O Tempo do Direito

O Tempo do Direito

O artigo resultou do estudo da obra “O tempo do Direito”, onde François Ost analisa a interessante relação dialética, que existe entre o direito e o tempo, através de recorrências à mitologia grega, à filosofia e às ciências sociais e políticas.

Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára

(Cazuza)

O artigo resultou do estudo da obra “O tempo do Direito”, onde François Ost analisa a interessante relação dialética[1], que existe entre o direito e o tempo, através de recorrências à mitologia grega[2], à filosofia e às ciências sociais e políticas. Demonstra a intervenção direta que existe entre o tempo e o direito, constituída pela sedimentação que o tempo confere à Lei, a qual, por sua vez, delineia caminhos norteadores do futuro e amplia a discussão histórico-social a respeito das convenções temporais e legais que embasam e caracterizam as estruturas sustentadoras das civilizações.

Antes de iniciar a analise do texto é fundamental fazer uma breve e simplificada referência sobre a utilização da mitologia grega.

O mito[3] expressa o mundo e a realidade através de uma essência que é transmitida em representações coletivas de símbolos, em histórias de deuses e heróis da Antigüidade, mostrando características e situações típicas da existência humana, como fecundação, nascimento, morte, união, separação, guerra, paz, etc.

Nas antigas civilizações, os mitos desempenhavam a função de expressar e exemplificar as crenças, os princípios, os rituais, as regras, de modo que eles eram realidades “vivas”, códigos da vivência primitiva e de sua sabedoria.

A utilização da mitologia para fazer a relação entre o tempo e o direito é pertinente porque o mythos é uma das formas de compreender a vastidão da experiência humana, independente do momento ou da cultura em que se vive.

“No princípio havia o Caos, um imenso espaço ilimitado. Então surgiu Gea (ou Gaia), a Terra, a primeira realidade sólida. Depois veio a Noite. Mas ainda restava um espaço vazio sobre, e para preenchê-lo ela criou um ser igual a si, o Céu (Urano). Gaia e Urano uniram-se. Quando o Caos organizou-se com as divindades primordiais chamou-se Cosmos.” (Hesíodo - séc. Vlll AC).

No texto de abertura do livro o Autor descreve a história de Cronos[4]:

O reinado de Cronos, o Deus-tempo, iniciou com a dissolução da união entre Urano, o céu, e Gaia[5], a terra.

Urano, além de ser um tirano, odiava seus próprios filhos, por isto mantinha todos presos no interior da Mãe: cada vez que nascia um filho, Urano o retornava ao ventre de Gaia. Para libertar os filhos e fazer cessar as maldades do marido, Gaia tramou contra Urano e incitou o filho mais novo, Cronos, a castrar o Pai. Da ferida de Urano três gotas que caíram na terra deram origem às Deusas Eríneas, de longa memória e dedicadas à vingança dos crimes de sangue.

A violenta mutilação motiva a separação do Céu e da Terra. Os outros filhos de Urano e Gaia, chamados Ciclopes, foram mandados para Tártaro e Cronos tomou o lugar do pai.

Cronos, um dos Titãs, reinou entre os deuses do Olimpo durante um período de prosperidade conhecido como Idade Dourada, mas uma profecia dizia que ele seria vencido por um filho. Assim, temendo uma revolta como a que ele teve com o seu pai (Urano), passou a devorar seus filhos no momento que nasciam. Mas Reia, a sua esposa, inconformada, ao nascer o último filho, o escondeu em uma gruta, deu-lhe nome de Zeus (Tesouro que reluz), e entregou ao marido uma pedra envolta em faixas ao invés da criança. Cronos não percebeu o engodo e engoliu a pedra.

Ao chegar à idade adulta, Zeus, liderou uma revolta que deu fim no reinado de Cronos, seu pai. Assim que a profecia se cumpriu e Zeus auxiliado por Gaia destronou Cronos, na guerra que ficaria conhecida como Titanomaquia, Zeus libertou definitivamente seus irmãos e baniu os Titãs para o Tártaro.

Zeus é considerado o Senhor dos Céus e o Deus Supremo da Mitologia Grega equivalente, em Roma, a Júpiter. É ele quem distribui o bem e o mal e governa toda a humanidade. O seu símbolo é o trovão.

A história expressa o aspecto negativo do tempo.

