A perfeita desordem - ilegalidade da tabela Tunep da ANS

A perfeita desordem - ilegalidade da tabela Tunep da ANS

Trata da latente ilegalidade praticada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar na utilização da tabela Tunep para o ressarcimento ao SUS. As informações aqui contidas podem ser muito úteis para as operadoras, bem como para a sociedade.

A Lei 9.656, de 3/6/1998, que trata dos planos e seguros privados de assistência à saúde, instituiu, em seu artigo 32, o ressarcimento ao Sistema Único de Saúde – SUS, dos atendimentos previstos nos contratos dos planos de saúde, prestados por integrantes do SUS. Esse polêmico instituto foi criado sob o argumento de evitar o enriquecimento sem causa das Operadoras, além de coibir o encaminhamento de pacientes pelas empresas de planos de saúde à rede pública, o que desonera sua própria rede. Para a rede particular, antes da inserção dessa obrigação no ordenamento jurídico, era mais vantajoso induzir o atendimento de determinados serviços ao SUS, do que efetuar o serviço, pois o custo de determinados atendimentos é alto. Inflava-se a rede pública de pacientes com condições de arcar com planos de saúde, enquanto os verdadeiramente necessitados morriam nas filas dos hospitais aguardando atendimento.

Sob esses argumentos, legitimou-se o reembolso aos cofres públicos de cada atendimento feito pelo SUS a beneficiários de planos de saúde identificados, já tendo gerado cerca de R$ 72 milhões ao erário, divididos entre o Fundo Nacional de Saúde (38%) e o restante entre os prestadores de todos os Estados. Os que receberam os maiores valores foram São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia.

A identificação é feita por um cruzamento do banco de dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS com as informações do cadastro de planos de saúde registrados na ANS. Gera-se um Aviso de Internação Hospitalar, enviado periodicamente à Agência Reguladora, que enseja um processo administrativo de cobrança. Se um beneficiário sofre um acidente e é levado pelos bombeiros à emergência de um hospital público, será identificado pelo hospital, que transferirá o ônus do atendimento à respectiva operadora. Esta avaliará se havia previsão contratual para cobertura do atendimento em emergência, e caso comprove a inexistência da previsão, poderá afastar o reembolso. Existem, atualmente, cerca de R$ 359 milhões aptos à cobrança, referentes aos processos não impugnados.

Segundo o Procurador Federal Leonardo Vizeu Figueiredo1, em seu manual jurídico de planos e seguros de saúde, “a medida é meramente restituitória, tratando-se de ingresso para o restabelecimento dos valores que o Erário despendeu com serviços médicos, cuja responsabilidade incumbia às operadoras”. Em que pese a duvidosa constitucionalidade do instituto, o STF e o STJ decidiram pela manutenção da medida, seguindo a linha defendida pelo doutrinador. O Tribunal Pleno do Supremo se manifestou na ação direta de inconstitucionalidade abaixo transcrita, rechaçando a aplicação do instituto.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ORDINÁRIA 9.656/98. PLANOS DE SEGUROS PRIVADOS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE. MEDIDA PROVISÓRIA 1730/98. PRELIMINAR. ILEGITIMIDADE ATIVA. INEXISTÊNCIA. AÇÃO CONHECIDA. INCONSTITUCIONALIDADES FORMAIS E OBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. OFENSA AO DIREITO ADQUIRIDO E AO ATO JURÍDICO PERFEITO.(...) 4. Prestação de serviço médico pela rede do SUS e instituições conveniadas, em virtude da impossibilidade de atendimento pela operadora de Plano de Saúde. Ressarcimento à Administração Pública mediante condições preestabelecidas em resoluções internas da Câmara de Saúde Complementar. Ofensa ao devido processo legal. Alegação improcedente. Norma programática pertinente à realização de políticas públicas. Conveniência da manutenção da vigência da norma impugnada.(...) ADI-MC 1931 / DF - DISTRITO FEDERAL MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator(a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA
Julgamento:  21/08/2003           Órgão Julgador:  Tribunal Pleno DJ 28-05-2004 PP-00003          EMENT VOL-02153-02 PP-00266


A 1ª Turma do STJ demonstrou entendimento favorável à legalidade do ressarcimento ao SUS, no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 670807:


PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INSCRIÇÃO NO CADIN. NATUREZA DO DÉBITO (LEI 10.522/02, ART. 2º, § 8º). HIPÓTESES LEGAIS AUTORIZADORAS DA SUSPENSÃO DO REGISTRO (LEI 10.522/02, ART. 7º). 1. O ressarcimento devido pelas operadoras de planos de saúde à Agência Nacional de Saúde Suplementar, em decorrência de atendimentos a beneficiários de seus planos pelo Sistema Único de Saúde, tem natureza indenizatória, não se considerando débito referente a "preços de serviços públicos ou a operações financeiras que não envolvam recursos orçamentários", para fins do art. 2º, § 8º, da Lei 10.522/02 (conversão da MP 2.176-79/01). 3. Agravo regimental provido, para negar provimento ao recurso especial. AgRg no REsp 670807 / RJ AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2004/0098747-6 Relator(a) Ministro JOSÉ DELGADO (1105) Relator(a) p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124) Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 08/03/2005 Data da Publicação/Fonte DJ 04.04.2005 p. 211

Por outro lado, a tabela utilizada para reembolso dos valores – Tunep - deve ser questionada judicialmente, pois a Lei 9.656/98 determina, no art. 32, § 8º2, que os valores reembolsáveis não sejam inferiores aos praticados pelo SUS, nem superiores aos das operadoras.  Ademais, esta foi instituída por Resolução Normativa e tal ato deve se submeter aos limites impostos pela lei à qual está vinculado. A aplicação da atual tabela transcende poder normativo das agências reguladoras.


