiva ao réu. Analogicamente à revisão penal, os efeitos de uma sentença só poderiam ser mudados em favor do réu.

5 Considerações finais

Como demonstrado, a súmula vinculante n° 9 do STF traz diversas ofensas ao Estado Democrático de Direito, assim como diversas incongruências com as diretrizes penais atuais.

Frente esta situação, melhor seria estabelecer penas determinadas para o que hoje é considerado falta grave, ou mesmo respeitar o limite anteriormente imposto pelo art. 58 da LEP para as sanções da fase executória. Com o devido respeito ao órgão máximo do judiciário brasileiro, foi um tanto quanto infeliz, repressiva e retrógrada, a edição da dita súmula, incondizente com o objetivo para que tanto se luta hoje no Brasil.

Sobre o(a) autor(a)
Luís Mário Leal Salvador Caetano
Advogado militante, pós-graduando em Direito Civil pela Universidade Anhanguera, bacharel em Direito pela Universidade de Uberaba, ex-economiário da Caixa Econômica Federal, colaborador em diversas publicações especializadas.
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