Cronos se coloca na posição Deus-Tempo, separa o Céu da Terra e bloqueia o passado e o futuro. Ou seja: corta o elo com o passado ao castrar o seu pai e bloqueia o futuro ao engolir seus filhos. Seu pai, Urano, ao fazer os filhos regredirem ao útero da mãe, bloqueia o futuro.

Urano e Cronos conquistaram o poder de governar a terra pela violência e pela negação do tempo. Ao impedirem o desenvolvimento dos filhos ou da sua descendência são punidos pelos seus próprios filhos. Inicia um período de violência compulsivo e repetitivo, pois responsáveis pelos comportamentos violentos e arbitrários são vítimas de idêntica violência. Em resumo: o tempo dos tiranos esgota-se num presente estéril, sem memória nem projeto.

O Autor exemplifica as manifestações da não aceitação do tempo na atualidade:

a) o passado que não passa: em países como a Ruanda onde a ocorrência de genocídio[6] impune compromete qualquer esperança de reconciliação;

b) o presente eternizado e a ausência do futuro: os países satélites da União Soviética.

Haja Hoje para tanto Ontem.

(Paulo Leminski)

c) o futuro abafado: pela proliferação de medidas jurídicas incapazes de disciplinar o futuro de forma segura. A agitação civil dos jovens excluídos na França (buscam o direito a ter direito).

Mas, assim como na Mitologia Grega – onde Zeus vence o seu pai tirano, Cronos, rompendo a cadeia de violência – nas sociedades, os homens invertem a não aceitação do tempo. O Autor dá um exemplo: na África do Sul, a Comissão ‘Verdade e Reconciliação’ promove a anistia garantindo a possibilidade e a esperança em desenvolver um futuro de paz, mas sem olvidar o passado.


Retornemos a história grega que ilustra o estudo:

Zeus e Themis tiveram três filhas, as Horai (ou as Horas) que na vertente bucólica chamavam-se de Thallô, Auxô, Carpo, nomes que evocam a idéia de germinar, crescer e fortificar e na vertente política denominavam-se Eunomia, Diké e Eirene, isto é, a disciplina, a justiça e a paz. As Horas personificavam as estações e, também, simbolizavam as virtudes cívicas. Elas expressam o início de um novo tempo: dialético, aberto − o equilíbrio das estações, a pluralidade das estações ou do tempo, a alternância dos períodos, a harmonia da natureza, simbolizando uma vida social portadora de sentido − rompendo radicalmente com o tempo monolítico e violento de Cronos. As Horas eram originalmente deusas das estações que asseguravam o curso harmonioso de tudo.

Portanto, desde os gregos[7], se observa a relação entre o tempo e a justiça. A relação entre a ‘temperança’ (a sabedoria do tempo) e a ‘justiça’ (a sabedoria do direito) e a sua contribuição para o bom governo é a problemática desenvolvida na obra.


O estudo se desenvolve em torno de três teses centrais:

1ª O tempo é uma instituição social antes de ser um fenômeno físico e uma experiência psíquica.

a) Tempo como fenômeno físico: a sucessão do dia e da noite, o curso das estrelas e o envelhecimento dos seres vivos.

“Há ladrões que não se castigam, mas que nos roubam o mais precioso: o tempo”.(Napoleão Bonaparte)

b) Tempo como uma experiência psíquica: o curso do tempo depende da experiência íntima e da consciência individual, ou seja, um minuto do relógio, pode ser um tempo interminável ou apenas um instante fugaz.

Relembramos que Albert Einstein[8] gostava de usar uma frase para ilustrar sua Teoria sobre a Relatividade: "Uma hora com uma jovem e bela mulher passa como um minuto, mas um minuto sobre um forno quente parece uma hora".

c) Tempo como instituição social: produto de construção social denominada “temporização”, o tempo é uma questão de poder, uma exigência ética e um objeto jurídico.

“O tempo foi algo que inventaram para que as coisas não acontecessem todas de uma vez”. (Millôr Fernandes)

O tempo não é exterior às situações, ele participa da sua própria natureza, assim, neste contexto podemos, por exemplo, dar, tomar, perder, passar, encontrar, matar ou ganhar tempo.