No manual jurídico supracitado3, em que pese se defenda o ressarcimento ao SUS, consta que a atividade normativa das agências fica limitada aos parâmetros estabelecidos na lei delegadora, tendo de se conformar aos preceitos estabelecidos nesta. Os preceitos normatizados por tais autarquias deverão estar em perfeita consonância com a legislação que verse sobre o tema.

O STJ já esteve diante de recursos que criticavam a aplicação da tabela, conforme os julgados que se seguem, demonstrando a aparente discrepância da tabela com a Lei. Todavia, para se averiguar se a discrepância realmente existe, somente por meio de prova pericial, o que é incompatível em sede de Recurso Especial. As operadoras não fizeram o “pré-questionamento da matéria”, o que levou à denegação dos recursos, com base nas Súmulas 282 e 356 do STF. Ainda assim, a Corte Superior já se manifesta pela possibilidade de revisão dos valores da Tunep em face de suas limitações legais:

PROCESSUAL CIVIL. RESSARCIMENTO AO SUS. LEI Nº 9.656/98. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE ALEGAÇÃO ACERCA DE AFRONTA AO ART. 535 DO CPC. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS NºS 282 E 356 DO STF. TABELA TUNEP. VALORES NÃO CONDIZENTES COM OS DE MERCADO. REEXAME DE MATÉRIA PROBATÓRIA. INVIABILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. PREQUESTIONAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. (...) II - A recorrente justificava a suposta violação ao art. 32, § 8º, da Lei nº 9.656/98, pelo fato de que os preços cobrados com base na tabela TUNEP não refletiriam o valor de mercado, questão essa que não foi em momento algum abordada pelo Colegiado de origem, o que obsta a apreciação do apelo nobre ante a incidência dos verbetes sumulares nºs 282 e 356 do STF. III - Ademais, a verificação de tais alegações não poderia mesmo dar-se nesta sede especial, tendo em vista que implicariam em revolvimento de matéria fático-probatória, o que é vedado pelo enunciado sumular nº 7 deste STJ. (...) V - Agravo regimental improvido. AgRg no REsp 919734 / RJ AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 2007/0013277-1  Relator(a) Ministro FRANCISCO FALCÃO (1116) T1 - PRIMEIRA TURMA -Data do Julgamento 17/05/2007 Data da Publicação/Fonte DJ 04.06.2007 p. 323

Para utilizá-la, a ANS alega que foi definida por um processo desenvolvido na Câmara de Saúde Suplementar, com os segmentos da sociedade da área de saúde; a discussão desses valores abrangeu o território nacional, fazendo-se uma média ponderada, e os valores desta incluem todas as ações necessárias para o pronto atendimento e recuperação do paciente. Porém, a Agência já parece sinalizar mudanças. Na 43º reunião da Câmara de Saúde Suplementar, sugeriu-se a substituição da atual tabela pela do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS, cujos valores são menores dos aplicados atualmente. Será formado um grupo técnico para analisar mais detalhadamente a nova proposta de ressarcimento.

A ilegalidade da Tabela Tunep não resiste a uma prova pericial, dada a sua discrepância de valores com a tabela do SUS e os valores operados no mercado, estando em confronto com o art. 32, §8º, da Lei 9.656/98. Enquanto a ANS não torna lícita a tabela de ressarcimento, as Operadoras de planos de saúde podem pleitear em juízo a redução dos valores a serem ressarcidos ao SUS, desde que se aborde o tema no Tribunal de origem. Aos cidadãos, cabe questionar o direcionamento dado pelo Estado da verba arrecadada pela ANS, absolutamente maior do que deveria ser, e, ainda assim, a saúde pública continua em perfeita desordem e em constante retrocesso.


[1] Figueiredo, Leonardo Vizeu, em “Curso de Saúde Suplementar: manual jurídico de planos e seguros de saúde” – São Paulo: MP Editora 2006. [2] § 8o  Os valores a serem ressarcidos não serão inferiores aos praticados pelo SUS e nem superiores aos praticados pelas operadoras de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei. [3] Pág. 99, do “Curso de Saúde Suplementar: manual jurídico de planos e seguros de saúde” – São Paulo: MP Editora 2006.
Sobre o(a) autor(a)
Adriana Nogueira Tôrres
Integrante do escritório Antonelli e Associados Advogados, membro da Comissão Brasileira das Mulheres da Carreira Jurídica do Rio de Janeiro.
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