Assim como faziam os faraós do Egito e os imperadores chineses proclamavam o nascimento do tempo no dia de sua entronização, sendo necessário modificar, reescrever, o calendário a cada reinado. N. Haeck do grupo relojoeiro Swath instalou na fachada da sede da Suíça, em Bienne, uma marca que simboliza o novo meridiano que servirá de referência universal para o tempo internet:

“Não contente em roubar o protagonismo ao meridiano deGreenwich, o homem de negócios propõe-se igualmente abandonar horas,minutos e segundos para dividir o mundo em 1000 beats, sendo 1 beat equivale a 86,4 segundos. Será comercializado um relógio Swath que adoptará este novo sistema de medida do tempo, embora continue a mostrar – a prudência assim determina – a hora antiga. Exatamente como aqueles pêndulos,hoje transformados em realidade, que entre 1793 e 1806 exibiam simultaneamente a hora antiga e a hora decimal imposta pelos revolucionários franceses[9].”

2ª O Direito contribui para a instituição do social: além de leis e sanções é um discurso que exprime o sentido e o valor da vida em sociedade.

3ª A interação dialética das duas primeiras, ou seja, o elo entre temporalização social do tempo e instituição jurídica da sociedade.

O direito afeta a temporalização (forma de criação do tempo) e o tempo determina a força instituinte (o elemento fundante) do direito. Assim, explica o Autor: o direito temporaliza ao passo que o tempo institui.

Exemplos: o tempo próprio de implementação da norma jurídica e o tempo do processo que não repete, mas sim, rediz o passado provocando uma regeneração.

Mas assim como foi instituída pelo direito a “temporalização” surge a “destemporalização”, ou seja, a saída do tempo comum instituinte.

Formas de fuga do tempo ou de destemporalização, ligada à figura de Cronos:

1ª Recusa do tempo entendido como mudança, evolução, finitude e mortalidade. A Busca ou nostalgia da eternidade gera ideologias totalitárias.

Solução: Contra essa propensão regressiva da eternização é preciso fazer valer o tempo desligado da mudança (p.17).

"Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo: Nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra". (Mário Lago)

2ª O abandono no decurso do tempo físico cujo movimento leva a idéia de destruição. Provoca a chamada “crise da cultura”, termo que H. Arendt denomina a incapacidade de articular passado e futuro, memória e projeto numa cultura marcada pela valorização do presente, do instante.

Solução: Contra a irreversibilidade mortífera da mudança física, é necessário buscar o elo cultural do passado e do futuro, a fecundação reflexiva do projeto pela experiência e a revitalização do dado pelo possível (p. 17).

3ª O pensamento gerado pela representação de um tempo homogêneo e uniforme, pleno e contínuo. O “determinismo”, o pensamento único e o domínio do mercado valorizam a mudança, mas não abrem lugar nem oferecem liberdade para o novo.

Solução: Contra o peso do determinismo histórico, é preciso abrir a brecha da iniciativa e da alternativa (p.17).

4ª O tempo social é plural, é fundamental aceitar a necessidade de gestão da policronia para assegurar a coordenação dos ritmos temporais de uma sociedade, sob pena de desintegração social. O “risco de discronia” ocorre em sociedades pouco solidárias que acumulam as tensões entre o tempo dos ganhadores e o tempo dos negligenciados, o tempo instantâneo das trocas financeiras, o tempo lento da produção e o tempo muito lento da regeneração da natureza.

Solução: Contra as temporalidades manifestas de sociedades hiperindividualistas, é preciso imaginar mecanismos de concordância dos tempos (p. 17).

A instituição jurídica é tanto ruptura como ligação do tempo.

As forças instituintes (tempo) se moldarão as formas instituídas (direito) e estas formas instituídas com o desenvolvimento social (com o passar do tempo) pedirão para ser substituídas por novos modelos instituintes. Esse ritmo nos conduz a “temperança” que é a sabedoria do tempo, a justa medida da continuidade e da mudança que assegura o equilíbrio das relações sociais.

Segue o estudo com base na observação de quatro categorias de tempo normativos e temporais:

Do lado passado:

1° Tempo: Memória – liga o passado assegurando a identidade histórica: registro, fundação e a transmissão.

2° Tempo: Perdão – desliga o passado inovando o sentido. Ex. o juiz que se liberta de uma linhagem de precedentes ultrapassados.

Do lado futuro:

3° Tempo: Promessa – liga ao futuro pelos compromissos normativos.

4° Tempo: Requestionamento – desliga o futuro com objetivo de assegurar as revisões necessárias para que na hora da mudança as promessas sobrevivam.

Cada categoria de tempo expressa um lado da instituição jurídica de um tempo portador de sentido e possuem três condições necessárias:

1ª cada categoria é uma condição necessária para uma temporalização bem sucedida, nenhuma delas é condição suficiente.

2ª A dialética temporal opera no presente.

3ª A dialética opera no núcleo de cada categoria: há muito esquecimento na memória e muita memória no perdão; da mesma forma, há muita indeterminação na promessa e muita fidelidade na revisão (p.19).

Examinado pelo ângulo temporal o direito revela uma dimensão oculta:

a) O direito como revelador do tempo: faz surgir o tempo metamórfico, ou seja, tempo da alternância entre o avanço e o atraso, transforma-se sem renegar-se, como exemplo: o tempo institucional inventado pelos canonistas da Idade Média.

b) O tempo como revelador do direito: faz surgir o direito como um processo de ajustamento do comportamento social, como exemplo: lugar da boa-fé, lealdade e confiança.

A análise do texto permite identificar que, ao utilizar os conceitos referentes às categorias temporais e sociais do direito, o Autor forma uma rede que nos oportuniza a reflexão e o reconhecimento da força humana nos processos de estabelecimento das normas jurídicas que nos servem como organizadoras da história, do presente, do futuro e dos limites legitimados e socialmente aceitos.



Referências Bibliográficas:

OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Editora Saraiva 1998.


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Notas:

[1] 1. Dialética. Arte de argumentar e discutir. 2. Método de raciocínio que consiste em analisar a realidade, pondo em evidência suas contradições e buscando superá-las. 3. Seqüência de raciocínios rigorosos destinados a provocar a adesão do interlocutor. LAROUSSE, Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Cultural Ltda: 1990.

[2] A mitologia grega compreende o estudo do conjunto de mitos, lendas e entidades divinas e/ou fantásticas, (deuses, semideuses e heróis) presentes na religião praticada na Grécia Antiga, criados e transmitidos originalmente por tradição oral, muitas vezes com o intuito de explicar fenômenos naturais, culturais ou religiosos - como os rituais - cuja explicação não era evidente.

[3] Mito. 1. Filosofia geral. A) Idéia que não corresponde a realidade; b) exposição de uma doutrina, misturando fantasias com realidades subjacentes; c) narração em que agentes impessoais são representados sob forma de seres pessoais, cujas ações têm sentido simbólico. 2. Sociologia geral. Crença socialmente comunicada e não questionada; b) compreensão do mundo sem que se tenha consciência disso. Arquétipo. 1. Filosofia Geral. Protótipo ideal das coisas. 2. Psicologia Forense. Idéia geral que serve de modelo (Taine). Arque. Aquilo do qual derivam todas as coisas. É uma realidade que permanece idêntica no transmutar-se de suas alterações (Aristóteles). DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. Editora Saraiva: 1998.

[4] Adotei o nome “Cronos”, com ‘C’, pois entendo mais adequado.

[5] Optei por utilizar o nome grego Gaia, mas no texto é utilizado Gea.

[6] A idéia de exterminar um grupo diferente é quase que inerente à condição humana. Apesar da proteção que vem sendo dada à pessoa humana em nível internacional, a categorização da humanidade como algo unitário ainda não é possível e pode se dizer que a história do genocídio é a história da intolerância contra a diversidade humana. No século XX as práticas genocidas continuaram a acontecer, o século mais assassino de se tem registro, tanto na escala e na extensão, caracterizando o genocídio sistemático. Como exemplo, podemos citar o massacre dos armênios pelos turcos, os crimes praticados por Hitler contra os judeus, os expurgos stalinistas na URSS, os vitimados pela guerra de Biafra na Nigéria, etc. Mais recentemente podemos citar os crimes cometidos pelos tutsis contra os hutus em Ruanda e os conflitos étnicos deflagrados após a desintegração da antiga Iugoslávia, onde se pratica a chamada depuração étnica, que significa dar homogeneidade étnica a uma zona, utilizando a força para expulsar pessoas ou determinados grupos nesta área.

[7] O grego buscava sempre o equilíbrio. Para ele, a matemática era o equilíbrio. A deusa do amor é, ao mesmo tempo, a expressão do equilíbrio e da beleza. O desproporcional era expresso através dos monstros da mitologia grega.

[8] Citar o Einstein quando o assunto é tempo parece estranho, inadequado, pois para ele o tempo não existe, mas a célebre frase é adequada para ilustrar o tempo como uma experiência psíquica.

[9] p. 13.

Sobre o(a) autor(a)
Lindajara Ostjen Couto
Advogada, licenciada em Letras pela PUCRS, bacharel em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da PUCRS, com especialização em Direito Civil pela UFRGS e Direito de Família e Sucessões pela Universidade Luterana (ULBRA/RS)...
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